terça-feira, 22 de novembro de 2011

"Ficheiros Secretos da Descolonização de Angola" relata factos desconhecidos



 
Ficheiros Secretos da Descolonização de Angola
 

“Este livro da jornalista Leonor Figueiredo é um valioso documento para a História da entrega, sem honra, nem glória, nem dignidade, da província ultramarina portuguesa de Angola. Direi mesmo que, em sentido figurado, é uma Bíblia, porque a autora prova o que escreve. A autora faz uma viagem ao passado na procura do que terá acontecido a seu pai que residia em Luanda, desaparecido ainda na altura em que Angola era portuguesa. Nem as autoridades, nem os políticos/governantes, nem os militares dessa época trágica para Portugal sabem o que terá acontecido a João Cândido Figueiredo (pai da autora deste livro) nem de algumas centenas de Portugueses”.
“Quando procurava elementos sobre o meu pai, desaparecido em Angola antes da independência, em 1975, descobri que o mesmo tinha acontecido a mais 250 portugueses.”.
Ficheiros Secretos da Descolonização de Angola são mais um testemunho da maior tragédia sofrida pela Pátria que “deu novos mundos ao Mundo. Mas é também um documento revelador de vilanias, traições, e covardias de muitos. É um grito angustiante e um brado de revolta. O Estado português e os seus agentes culpados uns, responsáveis outros, pela “descolonização”, que eles próprios a crismaram de “exemplar”, alijaram as suas culpas e responsabilidades para terceiros. Um acto de covardia. Esse Estado “descolonizador” que ainda não ressarciu as vítimas da “descolonização exemplar” (exemplarmente trágica). Outra vergonha. Outra injustiça. Outro crime. Leonor Figueiredo revela nesta sua obra as prisões de compatriotas nossos feitas por alguns militares portugueses que depois os entregavam ao MPLA. Muitos desses prisioneiros foram fuzilados pelo movimento liderado por Agostinho Neto, e todos eles agredidos fisicamente e torturados psicologicamente nas masmorras do MPLA.
Adulcino Silva – Jornalista



Entrevista a Leonor Figueiredo e Pré-publicação do seu livro "Ficheiros Secretos da Descolonização de Angola"

