sexta-feira, 15 de outubro de 2010

A Fuga do Huambo


Luís Alberto Fernandes Achega
[30-11-2008] [17182 caracteres]

A queda do muro de Berlim, a transformação que houve no bloco soviético pressagiou uma nova era de esperança que se tem dissipado ano após ano.

O Mundo respirou uma paz que não seria duradoira. Aos nossos dias chegou idade do terrorismo, do fundamentalismo, do tribalismo, da globalização e do capitalismo selvagem em que tudo se justifica pelo dinheiro.

Chegaram novas guerras e, de vez em quando, apercebemo-nos, através da televisão de ondas de refugiados que fogem da guerra. Faço parte duma geração que esteve na chamada guerra colonial. Fui combatente em Angola entre 1967 e 1969. Mais tarde, conheci e vivi, também em Angola, a guerra entre os movimentos de libertação, que provocou uma fuga desordenada duma grande parte da população Angolana.

Há muito que tenho na memória uma época de terror, anotei e guardei recordações para que fique um documento de parte da minha história e das pessoas que me acompanharam.

A revolução de 25 de Abril de 1974, trouxe para a cena política de Angola três movimentos, que até então, combatiam contra o exército Português na clandestinidade: - MPLA, FNLA e UNITA.

Após a revolução, estes três movimentos, com o patrocínio do governo Português, em Alvor, no Algarve, acordaram entre si respeitarem os bens dos Portugueses. Também acordaram apresentar ao povo Angolano as suas ideias, a fim de serem sufragadas em voto secreto. “ Acordo de Alvor a 15 de janeiro de 1975 “.

Como todos sabem nada disso aconteceu. Angola entrou numa longa guerra civil que se prolongou até à morte de Jonas Savimbi em Fevereiro de 2002. Mesmo antes da revolução de Abril, os três movimentos, sempre lutaram uns contra outros, no entanto, a partir de finais de 1974 envolveram-se numa luta sangrenta, com algumas tréguas precárias.

Como consequência dessa guerra, gerou-se uma grande insegurança na população civil, que deu origem à fuga desordenada de grande parte da população. Os combates entre eles, começaram no norte de Angola e em Luanda, mais tarde estenderam-se por todo o território.

Chegavam então ondas de refugiados a Luanda e a Nova Lisboa. Estiveram de passagem na nossa casa o Francisco Meneses, já falecido e o seu genro Rézio com o Pai, também falecido. Eram refugiados do norte de Angola, de Malange.

Através de pontes aéreas dos dois aeroportos internacionais de Luanda e de Nova Lisboa, os refugiados foram transferidos para Portugal. Outros foram por terra até ao Sudoeste Africano e depois África do Sul. Os que estavam ligados à pesca e aos transportes marítimos fugiram de barco, uns também para à África do Sul, outros até ao Brasil.

Muitos morreram ao tentar a fuga, dentro e fora do território de Angola. Assim, de Janeiro de 1975 até Outubro do mesmo ano, pouco tempo antes da independência, Angola foi abandonada por muitos brancos, mestiços, e negros. Ao referir aqui, negros, brancos e mestiços, faço-o sem qualquer intenção de racismo. Não uso a palavra africano, porque a mesma é sempre, ou quase sempre, indicada para referir gente de cor.

Jorge Bem, conhecido cantor Brasileiro, mestiço, diz numa sua canção que nasceu no Brasil por acidente geográfico. Jorge Bem é mestiço mas ninguém diz que o Brasil não é terra de negros. Sem querer fazer história, sabe-se que os autóctones do Brasil são os chamados Índios. Parece-me que o nome de Índios, se deve ao facto de Pedro Álvares Cabral ter pensado que tinha chegado à Índia, quando tinha aportado a Porto Seguro, no Estado da Bahia, no ano de 1498. Ao contrário das Américas, do continente Australiano, da Nova Zelândia, nunca foi ponto assente que os brancos também fazem parte de África. Angola tinha gente branca de várias gerações. Meu filho, Luís Achega, nasceu em Angola, em Nova Lisboa, hoje Huambo.

Antes de 1974, Angola estava com grande crescimento, vou no entanto fazer um pequeno retrato da cidade de Nova Lisboa, que Norton de Matos quis fazer capital do Império Colonial Português. Alguns leitores deste jornal, conheceram a cidade de Nova Lisboa, que era em 1975 a segunda cidade de Angola. Uma cidade nova e moderna com alguns habitantes mais velhos que a própria cidade. A cidade do Huambo foi fundada em 21 de Setembro de 1912. Era uma cidade de grande extensão com avenidas e ruas largas.

