Mas, logo após a tomada de posse do Governo de Transição, em 31 de Janeiro
de 1975, as coisas começaram a complicar-se para os funcionários do Quadro
Administrativo.
Os administradores da Ganda, Cubal, Balombo, Chongoroi, Bocoio e Baía Farta
que me tinham dado um apoio leal e que tinham, quase todos uma boa aceitação por
parte das populações negras dos seus territórios, quando começaram a aparecer os
ministros e delegações dos movimentos emancipalistas fazendo exigências
despropositadas e ameaças veladas de prisão e despedimento, começaram a vacilar nas
suas intenções de ficar depois da independência.
E quando o Governo Português inventou o Quadro de Adidos para nele integrar
os funcionários do Q.A das colónias, garantindo-lhes em Portugal emprego e reforma,
aumentaram as hesitações que, depois de ter sido propalado que o “MPLA iria julgar
todos os funcionários do Q.A depois da independência” se transformaram em desejo
ansioso de partir o mais depressa possível.
Além do Q. Adidos o governo português também criou o Instituto de Auxílio
aos Retornados Nacionais (IARN) e como na altura os naturais de Angola brancos,
mestiços e assimilados eram considerados portugueses, este Instituto alargou ou
restringiu a sua acção como muito bem entendeu, dando ou negando auxílio de acordo
com os interesses dos dirigentes.
Em consequência criou-se em Angola um ambiente de tal ordem que até o
branco mais pobre que no interior do país ou na periferia das cidades tinha sempre
vivido e convivido com a comunidade negra, se deixou contaminar pela histeria do
medo sem razões válidas que o justificassem, excepto em Luanda e no Huambo onde as
refregas armadas entre movimentos eram aproveitadas para molestar e até, às vezes,
vitimar elementos brancos e não brancos, perante .a passividade das forças armadas
portugueses que, dizendo-se neutras, deixavam-se influenciar quando se tratava de
combater os “comunistas angolanos” ou seja os amigos, simpatizantes e militantes do
MPLA.
No seio da comunidade branca gerou-se uma histeria de fuga a qualquer preço
que o estabelecimento de pontes aéreas e de carreiras marítimas levou ao paroxismo.
Esta histeria deu origem a uma “música” jamais ouvida nesta terra: a “música” das
marteladas nos caixotes ouvia-se noite e dia, monótona e enervante. Nos caixotes metiase
tudo o que era possível, até as garrafas de gás e os panos de cozinha! No porto do
Lobito, extensas bichas de viaturas esperavam longas horas aguardando embarque.
Esta ânsia de partir, em Benguela, contrastava com a atitude de alguns
portugueses e angolanos que se preocupavam mais em resolver os problemas do
quotidiano do que pensar nos problemas futuros. São prova disso os episódios que vou
contar.
Vindos da Ganda, apresentaram-se no meu gabinete dois casais de portugueses
acompanhados de cinco meninos e de uma senhora ainda nova. As senhoras e meninos
estavam lacrimejantes e os dois homens faziam cara de mártir olhando fixamente para
baixo.
Quando lhes pedi para explicar a razão que os trouxera até mim, falaram as duas
senhoras com ar de queixume dizendo que os maridos tinham sido maltratados pelos
pretos até ao ponto de terem levado uma carga de porrada. Pediam a minha protecção e
a correcção dos atrevidos.
Como eu não percebera a causa da maka e como os dois homens se
conservassem calados, perguntei-lhes como é que explicavam a razão das cargas de
porrada que tinham levado. Então um deles começou; “sabe, eu tinha um camião de
fuba para vender e como o não conseguisse, fiz constar que, se me comprassem toda a
fuba, então cairia a chuva que não vinha há muito tempo. Eles compraram a fuba toda, a
chuva não veio e eles deram-me uma carga de porrada”.
E o senhor? - perguntei ao outro português.
“Eu tinha fuba na loja que nunca mais vendia porque a seca continuava e o povo
estava com falta de lombongo (dinheiro). Para conseguir vendê-la resolvi fazer um
feitiço: arranjei uma panela velha, ossos, pêlos e rabos de boi e uns pauzinhos e fui para
o quintal consultar os cazumbis (almas do outro mundo). Cercado de muito povo, fiz as
minhas consultas com os ritos convenientes e anunciei que os cazumbis mandariam a
chuva dois dias depois de eu ter vendido a fuba toda. A fuba foi vendida, passaram dois
dias, a chuva não veio e eu levei uma grande carga de porrada...ainda tenho aqui
algumas manchas...”.