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“Quiseram correr com os brancos de Angola"
Leonor_Figueiredo O pai desapareceu em Angola há 34 anos. A filha investigou e escreveu um livro que revela uma rede de prisões clandestinas E uma lista oficial de nomes de portugueses desaparecidos.
Já conseguiu fazer o luto do seu pai?
Acho que este livro me veio ajudar a fazê-lo. Conheço pessoas que nunca fizeram o luto de um familiar desaparecido. Nem conseguem abordar o assunto. Estou muito satisfeita por falar no meu pai e nas muitas vítimas desconhecidas e escondidas da descolonização de Angola que descobri. Passou muito tempo. Quando era adolescente, nem queria falar no assunto porque pensava que o que tinha acontecido ao meu pai era uma coisa extraordinária. Mas não. Houve muitas centenas de portugueses que foram vítimas da guerra política em Angola.
Publica uma lista inédita, do MNE (Ministério dos Negócios Estrangeiros), com mais de duas centenas de nomes de portugueses desaparecidos em Angola. Como pode ter sido abafada tantos anos?
A pasta tinha sido desclassificada há pouco tempo. E mesmo assim não estavam lá os documentos todos. Nos arquivos do nosso Estado, há muitas coisas que não podes consultar. São secretas; são muito secretas. E portanto, nunca virão à leitura do público. Esta, por acaso, foi desclassificada e eu tive a sorte de dar com ela, porque ia precisamente à procura do meu pai.
O seu pai consta dessa lista, tal como outras pessoas com quem falou para escrever este livro.
Exactamente. Eu tinha este know-how da minha adolescência, de ouvir a minha mãe e outras pessoas contar histórias de Angola que não eram faladas em Portugal. O meu pai desapareceu, mas alguns dos “desaparecidos” vieram depois a aparecer nas prisões, com acusações absurdas. Não estou a dizer que são todos inocentes. Mas o ambiente era de repressão e qualquer coisa servia para atingir os fins políticos.
Essas prisões eram ilegais, clandestinas...
Claro. O que quer dizer que Portugal entregou Angola ao MPLA muito mais cedo do que se pensava. Cerca de meio ano antes.
O próprio MNE admitiu, em 1977, segundo os documentos que pública, que o MPLA prendeu portugueses antes da independência?
Exactamente.
Como define então a descolonização?
A descolonização de Angola ainda tem muito para revelar. As pastas governamentais têm que ser todas desclassificadas. Um balanço faz-se com números, com casos, não se pode ficar eternamente a divagar em teorias ou preconceitos e a ouvir sempre os mesmos.
Parece-lhe possível que desapareçam algumas das pastas que estão classificadas?
É evidente. Eu própria, nas pastas que tive acesso, vi que faltavam muitos documentos.
Como é que teve coragem para começar esta investigação?
Nunca tinha pensado em pegar no assunto, até que, há uns anos, começaram a ser publicados livros de fotografias de Angola e Moçambique. Eu fiz essa reportagem, e nessa altura, em conversa com a Zita Seabra [editora da Alêtheia], que procurava material sobre as ex-colónias, disse-lhe a brincar: ‘se eu algum dia contasse a história da minha família...’. Diz-me ela: “escreva que eu publico”. E esta pequena conversa veio abrir um cofre que estava fechado a sete chaves, há muitos anos. Nós não mandamos na nossa cabeça, não é? Saltou qualquer coisa e decidi: ‘vou escrever a história do meu pai.’ Eu sempre achei que nós, retornados – e eu odeio esta palavra –, fomos mal compreendidos cá.
A ideia que se fazia cá de Angola estava desvirtuada...
Completamente. Angola era um território moderno, independentemente do sistema político que vigorava. E ainda bem que houve o 25 de Abril. A descolonização é que foi muito mal conduzida. As Forças Armadas Portuguesas – que representavam o Estado português na ainda colónia – não acautelaram minimamente a vida desta gente. Pela documentação que consultei, verifiquei que os vários altos-comissários de Angola pediam, repetidamente, tropas especiais, porque aquilo estava num caos. Mas de Lisboa nunca lhas enviaram. O livro fala de Luanda em 1975. Lembro-me de estar no quintal, e de repente ver o céu cor-de-laranja e de sentir a terra a tremer. Dos bombardeamentos. Íamos todos os dias apanhar as balas ao quintal. Na esquina de minha casa não havia semáforos, mas sim guerrilheiros. Quando eles paravam de atirar, podia-se passar.
Que idade tinha?
17-18 anos. Eu vim para Lisboa em Junho de 75, um mês antes do meu pai desaparecer. E quando cheguei aos 50 anos pensei que seria altura de escrever um livro sobre o que vivi lá, mas dei-me conta que não sabia nada daquela terra. Durante dois anos, li livros compulsivamente. E escrevi a história do meu pai, mas quando cheguei à parte do desaparecimento dele, decidi mergulhar nos arquivos, onde descobri estas histórias inéditas.
Lembra-se do dia em que ele desapareceu (a 16 de Julho de 1975)?
Lembro.
Como é que recebeu essa notícia?
Eu estava em casa de umas pessoas amigas, porque viemos de Angola à pressa e não tínhamos onde ficar. Foi uma dessas pessoas que me deu a notícia.
O que é que lhe disse?
“O teu pai desapareceu.” Desapareceu!? “O teu pai desapareceu!” E eu dei a interpretação de uma miúda de 17 anos: desapareceu? Como? O que é que isso quer dizer?
Teve irmãos e a sua mãe para a ajudarem a fazer essa interpretação?
Claro. Mas nunca mais se soube nada do meu pai. As informações que tivemos, ao longo do tempo, foram sempre contraditórias. Eu não sei que motivos poderia haver para o seu desaparecimento. Possivelmente, não era da mesma cor do MPLA. O que deve ter acontecido a muita gente que vem nessa lista.
É verdade que a maioria dos presos era acusada de pertencer à UNITA ou à FNLA ou de manter contactos com os seus dirigentes?
Foi o que conclui da documentação que consultei.
O seu pai era empresário em Luanda, como era a vida dele? Tinha ligações políticas?
Não, ele era uma pessoa muito discreta. Não falava de política.
Era um homem influente?
Conhecia muita gente, foi para Angola muito cedo. Com 18 anos.
Ele emigrou com o objectivo de enriquecer?
Não. Ele tinha sessenta e tal anos quando tudo aconteceu e considerava aquela a sua terra. Amava-a profundamente, como muitos outros portugueses. Não queria vir. Dizia que morria lá.
O que a leva a crer que tivesse sido raptado?
Pelo que descobri nos arquivos, as pessoas eram raptadas porque lhes cobiçavam o carro, os bens, ou porque não eram da cor política. Por variadíssimas razões. Acho que quiseram correr com os brancos de Angola que estavam lá radicados há mais tempo.
Acredita que no caso dele foi por lhe cobiçarem os bens?
Não sei. Houve casos tão absurdos que qualquer coisa pode ter servido de pretexto.
A sua família seguiu alguma estratégia para o encontrar?
Através do Ministério dos Negócios Estrangeiros, com cunhas a ministros  e cartas à Presidência da República.