Tinha uma grande zona industrial onde, anualmente, havia uma feira internacional, agrícola e industrial, tinha um jardim zoológico, aeroporto internacional, quatro salas de cinema, sede episcopal, muitas igrejas incluindo a igreja de Nossa Senhora de Fátima, três grupos de futebol, um deles o Ferrovia que estava agregado ao caminho-de-ferro de Benguela. Sem ser porto de mar, passavam por Nova Lisboa muitas mercadorias pela citada linha ferroviária, que fornecia e escoava produtos de Angola, da Zâmbia e de uma parte do Zaire.

Nova Lisboa era e ainda é um local estratégico: - A 600 Km de Luanda, a 300 km do importante porto do Lobito, a 400 quilómetros de Sá da Bandeira hoje, Lubango, era passagem obrigatória para o leste de Angola, era ao tempo, um importantíssimo eixo rodoviário e ferroviário. Certamente que em futuro próximo, a capital do Huambo, voltará a ter a importância que teve no passado. O caminho da paz e da esperança está aberto.

Por causa da guerra, da insegurança e da estagnação económica, no final de Julho de 1975 encerrámos a nossa unidade têxtil. Não havia condições para trabalhar. A comida escasseava e a situação piorava dia após dia. Encostado à nossa unidade industrial, estava um destacamento da Unita e os soldados chegaram a passear com as suas armas no interior da nossa fábrica. Não havia ordem nem Lei que mudava conforme a posição de força dos três movimentos. De vez em quando haviam combates entre eles aos quais chegámos a assistir. Pensámos em abandonar Angola, mas por avião havia muita gente em lista de espera, a opção foi ir de carro até à África do Sul e apanhar avião para Portugal.

Também em finais de Julho de 1975, tinha ido pôr meu filho Luís a Luanda para que viesse para Portugal com uma família amiga. Tinha quatro meses o Luís. Vimos, eu e sua mãe, o avião levantar voo e ficámos sem saber se voltaríamos a ver o nosso filho. Correu tudo bem. Passado pouco mais de um mês estávamos de novo juntos em Portugal.

Escolhemos 15 de Agosto para abandonar Nova Lisboa. Eu, Isabel Sana e o João Martins. Tínhamos dois carros com depósitos cheios de gasolina e ainda alguma de reserva, além de mantimentos para a viagem. Haviam ainda mais quatro ou cinco carros de outros fugitivos. De madrugada começámos a nossa fuga e na saída de Nova Lisboa encontrámos uma barreira de militares da Unita. Perguntaram-nos por documentos e pelo salvo-conduto do partido. Demos dinheiro e vinho e passámos sem problema.

Andámos mais 50 quilómetros até Caala onde nova patrulha nos perguntou pelo mesmo. O militar que nos interpelou estava bêbado, no entanto com duas garrafas de vinho e cinco notas de 20$00 não levantou objecções. Passámos depois por Caconda onde tivemos de parar e pagar a portagem como antes e tudo bem. Caconda era uma bela vila agora abandonada, parecia uma cidade fantasma onde somente se viam cães e gatos abandonados. À medida que avançávamos, íamos atestando os depósitos com as nossas próprias reservas para não sermos roubados do precioso líquido.

Passámos a Caluquembe, Cacula, Hoque e sempre a mesma paisagem: - povoações abandonadas com alguns destroços da guerra. Chegámos a Sá da Bandeira sem qualquer problema nos 400 quilómetros percorridos. Foi bom termos escolhido viajar pela manhã. Ao meio-dia, certamente que a maior parte dos militares estaria com uns copos a mais e poderia ser mais complicado o controle. Através dum nosso amigo conseguimos hotel em Sá-da-Bandeira, onde planeámos a partida para a fronteira da Namíbia.

Eram mais 600 quilómetros e já tínhamos resolvido o problema do combustível para a viagem que se adivinhava perigosa. Ouvíamos falar de massacres para os lados de Pereira de Eça que hoje tem o nome de Ondjiva e estávamos com receio. Planeámos de novo a partida agora com um grupo muito mais numeroso. Talvez trinta viaturas. Mais uma vez, bem cedo, ainda noite, abandonámos Sá-da-Bandeira e confiámos na sorte. Não tínhamos armas, a viagem era perigosa, mais para o sul havia guerra, a aventura para o desconhecido estava bem perto, a angústia que seca a boca começou a tomar conta de nós.