Eu fiquei perplexo, quase que não continha o riso e tive que recorrer ao Camões
dos varões assinalados que conquistaram mundos ao mundo sem um tostão na algibeira
para poder responder condignamente a estes lusíadas perdidos nas matas da Ganda. e
com ar convicto e um tanto protector garanti-lhes que podiam regressar à Ganda sem
receio algum. E eles regressaram ao som da música dos caixotes.
Um outro exemplo revelador do clima em que se vivia foi o que descrevo
adiante.
Uma manhã, quando saía do palácio para o meu gabinete, encontrei no jardim
em frente deste, cerca de cinco dezenas de mucubais, homens e mulheres, que logo se
acercaram de mim com atitudes decididas mas não agressivas e um deles explicou-me
que queriam apresentar-me uma reclamação. Vinham todos tradicionalmente meio
vestidos, as mulheres exibindo anéis, argolas e cabeleiras que eram pouco vulgares em
pleno centro da cidade.
Disse ao emissário que não podia receber tanta gente e que escolhesse um grupo
de dez para falar comigo.
Depois de estarem todos sentados à volta da mesa do comissariado, verifiquei
que alguns deles estavam de cócoras em cima da cadeira.(Não estranhei nem tive
vontade de rir porque me lembrei de uma velhota portuguesa que eu vira há bem pouco
tempo lá na terra civilizada dos portugas, “sentar-se”, também de cócoras, no assento de
um automóvel)
Percebi que o grupo estava satisfeito mas um tanto constrangido. Explicaram-me
a razão da sua vinda: “lá para as bandas do Dombe Grande, um comerciante tinha-lhes
comprado algumas cabeças de gado para pagar, em parte, com mercadorias. O prazo já
tinha passado e ele não pagava. Pediam a minha intervenção para resolver a maka.
Antes de lhes dar uma resposta consultei os meus funcionários e um deles disseme
que conhecia o assunto e que podia ser facilmente resolvido. Assim pude assegurar
aos reclamantes que o assunto estaria resolvido dentro de um prazo de oito dias e que
podiam regressar às suas terras.
Mas os amigos mucubais, em vez de retirarem, preferiram acampar ali mesmo e
esperar pela solução da maka. Ali ficaram os oito dias, durante os quais todas as manhãs
eu correspondia aos seus cumprimentos com o “V” da vitória que se reflectia nos seus
alvos e largos sorrisos
À medida que se aproximava a data da independência crescia a azáfama dos
caixotes e o número dos transportes, aviões e barcos, para a debandada que tomava cada
vez mais o aspecto de uma fuga desenfreada.
Em Julho e Agosto, aviões da TAP e da Suisse Air, transportavam diariamente
cerca de mil passageiros para Lisboa. Mas o afluxo a Luanda de refugiados vindos das
terras do interior em aviões da Força Aérea e de outros vindos via marítima das
províncias do litoral era de tal ordem que tiveram que ser utilizados transportes cedidos
pelos Estados Unidos da América e pela União Soviética.
No início de Setembro participaram na ponte aérea aviões da França, Alemanha
Federal, RDA, Grã Bretanha e URSS. Chegou a haver 15 voos diários para Lisboa.
Só entre 1 de Agosto a 31 de Outubro calcula-se que foram transportados pela
ponte aérea cerca de 230.000 pessoas das quais cerca de 54.000 foram transportadas por
aviões estrangeiros, com os E.U.A à cabeça.
Esta fuga dos portugueses de Angola começou em Maio e terminou em 9 de
Novembro, dois dias antes da proclamação da independência.
A partir de Maio de 1975 a população branca do Huambo viu-se entre dois
fogos, MPLA e UNITA, esta procurando assanhadamente os comunistas, isto é, todos
os que cheiravam a MPLA. Os homens armados da UNITA entravam nos aviões à
busca de comunistas ante o olhar pasmado das sentinelas portuguesas que não sabiam
ou não queriam intervir face à tácita aceitação dos seus oficiais que colaboravam assim
na caça aos comunistas.
Os dirigentes do EME, Machado e Kapango foram arrancados da aeronave
pronta a arrancar para Luanda, nas referidas condições, isto é, diante da passividade dos
oficiais portugueses que preferiram “lavar as mãos” como Pilatos, em vez de usarem da
sua autoridade.
Naquela altura estavam em Angola cerca de 30 mil militares portugueses,
número mais que suficiente para manter a ordem e a disciplina evitando que as
populações, os habitantes civis, fossem molestados pelos militares dos movimentos
rivais.