Cunhas?
Sim, para nos receberem. Eles não recebiam os familiares destas pessoas, porque lhes era um assunto incómodo. Lembro-me de ter ido uma vez com a minha mãe falar com o ministro Melo Antunes.
Das denuncias feitas pelos familiares dos portugueses desaparecidos, desde o MNE, à Presidência da República, à Cruz Vermelha, quais destes organismos oficiais intercederam realmente a favor dos desaparecidos?
Certamente que se empenharam, mas pouco resultou. Uma coisa não fizeram: denunciar a situação à comunidade internacional.
Politicamente, Portugal estava interessado em questionar?
Não. Aliás, todos estes portugueses me contaram como havia instruções rigorosas para não falarem à Imprensa. E esta é a primeira vez que eles contam a história. Eu encontrei-os porque lhes queria mostrar a fotografia do meu pai. Pensava que, se eles foram presos antes da independência, e como o meu pai desapareceu nessa altura, se tivesse sido preso, ter-se-iam encontrado. Só que, de facto, pelo que se percebe, havia várias hierarquias de presos e prisões e uns nunca viam os outros.
E nunca ninguém viu o seu pai?
Há manuscritos que dizem que sim, mas eu pergunto-me: ‘serão verdadeiros?’
Faz ideia sobre como é que ele terá morrido?
Há a hipótese de ter sido fuzilado, como foram outros portugueses, nomeadamente, durante o 27 de Maio de 1977. As prisões em Angola, não tinham a lista dos que entravam, só dos que saiam. E isso vem reconhecido por um diplomata português, num telegrama. Não sabemos quantos ficaram pelo caminho...
Só em 1999 conseguiram obter a certidão de óbito dele. Porquê tão tarde?
Como não há corpo, a morte tem que ser presumida. E têm que passar esses anos para ser oficializada.
A sua família viveu sempre com algum sentimento de injustiça, de impunidade?
Evidentemente.
Fala no seu livro, 'en passant', do calvário da sua mãe por não saber do paradeiro dele. Como foram vividos estes momentos?
Com muita dor. Houve um ano em que recebemos um telegrama a dizer que ele estava bem e deveria regressar a Portugal no Natal. Mas os anos passaram e nada aconteceu. E a partir de uma dada altura, ele já teria uma certa idade, deixámos de pensar nesses termos...
O que aconteceu aos prisioneiros após a independência?
Só falei com alguns, mas o livro refere os tormentos por que passaram muitos outros.
Como é que foram tratados estes prisioneiros?
Está aí tudo no livro. Eu acho que eles eram tratados pior que animais. Passavam fome, frio, não tinham sol, sofriam torturas inenarráveis. Não havia médicos, muitos morreram. Acusados sem julgamento. Este é o pedaço da nossa História Contemporânea que falta contar. O que se passou foi escandaloso.
Quando fala de escândalo refere-se à forma como os portugueses foram deixados lá pelo Governo português?
Sim e de como foi a própria descolonização.
O livro fala de ligações da polícia portuguesa e das Forças Armadas portuguesas com o MPLA. Qual era o interesse?
Achavam talvez que fosse legitimo que o MPLA tivesse o poder. Mas, de facto, Portugal assinou acordos com os três movimentos. E quem fazia parte dos outros movimentos não podia ter sido marginalizado.
Era uma traição à pátria...
Claro que sim. Então, deixam-se compatriotas num sítio quando se sai de lá para sempre, sabendo que eles ficam naquelas condições? Porque eles sabiam o que se passava.
Conte-me o que descobriu sobre os movimentos clandestinos dos partidos políticos angolanos antes da Independência?
O que mais me chocou foi a Polícia Judiciária, muitos meses antes da independência, ter agentes seus a trabalhar com seguranças do MPLA – o que legitimava as prisões. E outra das coisas que me impressionou, foi saber que a PJ – que não tem nada a ver com esta de cá – era quem seleccionava os presos portugueses que eles deixavam embarcar.
O MPLA apresentou diversos presos como criminosos que fariam oposição ao processo de descolonização e de Independência de Angola. Fez-se propaganda com eles?
Fez-se: o MPLA deu uma conferência de imprensa, quatro dias após a independência, exibindo-os como mercenários. Não era verdade para todos. O próprio MPLA reconheceu que os aprisionara e não os tinha entregue às autoridades portuguesas, que era o que lhe competia.
Nenhum deles nunca foi julgado, pois não?
Não, nenhum.
Qual foi a história que conta no livro que mais a impressionou?
A da médica, porque ela desmentiu um boato: a imprensa do MPLA publicou uma notícia a dizer que tinham sido encontrados órgãos humanos numa das delegações da FNLA. Isso era mentira, porque tinham roubado esses órgãos do teatro anatómico da maternidade de Luanda, onde essa médica trabalhava. Foi ela que desmentiu o boato contra a FNLA. E isso levou a que a tivessem raptado. Ela é uma das desaparecidas. É preciso explicar o porquê.
O MPLA tinha ecos na Imprensa portuguesa?
Tinha. Portugal vivia em 1975 o Verão Quente, o PREC, as esquerdas estavam todas em alvoroço. Foi neste cenário que tudo aconteceu. Independentemente disso, abandonaram lá portugueses.
Escreveu um livro ao estilo de reportagem. Pretende que fossem os sobreviventes das prisões clandestinas em Angola a contarem o que se passou?
Quis dar voz a quem ainda não a teve. Por isso ponho as pessoas a falar à vontade. Mas há muita gente que não quer.
É traumatizante não é?
Claro que sim.
Sente esse trauma?
Agora libertei-me dele. Mas, durante muitos anos, foi um grande peso que senti na alma.
Procurou a ajuda de algum psicólogo ou psiquiatra?
O que mais me ajudou foi conversar com pessoas que passaram por situações semelhantes. Foi este livro.
De certa forma, sente que está a fazer justiça ao publicar o livro?
Nunca se poderá fazer justiça a toda esta injustiça. É demasiado grande. Mas acho que temos que começar a abrir os ficheiros secretos da descolonização. E ainda há muitos.
Sabe se algum familiar destes desaparecidos, ou dos presos, alguma vez apresentou um processo judicial contra o Estado português?
Acho que vontade não faltou.
O que é que estes Ficheiros Secretos pretendem principalmente denunciar do processo de descolonização?
Pretendem contar histórias ainda desconhecidas. De cidadãos portugueses que foram abandonados e de decisões políticas e militares que se revelaram desastrosas. Está tudo documentado.
O que é que descobriu?
As autoridades portuguesas estiveram lá, na última etapa, como se não estivessem. Se formos ver o que se passou, eles fizeram muito pouco pelos portugueses que lá estavam e que sempre lá estiveram. Viam-nos quase como se não fôssemos portugueses, mas como os brancos que “se meteram” com os movimentos. Tiveram o mérito da ponte aérea – com muita ajuda estrangeira. Angola foi abandonada, com portugueses dentro. E as coisas têm que ter dignidade. Admiro os países que trazem para a pátria os seus mortos de guerra e lhe conferem essa dignidade. Em Portugal é o contrário. Ainda temos corpos de soldados portugueses da I Guerra Mundial na Europa e ainda há corpos de soldados portugueses nas ex-colónias africanas. O Estado português não dignifica os seus mortos. E portanto não se dignifica a si próprio.