Foi num dia frio de Agosto, que partimos de Sá da Bandeira. O caminho afinal estava livre e foi um ver se te avias até ao Sudoeste Africano, hoje Namíbia. Não houve paragens na PICADA de terra batida, na estrada de pó. Penso termos percorrido grande parte da famosa Picada de Calueque. Ao fim da manhã, já tínhamos passado o Chitado. Atravessarmos a ponte sobre o rio Cunene e chegámos à fronteira onde contactámos com os soldados Sul-Africanos. Fomos revistados e seguimos viagem. Passámos por Ombulantu, Ogongo e chegámos a um campo de refugiados em Oshakati. Penso que Oshakati, era ao tempo, território Ovambo que se situava entre a fronteira da Namíbia norte e a fronteira sul de Angola.

Ao chegarmos ao campo de refugiados, fomos desinfectados, mostrámos as vacinas, passaportes e dissemos que poderíamos prosseguir sem auxílio dado que tínhamos dinheiro para a viagem.

A África do Sul tinha uma logística muito bem organizada para dar apoio às vagas sucessivas de refugiados Angolanos. Hoje, através da informação, os Media dão grande destaque aos refugiados da guerra. Nós, portugueses, quando da descolonização, passamos por situações muito graves. Muita gente morreu, muitas famílias foram separadas, muita gente ficou sem os seus haveres. Em campos de refugiados, nasceram crianças e foram sepultadas pessoas. Ao longo do percurso, entre a Namíbia e Johannesburg, haviam campos de acolhimento para os refugiados de Angola. Por interesses da Revolução de Abril, nada ou pouco foi mostrado em Portugal sobre esses campos de refugiados.

Junto à saída do campo de Oshakati, casualmente contactámos um professor de história Sul-Africano que nos levou para um Hotel. Tirámos o pó que era muito, jantámos uma deliciosa carne de vaca grelhada e dormimos tranquilamente. Pela manhã partimos e passámos por Otjiveto, Operet, e chegamos a Tshumed, pequena cidade mineira, onde perguntámos num mini mercado de Portugueses, por um carro nosso que tinha sido utilizado pelo António Farinha, pelo Victor Carvalho e família. O António Farinha e o Victor Carvalho eram funcionários da nossa empresa em Nova Lisboa.

O Carro era um Datsun 1200 que estava num campo de refugiados em Grootfontein. Os utilizadores já tinham vindo para Portugal de avião. Tinha uma chave da viatura, apresentei-me no campo e deram-me o carro. Partimos de novo, agora com três carros. O João Martins com um BMW 1600, a Isabel com um Fiat 124 Sport Coupé e eu com o Datsun 1200. A jornada era longa e metemo-nos a caminho para Windhoek. Passámos por Otavi e fomos dormir num Hotel em Ochivarango. No outro dia passámos por Sukses, Osona e chegamos a Windhoek onde nos instalámos num Hotel. Windhoek era e ainda é a capital da Namíbia. Queríamos enviar o BMW e o FIAT para Portugal. Fomos a um despachante Português, mas o preço que nos deram para o despacho dos dois carros, era tão elevado que não decidimos logo.

Nesse escritório enviámos um telex para Portugal, para Luís Nascimento Silva. Do lado de Portugal, o triquitar do telex respondeu que andavam há quinze dias a tentar saber notícias de nós. As notícias deixaram a família descansada, mas a jornada ainda tinha muito pela frente. De nova Lisboa até Windhoek tínhamos feito cerca de 1.800Km.

Ao passarmos por uma rua de Windhoek vimos uma pequena empresa de exportação de peles de caraculo que tinha as portas abertas para arejar as bonitas peles estendidas em tabuleiros de madeira. Entrámos, conversámos e perguntámos qual seria a maneira mais económica de despacharmos as viaturas para Portugal. A informação dada com simpatia, sugeriu que fossemos procurar um despachante a Walvis Bay.

Assim com os três carros subimos de novo a Osona onde tomámos a direcção de Karib, Arandis, Swakopmund e Walvis Bay. Atravessámos uma zona contígua ao deserto da Namíbia e não posso deixar de salientar a beleza da vegetação, dos animais que vimos. De vez em quando lá estava a Welvitchia-Mirabilis, planta do deserto da Namíbia, a encher com a sua beleza uma terra vermelha e seca como é a terra Africana.

Lembro-me, sobretudo das pequenas vilas onde, apesar da escassez de água, haviam sempre bonitos jardins, das grandes salinas em Walvis Bay e de muitas gaivotas voando junto ao mar. Walvis Bay está situada a cerca de 500km a norte da fronteira da África do Sul. Walvis Bay, (do Afrikaans Walvisbaai, ou seja, Baía das Baleias), é uma importante cidade portuária da Namíbia.