Do Magazine n.º 277 de 2 de Julho de 1995, de cuja publicação é responsável o
jornal português “O Público”, extraímos do artigo aí publicado sob o título “Há vinte
anos, de Angola a Lisboa - A maior ponte aérea do História” os elementos que
comprovam a tese que sempre defendi de que “esta fuga massiva de residentes de
Angola, poucos meses antes da proclamação da sua independência, se não foi
preparada, foi pelo menos habilmente aproveitada pelas potências interessadas em fazer
de Angola mais um país africano independente, mas obrigado a obedecer aos seus
protectores para manter essa independência”, ou melhor utilizando uma linguagem
política em vias de ser esquecida, “pelas potências interessadas em substituir o
colonialismo português pelo neocolonialismo”.
Assim, extraímos do referido artigo as seguintes passagens:
“Houve brancos que foram mortos, outros que foram alvo de sevícias, afirma
Vasco Vieira de Almeida (ministro da economia do governo de transição) e contínua:
“não se pode dizer que a guerra era dirigida contra a população branca. Só que, numa
cidade ocupada por homens armados, todos se sentiam alvos potenciais. Mesmo em
casa, tínhamos medo. Havia sempre o perigo de balas perdidas.”
São ainda de Vieira de Almeida, cidadão português, com raízes afectivas e
familiares ligadas a Angola, com grande simpatia por Angola mas sem ligações
partidárias, as seguintes afirmações: “A desmotivação era total no seio das forças
armadas portuguesas. O governo de transição não passava de uma farsa trágica. Os
efectivos das forças armadas portuguesas e os meios de que dispunham eram mais que
suficientes para impedir a escalada da guerra civil” “faltava contudo vontade par tal e
faltavam também orientações inequívocas de Lisboa”... .
Não são de espantar estas afirmações de Vieira de Almeida. São verdadeiras,
reflectem a realidade, o que não sucede com as afirmações que no mesmo artigo são
feitas por grandes responsáveis pela descolonização, que decidiram então muita coisa
mas que não tiveram até agora a honestidade de reconhecerem os erros que cometeram.
Assim, o que era nesse tempo ministro da administração do território depois de
ter transferido a sua fortuna de Moçambique para Lisboa, afirma: “Os civis tinham
deixado de encarar a presença dos 30 mil militares portugueses como uma
protecção...Havia alguma, diz Almeida Santos. “Mas as tropas portuguesas estavam
desmotivadas. Muitos dos militares iam já na terceira, quarta e até quinta comissão de
serviço, o significava que estavam a abeirar-se de uma situação de exaustão. Com o “25
de Abril” gerou-se a convicção de que a guerra acabara, de que já tinham cumprido a
sua missão O atraso nas negociações com os movimentos de libertação levou a que se
continuasse a lutar e a morrer tanto ou mais, nos tempos seguintes ao “25 de Abril”, do
que antes. E era incompreensível para as tropas, chegando mesmo a gerar uma situação
de indisciplina militar”.
Mas vinte anos passados, Almeida Santos, um dos responsáveis pela
descolonização, não tem a certeza das causas que originaram a ponte aérea pois afirma:
“a ponte aérea resultou de uma decisão conjunta do Governo e da Presidência da
República”, mas acrescentou: ”eu diria que o Conselho da Revolução também teve
alguma coisa a ver com isso...”. E para cúmulo ainda acrescentou:” Este era um capítulo
que o governo procurava evitar: escaldava e já havia problemas de sobra a nível
interno!”.
E para prova do desencontro de opiniões dos políticos portugueses, oiçamos Melo
Antunes, uma das cabeças da descolonização: “a perspectiva do governo português não
era estimular o regresso da população branca, e sim, ajudá-la a continuar no território.
Mas era tarde demais...” (porquê, pergunto eu). “Por essa altura, em Julho, a população
branca de Angola só pensava em rotas de fuga, deixara de acreditar nos bons ofícios de
Lisboa; mais de 2.500 veículos partiram, por terra até Marrocos e, em meados de
Agosto, 2 mil portugueses tinham cruzado a fronteira a caminho da África do Sul”.
Face a tantas opiniões desencontradas e da consequente falta de coordenação e
de decisão é fácil compreender porque é que Vieira de Almeida acabou por afirmar:
“Nunca mais vi as pessoas do mesmo modo. Nem este país (Angola) Foi absolutamente
incrível a cobardia colectiva de que então se deu provas”.
Face ao que atrás se disse torna-se fácil compreender porque é que a tal
“comissão de descolonização” de que fiz parte tivesse sido completamente inoperante e
inútil.
Mas no artigo em referência, “A maior ponte da história ”citam-se duas
conclusões “históricas” que parecem querer interpretar para a posteridade o que foi a
descolonização de Angola.