PERFIL
Leonor Figueiredo, de 52 anos, foi jornalista do Correio da Manhã e depois, 21 anos, do ‘DN’, título onde tencionava publicar o trabalho que deu origem a este livro.
FICHA DO LIVRO ‘FICHEIROS SECRETOS DA DESCOLONIZAÇÃO EM ANGOLA’, DA AUTORIA DE LEONOR FIGUEIREDO
Edições Alêtheia, 16€ (à venda nas livrarias a partir de 7 de Agosto)
Durante mais de 30 anos, a jornalista Leonor Figueiredo procurou pistas sobre o desaparecimento do pai em Angola, em Julho de 1975. Nos arquivos do Estado, descobriu mais de 250 portugueses que foram ‘esquecidos’ propositadamente. Encontrou cinco antigos presos em Luanda, na esperança de que conhecessem o seu pai. Resultado: pouco escreveu sobre o pai mas recolheu para este livro arrepiantes testemunhos da prisão e do abandono na ex-colónia.
AS PÁGINAS DA MEMÓRIA ANGOLANA: PRÉ-PUBLICAÇÃO
O JORNALISTA GEORGES LECOFF TESTEMUNHA O SOFRIMENTO DAS FAMÍLIAS DOS PRESOS
'Dia 9 de Novembro de 1975. Era um domingo de fim de Primavera, e o jornalista Georges Lecoff dava uma volta por Luanda. Foi à fortaleza de São Miguel, ainda com sinais da presença de alguns funcionários e tropas portugueses que «há várias semanas» tinham a impressão de que já não faziam «nada» em Angola. Foi então que assistiu à presença de várias mulheres que choravam, pedindo aos militares portugueses para salvarem das prisões do MPLA «um pai, um marido ou um filho, sem nada conseguirem, além de boas palavras». O jornalista lembrava-se de que «algumas dezenas» de portugueses tinham sido encarcerados «sem que o exército português tivesse interferido»'
UMA MÉDICA ENTRE OS VIVOS E OS MORTOS
'«(...) A minha mãe tinha estado a trabalhar na maternidade até às quatro ou cinco da manhã. Por isso, quando lhe foram bater à porta, ela veio abri-la em pijama. Eu só acordei quando ouvi o barulho da discussão. Venho à porta e vejo três negros à civil, a discutir com ela. Durou uns dois minutos. Estavam no patamar das escadas do prédio. Diziam: ‘A senhora vem, vem… já lhe disse que vem!’ Agarraram nela e levaram-na. Eu tinha 13 anos, não tive capacidade de reacção. Tenho o filme na minha cabeça. A minha mãe foi raptada, sem nenhuma dúvida. Agarraram nela, levaram--na, de camisa de noite e robe. Nem sequer a deixaram vestir-se. Meteram-na num jipe e foram embora. Agarraram-na e levaram-na. Foi assim…»' (...) '«O que nos foi dito é que terá sido levada para a Praça de Touros, em Luanda, e morta dois ou três dias depois de raptada.»'
LUÍS GUERREIRA PEREIRA, DETIDO EM FINAIS DE JULHO DE 1975
'«Sofri muito no dia seguinte. Bateram--me bastante, torturaram-me diversas vezes. Fisicamente, três ou quatro vezes, mas psicologicamente muitas. A partir daí a minha detenção foi muito acidentada, porque eu não sabia o que me iam fazer a seguir. Levaram-me para quatro ou cinco sítios diferentes. Tiravam-me o adesivo dos olhos e o capuz, e de repente eu estava numa casa de banho. Nunca via o exterior. Na mesma época passei por quinze ou dezasseis, para não exagerar, cubículos diferentes: pequenas áreas, cozinhas, casas de banho… Levaram-me para a Praça de Touros, em Luanda, poucos dias depois, para ser abatido e enterrado. Eu ouvira dizer na FNLA que eles matavam ali as pessoas e enterravam-nas na arena. Lembro-me de estar lá, com as mãos amarradas atrás das costas, com adesivo nos olhos e um saco na cabeça. No corredor de acesso à arena, encostaram-me à parede e a caliça saltava e picava com os disparos que eles faziam à volta do meu corpo. Aquilo foi encenado, eu não era para ser fuzilado. Mas só vim a sabê-lo depois. Fiquei lá umas duas horas.»'
OS PRESOS TINHAM CONDIÇÕES 'RAZOÁVEIS', SEGUNDO O REPRESENTANTE DO MNE
Em Dezembro de 1975, informou Lisboa da presença «no Campo da Sapu de quinze presos acusados envolvimento FNLA antes independência». Dizia o representante português que as suas condições eram «razoáveis». «Alguns vêm trabalhar cidade, outros trabalham próprio campo. Não têm sido maltratados. Dizem não recear julgamento pois muitas acusações feitas seriam fantasia. Alimentação é muito fraca (...). Principal queixa que têm é incerteza sua situação: desde há três semanas que lhes dizem quase diariamente que vão ser libertados, o que não se verificou até agora.»'
'CECÍLIA EFRATI: UMA NOIVA QUASE ETERNA'
'Desaparecer é diferente. Quando se vê um corpo, dói, mas depois fazemos o luto. Com um desaparecimento, passamos por fases incríveis, mas não esquecemos. Três meses antes de o Jorge desaparecer tínhamos perdido o nosso bebé. Entrei, então, numa fase má, da qual muita coisa ficou nublada na minha memória.' (...) 'Fiquei em Angola, na esperança de encontrar um rasto do Jorge. Em 1976, vim conhecer Portugal, e regressei. Mas, em finais de 1978, deixei Angola.' (...) 'Só muitos anos depois, quando fiquei grávida do meu filho mais velho, do novo casamento, sonhei pela primeira vez com o Jorge. Nesse sonho, contámos tudo um ao outro. Ele até pôs a mão na minha barriga. Tive a sensação de que esta criança vinha puxar-me de novo para a vida. A partir daí, comecei a pôr uma pedra sobre o passado. Mas a dor fica sempre num canto do coração.'
HOMEM DISCRETO E EMPRESÁRIO
Em 1928, aos 18 anos, João Cândido Figueiredo (na foto ao lado) partiu para Angola. Tornou-se empresário em Luanda. Era um homem discreto que não falava de política. Desapareceu em Julho, o mês mais crítico de 1975. A família, que já tinha fugido para Portugal, nunca mais ouviu a sua voz; nunca mais o viu. Seguiu-se um calvário indescritível para desvendar o seu estranho desaparecimento. A sua mulher meteu cunhas a ministros, chegou à fala com Melo Antunes, mas foi tudo em vão.
'VERGONHA DE SER PORTUGUÊS'
Leonor Figueiredo foi jornalista do Correio da Manhã até ao final da década de 80. A 25 de Maio de 1987 publicou um artigo (ao lado) com as revelações de Américo Pires Afonso, ex-detido nas prisões clandestinas de Angola. 'Eu vivia aterrorizado com os gritos nocturnos dos presos das celas vizinhas. A prisão de Catete era composta por várias galerias e subterrâneos onde as pessoas desapareciam e nunca mais eram vistas. Todas as noites havia tortura de presos do processo Kamanga, relacionado com o tráfico de diamantes. Chegavam às celas todos partidos e cheios de sangue', relatou ele à jornalista. 'Portugal teve um comportamento de abandono total. Será que o petróleo tem mais valor do que os portugueses que estavam em Angola? Eu tenho vergonha de ser português', confessou Américo.
Bruno Contreiras Mateus
CORREIO DA MANHÃ(Lisboa) – 26.07.2009
Ver também AQUI