Descoberta em 1487 por Bartolomeu Dias que a denominou "Golfo de Santa Maria da Conceição". A região não foi reclamada para a coroa portuguesa. Walvis Bay, é um porto de águas profundas e comercialmente muito importante, é também um paraíso onde habitam cerca de 100 mil aves marinhas: - gaivotas, flamingos e saracuras.
Ficámos num hotel em Walvis Bay nesse fim-de-semana, e, na segunda-feira despachámos o BMW e o FIAT para Valência no Sul de Espanha.
Em Outubro de 1975 fomos buscar os dois carros a Espanha, eu e o João Martins (Jota).

Regressámos de novo a Windhoek, agora num só carro cheio de bagagem. Contactámos a Luftanza a fim de arranjarmos voo para Portugal. Tínhamos bilhetes da T.A.P. mas fomos informados que não davam para viajar na Luftanza. Assim, com o pequeno e velho Datsun 1200, resolvemos fazer mais 1971 Km para Johannesburg.

Estávamos já na Zona Temperada do Sul, tínhamos atravessado o trópico de Capricórnio um pouco a sul da fronteira do BOTSWAMA e, embora os dias fossem quentes, as noites eram frias e com temperaturas negativas. Ao tempo havia uma crise energética e as gasolineiras somente vendiam combustível das 07H00 até às 18H00. Eram proibidos depósitos suplementares e assim não podíamos caminhar dia e noite. O carro gastava pouco, mas o caminho era longo. Passámos por Mariental, Asab, Keetmanshoop, Marubis, Grunau, Karasburg, Upington, e, finalmente Johannesburg.

No primeiro dia desta caminhada chegámos à noite, penso que a Karasburg e todos os Hotéis estavam repletos. Ficámos no carro, não havia gasolina e fazia muito frio. A meio da noite entrei no Hotel e serviram-nos café quente. Estivemos lá até às 07H00 altura em que abriram as gasolineiras. Foi muito simpático o funcionário de cor do turno da noite daquele Hotel.

A paisagem da extensa caminhada de cerca de 1971 Km era diversa e havia pouco trânsito. Estávamos na época seca. Lembro-me de muita vedação de arame farpado à beira da estrada e muito gado bovino em regime de pastorícia. Aquele país transpirava riqueza e fartura, era realmente um espanto ver tanta comida à solta.

Ao chegarmos a Johannesburg, hospedámo-nos num Hotel de Portugueses na parte alta da cidade. Aproveitámos para conhecer um pouco da cidade com as ruas numeradas como New York. Por ali estivemos alguns dias até embarcarmos para Portugal na TAP com escala em Luanda. O aeroporto de Luanda estava muito degradado, uma tristeza, mas chegámos a Portugal sem problemas.

De Janeiro de 1975 a fins de Agosto do mesmo ano, analisando tudo a uma grande distância, tivemos todos muita sorte. Penso que Deus e o Anjo da Guarda estiveram sempre connosco. Obrigado. Estou a corrigir este documento na data de 2008-10-30. Nas notícias desta manhã, ouvi sobre mais uma crise humanitária no Congo. Milhares de refugiados fogem da guerra.

Regressei com o João Martins a Angola em 1990. Estivemos em Luanda e no Huambo onde visitámos as casas onde vivemos e a Fábrica que construímos. O que vimos ficará para mais tarde.

Passaram mais de trinta anos. Tudo ou quase tudo ficou na memória. Para um melhor rigor sobre a distância percorrida, pedi auxílio à Universidade da Namíbia que gentilmente me forneceu tudo o que necessitei. Para uma maior precisão consultei os mapas do GOOGLE que reconfirmaram as minhas anotações.

Não quero deixar de prestar uma homenagem à Namíbia que é um País maravilhoso. Tem uma costa Atlântica de mar perigoso com muitos recursos pesqueiros, onde, também tem fama pela negativa a Costa dos Esqueletos, (Skeleton Coast). Tem ainda muitos minerais, sendo a maior riqueza os diamantes, existem alguns parques naturais para a vida Selvagem que, felizmente, hoje vimos através de programas televisivos. Tem uma área de 824.790,00 Km2, quase 10 vezes maior que Portugal. Não obstante a sua dimensão, a capital Windhoek, tem cerca de 161.000 habitantes e a sua população é de cerca de 1.648.270 habitantes.

Muito pouca gente para tão grande espaço. Windhoek era na data uma cidade com muitas características Alemãs. Windhoek, era, e ainda é, a capital administrativa do Sudoeste Africano, hoje Namíbia. É uma cidade do interior a cerca de 300km da costa Atlântica. Situada num bonito vale, foi fundada em 1890 e foi quartel-general do exército Alemão na primeira guerra Mundial.
Luís Alberto F. Achega