Lê-se no artigo em referência: Hoje, no último volume da colecção de História
coordenada pelo professor José Matoso pode ler-se: A atitude das autoridades
portuguesas acabou por favorecer objectivamente a estratégia do MPLA (...) mesmo o
fenómeno do retorno da população branca através de uma ponte aérea cujo terminal era
Luanda favoreceu essa coexistência”
E ainda no mesmo artigo: ”Numa outra colecção de história dirigida pelo
professor João Medina, Melo Antunes escreve: em Agosto de 1975, face à situação
crítica que se vivia em Luanda, já ameaçada a Norte pelas forças da FNLA, dei
instruções precisas, logo em seguida confirmadas pelo Presidente da República para que
as forças portuguesas defendessem a todo o custo a cidade (...)!!! (os pontos de
admiração são do autor). As decisões foram tomadas com inteira consciência de que,
objectivamente, naquele momento, se fazia o jogo da MPLA.
Ora os factos demonstraram que a atitude portuguesa nunca favoreceu a
estratégia do MPLA mesmo com as “instruções precisas” dadas por Melo Antunes,
simplesmente porque essas instruções não chegaram cá ou não foram cumpridas, nem
tão pouco podiam favorecer a estratégia do MPLA porque grande parte dos oficiais do
exército português era furiosamente anti comunista, assim como alguns comandos a alto
nível...que para cumprir essas ordens, nas vésperas da independência, deitaram ao mar
milhares e milhares de culatras das armas que eles não queriam que caísse nas mãos do
MPLA e que pouco antes das zero horas do dia 11 de Novembro convocara os
jornalistas para fazer a entrega de Angola ao Povo Angolano, ali representado
por...ninguém!
E falta acrescentar nessas duas referências históricas que, às zero horas do dia 11
de Novembro, o Presidente da República Popular de Angola não permitiu que a
bandeira portuguesa fosse queimada pelos exaltados que não aceitavam a maneira
inqualificável de proceder...entregando Angola ao Povo Angolano...sem um
representante daqueles que dizem ter favorecido!
Não restam dúvidas de que alguns dos adeptos do MPLA, com as suas atitudes
extremistas e por vezes racistas, também contribuíram para a fuga dos portugueses,
muitos deles já indecisos face às ameaças de nacionalizações sem compensação.
Mas também não restam dúvidas de que, apesar da propalada ajuda portuguesa,
se não fora a presença, embora tardia, dos cubanos e soviéticos, o MPLA não teria saído
triunfante do caos dos últimos dias do colonialismo e dos primeiros dias da
independência apesar das “decisões do governo português tomadas com plena
consciência de que, objectivamente, naquele momento se fazia o jogo do MPLA”.
Outra opinião que ainda persiste e é afirmada por muitos dos que tudo perderam,
é de que “as forças armadas portuguesas deram um importante e significativo apoio ao
MPLA”. É uma opinião redondamente errada pois a grande maioria dos oficiais e
soldados das FAP eram figadais inimigos do comunismo para eles representado em
Angola pelos, como já disse, militantes, simpatizantes e amigos do MPLA.
Alguns dos acontecimentos a seguir relatados são prova disso.
RETIRADO DE : Sócrates Dáskalos_UM TESTEMUNHO PARA A HISTÓRIA DE ANGOLA.pdf
2 comentários:
Parece-me que Dáskalos era daqueles brancos de coração preto que comoviam os "pretinhos" até às lágrimas!
Como os pretos adoravam estes "brancos" por fora!
Exmo Sr todo este problema é muito complicado e não pode ser analisado com base em emoções à flor da pele. Tudo tem que ser visto em contexto. Era um tempo de idealismos que hoje fazem falta, em que jovens brancos ingénuos acreditavam ser possível em Africa uma sociedade justa onde todos fossem iguais e onde não fosse a pigmentação da pele mas o valor das pessoas, a mola impulsionadora. A intenção era sem dúvida pautada de grande humanismo. Hoje, com o neoliberalismo e a globalização já não há lugar para as utopias e até se passa o contrário. Os Estados-Nação estão se submetendo ao grande capital mundial como se tal uma inevitabilidade. A cultura materialista e consumista, tem afastado os cidadãos dos ideias Humanistas e da efectiva Defesa dos Direitos Humanos. Bem vistas as coisas por detrás de cada movimento de libertação já nessa altura estava escondido o interesse de uma super-potência. Portugal pouco poderia riscar. E com a queda da URSS e dos idealismos também o MPLA se transformou. O povo de África teve o azar de ter alcançado a sua independencia nesta fase da humanidade. Alimentar o racismo hoje como ontem a quem poderá beneficiar?
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