FANTASMAS DO PASSADO por Victor “Hunter”


Por: Victor “Hunter”

Um dia na minha Beira
Fui para a cama bem cedo
Durante a noite acordei
Com uma sensaçâo de medo.

Nâo era de arrepiar,
Era somente a impressâo,
Que alguem me acompanhava,
Apressou-me o coraçâo.

Vi deslisar umas sombras,
Abri os olhos em par,
Era como umas imagens,
Que me vinham visitar.

Fantasmas...logo pensei,
Aqui é tudo possível,
Vi caras que conheci antes,
Isto sim que era incrível.

Olha o velho Araujo,
Daquele jeep a baixar,
Parecia-me bem disposto
Pela praça a passear.

Levava posto um blazer
No pescoço um cachné,
Falava com o Ramchand
Um importante monhé.

Depois vi um homem passar
Deu-me um salto o coraçâo
Parecia-me conhecido,
Era o Saul Brandâo.

Lembram-se dele certamente
Muito conhecido o senhor,
Era homem de negocios
E dono do Embaixador.

Quem vem lá baixo apressado?
O Salzone, o caçador,
Vai correndo antes que feche
O Pinto & Sotto Mayor.

Naquele Mercedes lá vai,
Levantou a mâo pra mim,
Pude vê-lo muito bem,
Era o Engenheiro Jardim.

Deve ter vindo do Dondo,
Acompanhava-o a esposa,
Vi que o carro seguia,
P’ros lados do Pendray Sousa.

Ele fui o presidente,
Por isso o conhecia
Do nosso aero club,
Onde eu muitas vezes ia.

Foi um grade aventureiro,
E foi homem da elite,
Piloto aviador
Director da Lusalite.

Quando estava bem atento,
Vi um Fiat azul passar,
Era o meu tio Acácio,
Que vinha de trabalhar.

Ao Bar Rex se dirigiu,
E foi lá estacionar,
Porque pelas tardes ia,
Com os amigos jogar.

Continuava admirado
Com todos os que passavam,
Porque eu sabia que eles,
Todos mortos se encontravam.

Mas aqui nâo acabava
Era como se estisse à janela,
Passou o Magalhâes Costa
O dono da Caravela,

Isto só acontece aqui,
Nesta cidade da Beira,
Olha o meu amigo Sthamer,
Do Pertersen & Nogueira

Ia no seu Volkswagen
Por isso eu bem o vi,
Tinha a sua companhia,
Por cima do Café Capri.

Passar em frente aos correios
Vi o Virgilio Garcia,
Indo direito à Safrique,
Deles era caçador-guia.

Lembram-se dos Serras Pires?
Lhes juro que eu nâo minto,
Vi passar p’ro 100 à Hora,
O meu amigo Jacinto.

Que andará fazendo?
Com cuidado o segui,
Vi que andava organizando,
À Gorongosa um Rally.

Rallys, carros e velocidade,
Desfilando pela Beira,
Representando o Entreposto,
O José Manuel Mendes Pereira.

Vi passar um grande carro
Atrás dele uma camionete
Saiu de lá o dentista
E a sua mulher, a Gillette.

Continuava a passar,
A gente que eu conheci,
O dono do Simôes Safaris
Naquele momento eu vi.

Olha o Zé que bem o vejo,
Acenando-me com a mâo,
Vi tambem o velho Coimbra
E o Henrique Leitâo.

Olá amigo, me disseram,
Aqui te viemos a ver,
Fomos todos muito amigos
Muito antes de morrer.

Depois vi o Carlos Cruz,
Que tambem foi caçador,
Ele casou-se com a viuva
Que se chama Leonor.

Sabem quem vi eu passar
Pessoa que me deu pena?
Vi que ia muito contente,
O amigo Luis Mena.

A morte tinha-o levado,
Rápido e numa carreira,
Agora encontrava-se bem,
A passear pela Beira.

Mais tarde vi outra pessoa,
Na mâo levava um cajú,
Era o Armindo Vieira
O famoso Marabú.

Foi caçador professional,
Durante muitos anos,
Nese momento passava
Mesmo em frente à Spanos.

Atrás da Manica Trading
Vi o Arquitecto Ivo,
Caminhava devagar
Parecia que estava vivo.

Com ele e acompanhando-o
Em conversa muito amena,
Ia bastante animado,
Creio que se chamava Sena.

Que estariam planeando?
Alguma coisa digo eu,
Será que querem modificar
A entrada para o Céu?

Com calma mas com firmeza
Pelas avenidas da Beira,
Ia p’ro Aero Club,
O grande Chico Moiteira.

Sempre com um grande sorriso,
Que nele era habitual,
Acompanhava-o o Tony Ladley,
Nâo vi que estivesse mal.

Num Citroen tubarâo
Ia o Roger Sauvage,
Tambem o acompanhava,
A que foi minha manacage.

Ao olhar p’ro Pic-Nic,
Estava o amigo Teixeira,
Aterafado preparando,
Uns ovos com uma alheira.

Estava a ver muita gente
Durante essa semana,
Vi aquele que foi piloto,
Amigo Lomba Viana.

E por falar de pilotos,
Que viviam nesta terra,
Ia para o aeroporto,
O aviador Jorge Guerra.

Dizem que a Senhora Morte,
O tinha contratado,
Para levar as pessoas,
Da vida, pró outro lado.

Tambem vi outra pessoa,
E quase solto um grito,
Era um bom hoteleiro,
Do Estoril, era o Brito.

Na entrada do cinema
Que se chama Nacional,
Encontrei um velho amigo
Era o Luis Portugal.

Oh Luis meu bom amigo
Onde é que tua mâe anda?
Está na agencia agora,
E ainda se chama “Armanda”.

Que coisas que estava a ver,
Isto sim era demais,
Pois no Lar Modeno vi
O Silva e o Sr. Morais.

O Torcato pobrezinho
Quando chegou aquele dia
Quiz vender ao Sào Pedro,
Bilhetes de Lotaria.

Despois vi uma pessoa
Que reconheci Deus meu,
Era o Coen das madeiras,
Que era um grande judeu.

Mesmo em frente ao Chiveve,
Preparando o camarào,
O grego do Johny’s Place,
Açenou-me com a mâo.

Que boa que era a comida,
Naquele famoso lugar,
Agora eram os fantasmas,
Que a estavam a gozar.

Segui para a Ponta Gea
Alguem me estava a chamar
Na Padaria Esperança,
Vi o Carvalho trabalhar.

O que mais me impressionou,
Que quase me dá um chelique,
Ver a Gugas, minha mulher,
Em terras de Moçambique.

Em frente ao campo de golf,
Naquele grande casarâo,
Vi o homem importante
O bispo Dom Sebastiâo.

Primeiro Bispo da Beira,
Nos livros assim se aprende,
A lápide que está no châo diz:
D. Sebastiâo Soares Resende.

Vi uma pessoa importante,
Que num grande carro vinha,
Era um bom advogado
E chamava-se Palhinha.

Gostava muito de caçar,
Ia muitas vezes p’ros tandos,
Para poder distrair-se,
De assuntos e de “milandos”.

Por fim vi um grande homem
Que saiu nâo sei bem donde,
O que foi o meu pisteiro,
Um grande amigo , o FOMBE.

Para mim se dirigiu,
E disse-me num tom lento,
Aqui estou oh meu muana,
Te espero até ao fim do tempo.

Ao ver aquele ser querido,
Nem podia respirar,
Desde que era um menino,
Ele me ensinou a caçar.

Ao ver que ele estava bem,
Que felicidade, que alegria,
Sabia que ele me esperava,
Quando chegasse o meu dia.

Depois de ver tudo isto,
Cheguei à conclusào,
Que os beirenses ao morrer
Para o Paraiso vâo.

E ao perguntar-lhe directo,
Ao Dr. Dias Ferreira,
Victor, ainda nâo notas-te,
Que o Paraiso é a BEIRA?

Quando eu morra um dia,
Lá nos vamos encontrar,
Mandem-me limpar a casa,
Onde eu costumava morar.

Agora sei para onde vou,
Agora estou descansado,
À Beira eu vou parar,
Ainda que morra noutro lado.

Por isso amigos nâo temam,
Quando a Morte os venha buscar,
Já sabem que de certeza,
À Beira vamos parar. 

domingo, 6 de novembro de 2011

EM PRIMEIRA MÃO "Retornados-o Adeus a África" de António Trabulo




Um capítulo

No Planalto, uns partiam e outros não. Muíla tencionava ficar no Lubango. Tinha ali raízes fundas. Os seus bisavôs paternos tinham chegado antes dos colonos madeirenses.
Era um jovem estranho. As mulheres achavam-no bonito, mas ele ainda não casara.
Aos vinte e seis anos, quase foi abatido por engano.
Aproximava-se da cidade quando encontrou uma barragem da U.N.I.T.A. Vinha sozinho no veículo de todo-o-terreno. Não trazia armas e até mostrou o cartão certo ao militar que o interpelou.
Um do grupo alvitrou, em umbundo:
– Tem mercenários com cartão.
O Muíla conhecia bem a língua. Levantou o braço esquerdo. Ia protestar.
Um tipo nervosinho do grupo armado interpretou o gesto como ameaça e quase soltou o seu medo pessoal. O dedo indicador da mão direita cingiu-se-lhe ao gatilho da Kalashnikov.
A sorte aconteceu. Um dos tipos detrás reconheceu-o.
– Conheço este gajo. É da Palanca.
Lá o deixaram.
Nesse dia, o Muíla resolveu mudar-se para Portugal, onde nunca estivera. Deu sociedade na fazenda ao Martinho, mulato que já no tempo do seu pai era o capataz. Assinou um documento em que lhe reconhecia a posse de metade da terra e do gado. Assim, podia ser que a empresa sobrevivesse aos tempos difíceis que se anteviam. Talvez um dia ele pudesse voltar e retomar a vida normal.
Já não havia quase ninguém nos Serviços de Pecuária onde trabalhava durante a semana. A maioria dos colegas abandonara Angola. As repartições públicas estavam a deixar de funcionar.
Conseguiu marcar passagem de avião para Luanda. Voltou ao Chiange e despediu-se do Martinho com um abraço apertado. Durante a viagem de regresso ocorreu-lhe que podia estar a fazer aquele trajecto pela última vez na vida.
Ao entrar na rua onde morava, avistou uma luz acesa em sua casa. Como vivia sozinho, receou que lhe tivessem ocupado a moradia. Eram coisas que aconteciam com frequência crescente. Os militantes dos três Movimentos tomavam conta dos apartamentos abandonados pelos proprietários.
Estacionou o velho Land Rover a uma distância de quarenta metros, pegou na pistola e introduziu uma bala na câmara. Meteu a mão que segurava a arma no bolso direito do casaco largo.
Com a mão esquerda, rodou cuidadosamente a chave na fechadura e abriu a porta de mansinho. Entrou no hall. Viu uma mala fechada encostada ao lado direito, junto ao cabide dos casacos. Da sala, escapava-se um polígono de luz. Avançou alguns passos e espreitou. Lua dormia, estendida no sofá.
Sorriu, retirou o projéctil da câmara, travou a arma e poisou-a na mesa.
Descalçou-se, atravessou a sala, e entrou no seu quarto. Retirou da cómoda umas cuecas e um pijama. Passou à casa de banho, tirou a roupa e meteu-se debaixo do chuveiro, sem fechar a porta.
Lua acordou com o ruído da água a escorrer. Viu o saco de viagem do Muíla e a pistola. Teve um dos seus impulsos, e seguiu-o. Despiu-se e juntou-se ao jovem que se banhava. Abraçaram-se e beijaram-se, sem falar. Fizeram amor logo ali.
Enxutos e vestidos, foram para a cozinha.
– Trouxe pão fresco. Pensei que dava jeito...
– Obrigado. Tenho sempre um bocado de queijo na geleira. Também há cerveja. Já jantaste?
– Comi alguma coisa. Sabes que não sou de muito alimento.
– Eu não posso dizer o mesmo – O Muíla deixou escapar a frase entre dois golos de cerveja. Que fizeste ao teu homem? E como é que entraste aqui?
– A tua criada deu-me a chave.
Fez um sorriso maroto antes de continuar.
– Quando quero, ninguém é capaz de me dizer que não. Quanto ao Gil, deixei-o! Estou farta dele e do Lubango. Além disso, tenho medo. As coisas estão cada vez pior. Soube que te vais embora. Quero ir contigo para Lisboa.
– E lá, que tencionas fazer? Como é que soubeste que eu estou de abalada? Tenho a certeza de que não falei disso a ninguém.
– Compraste um bilhete de avião há duas semanas. Falei com o empregado da agência. O Ricardo é muito simpático. Arranjou-me lugar no mesmo voo. Os bilhetes estão esgotados, mas dá-se sempre um jeito.
– Tomaste uma decisão que vai mudar muitas coisas na tua vida. Pensaste bem?
– Acho que sim.
– E tens a certeza de que não te vais arrepender?
– A certeza, a gente nunca tem, não é?
Muíla pensou no Gil Madeira. Era um tipo culto, decente, com tiques de militar e ideias antiquadas. Considerava-se salazarista. Salazar morrera há oito anos. A sua ideologia tornara-se obsoleta muito antes. Nos últimos tempos, o velho ditador diminuído limitara-se a vegetar. Os seus seguidores tinham criado um fantasma que continuara a influenciar o governo do País, mas o tempo de Oliveira Salazar e a sua percepção do mundo tinham ficado lá muito para trás.
Gil podia tornar-se perigoso. Tinha a mania das armas. Alistara-se na F.U.A. (Frente Unida Angolana) do engenheiro Falcão, do Lobito. A evolução dos acontecimentos e a falência do modelo de independência que sonhara levara-o depois a aderir ao E.L.P., o chamado Exército de Libertação Português. Não falava com o irmão gémeo, que era todo M.P.L.A.
A esta hora andaria a rondar a cidade de jipe, em busca da mulher.
Lua chegou-se à mesa e pegou na pistola abandonada. Acariciou-a como se fosse corpo de homem.
– Às vezes sinto-me tentada a dar cabo de mim.
– Não sejas tonta. O mundo ficava muito mais feio.
Abraçou-a.
Tinham a partida marcada para a manhã seguinte. O marido só daria com eles se se lembrasse de estar no aeroporto à hora da largada. Era coisa que podia acontecer. O melhor era ter a arma bem à mão.
Não se sentia culpado. Nada fizera para atrair Lua para junto de si, mas a mulher era muito, muito bonita e um homem não era de ferro.
Deitaram-se.
Na manhã seguinte, o Muíla telefonou para a tia Alzira. A irmã da sua mãe era solteirona e morava em Setúbal. Nunca se tinham visto. Trocavam postais de vez em quando, e falavam por telefone quando havia alguma coisa importante a dizer. Fora assim que soube que era o herdeiro único dos seus modestos bens. A senhora morava em casa alugada. Até o telefone pertencia à vizinha do lado.
Já a avisara de que tencionava ir para Portugal. Nos primeiros tempos precisava de alguma ajuda.
Escolheu as palavras com algum cuidado antes de dizer que a Lua ia consigo.
– Levo a minha mulher.
– Não sabia que te tinhas casado. Essas coisas comunicam-se!
– Tem razão, tia, mas aqui vivemos tempos difíceis. Às vezes parece que o mundo está a acabar. As regras confundem-se. Peço desculpa. Quando chegarmos, conto tudo.
Arrumara na maleta alguns pertences. Pesavam pouco.
Gil Madeira não imaginou que a mulher tencionava voar para Luanda, e o casal embarcou sem dificuldades.
Formara-se uma fila de pessoas à cata de uma desistência, mas não houve nenhuma. Ao subir a escada do avião, Muíla olhou para trás.
Talvez nunca voltasse àquela terra, que era a sua. Não conhecia outra melhor.
Os que ficaram tinham um ar preocupado. Deixaram-se estar até que a aeronave desapareceu no ar.
Muíla reservara um quarto em Luanda com bastante antecedência. A Lua não gostou das acomodações porque o espelho da instalação sanitária era pequeno. O companheiro ainda telefonou para dois hotéis e uma pensão, mas estava tudo cheio de gente que aguardava lugar nos voos para Lisboa. A mulher resignou-se.
Corria o mês de Setembro de 1975 e a ponte aérea funcionava em pleno.
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António Trabulo

Retornados-o Adeus a África
Editorial Cristo Negro
( 2009)
 

dulce maria cardoso – uma entrevista a propósito de «o retorno»

Dulce Maria Cardoso
1975, Luanda. A descolonização instiga ódios e guerras. Os brancos debandam e em poucos meses chegam a Portugal mais de meio milhão de pessoas. O processo revolucionário está no seu auge e os retornados são recebidos com desconfiança e hostilidade. Muitos nao têm para onde ir nem do que viver. Rui tem quinze anos e é um deles. 1975. Lisboa. Durante mais de um ano, Rui e a família vivem num quarto de um hotel de 5 estrelas a abarrotar de retornados — um improvável purgatório sem salvação garantida que se degrada de dia para dia. A adolescência torna-se uma espera assustada pela idade adulta: aprender o desespero e a raiva, reaprender o amor, inventar a esperança. África sempre presente mas cada vez mais longe.
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«O Retorno»

«O Retorno» é o quarto romance de Dulce Maria Cardoso. Galardoada com diversas distinções literárias – entre as quais o Prémio da União Europeia para a Literatura, pelo livro «Os Meus Sentimentos», ou o Prémio Literário Acontece, atribuído a «Campo de Sangue» -, terá sido a descoberta da autora fora de portas a merecer-lhe o convite para uma residência literária que a levou a viver um ano na Alemanha. Foi aí que escreveu o romance que agora a catapultou para o primeiro plano da Imprensa portuguesa, meio em que o seu reconhecimento tem sido gradual. Para além de um romance que, como diz a escritora, a levou a decidir tornar-se escritora, este será também, ou é, de certa forma, um romance que abre uma porta até hoje fechada, a do olhar de uma geração sobre um tempo português de miséria, vergonha e turbação. Nascida em 1964, Dulce encarna a geração dos filhos da guerra, os filhos dos homens que combateram em África por uma terra que diziam ser nossa, do Minho até Timor, os filhos daqueles que tendo começado uma vida em África se viram engolidos pelo rolo compressor da História que os levou a deixar uma terra que tinham como sua, que amavam como sua, que queriam como sua, regressando de mãos vazias a uma metrópole que mais do que os acolher, os recebeu como pôde, mal e vergonhosamente. Como aliás, o país se encarregaria de tratar também aqueles que lutaram por uma ideia de nação ultramarina gasta e condenada ao fracasso que os anos, e as muitas vítimas de um conflito perdido à nascença, se encarregariam de demonstrar. Aqui, porém, é dos retornados que se fala. Pela voz de uma criança, depois adolescente, que aprende a vida passando pela descoberta precoce do medo, da humilhação, da discriminação. Romance a dois tempos, dividido entre um lá e um cá, um antes e depois do regresso, o que aqui nos é dado a perceber é o modo cinzento como então se via o mundo, de um lado, os bons, do outro, os maus; isto é, um mundo visto com a inocência de um olhar daltónico, que mais não sabia distinguir que apenas o branco e o preto. Livro testemunho, é nessa medida um livro empenhado em instituir-se como testemunha de um tempo e de um processo que o tempo não apagou ainda por completo, tão-só porque as memórias e as emoções não se apagam por deliberação, tão-só porque se trata de um tempo, ou de tempos conturbados, que muita gente parece não interessada em escalpelizar – por vergonha? Porque passou, passou? Ou porque exactamente não passou? Dulce Maria Cardoso nasceu em Trás-os-Montes, em 1964. Para além dos romances supracitados editou ainda «O Chão dos Pardais» e o livro de contos «Até Nós». «O Retorno» tem edição, digna e de bom gosto, da Tinta da China. Porque há assuntos a que devemos retornar, a conversa com a escritora.

TEXTO E FOTOS PEDRO TEIXEIRA NEVES

Dulce, que importância assume este livro na tua carreira, que já leva cerca de dez anos, quatro romances e um livro de contos?
Pode dizer-se que este é o livro pelo qual eu decidi tornar-me escritora. Portanto será, é certamente um livro significativo na minha vida. Tanto mais porque de alguma forma eu vivi grande parte do que nele se relata, ou seja, é o livro mais parecido comigo, porque eu vivi estes acontecimentos. Eu acho que todos os livros são autobiográficos, mas neste deu-se o caso de ser mais autobiográfico, porque eu vivi parte dos acontecimentos que relato.
Esse facto, essa envolvência tão directa com os factos, ajudou ou pesou no acto da escrita?
Não sei responder… Foi diferente do que se passou com os outros livros. Creio que isso terá ajudado a aproximar-me mais de uma verdade que queria contar… Mas, responder assim, parece que os outros livros, ou seja, parece que é obrigação do escritor ter de viver tudo, o que não acho que seja o caso. Aliás este livro é narrado por um rapaz, coisa que eu obviamente nunca fui.
És capaz de mensurar quanto de ficção e de real assistem a este livro?
Não sei dizer. Mas o facto de ser narrado por um rapaz afasta logo grande parte de uma hipotética percentagem de realidade… Eu não sou a protagonista do livro…
No fim do livro colocas aquilo que poderá ser uma espécie de pós-epígrafe, que diz qualquer coisa como «las cosas muertas no se deben tocar». Regressar ao passado, mesmo que pela via da escrita, não é de algum modo tocar em coisas mortas?
É, mas isso é uma provocação. Eu acho que se deve tocar nessas coisas, acho que as coisas mortas devem ser tocadas, devem ser faladas. E em relação, por exemplo, à História, com H grande, sem dúvida que um povo estará mais preparado para o seu futuro quanto mais souber do seu passado.
Em que sentido falavas atrás de uma verdade que queiras contar? Que verdade é essa?
A verdade de que eu falava é a minha verdade, ou seja, não era repor a verdade histórica; embora também penso que com a minha verdade eu posso ajudar a repor um bocadinho da verdade histórica, do que foram na realidade esses tempos. Mas trata-se, acima de tudo, da minha verdade.
Não te animou, portanto, qualquer desejo de acerto de contas, até como forma terapêutica tua de lidar com o passado?
Não. Quanto ao exorcismo e a terapia, aquilo que se pode considerar a escrita como terapia, isso não é o meu caso, tanto é que eu demorei imenso a decidir escrever o livro, porque ainda não tinha encontrado uma proposta de reflexão para tratar este assunto. E, portanto, se fosse por uma questão terapêutica, digamos assim, este teria sido naturalmente o meu primeiro livro, o meu primeiro romance, e não foi. Até porque sei que foi um tempo de grande sofrimento e eu acho um pouco indigno tratar o sofrimento sem acrescentar uma proposta de reflexão. É um pouco parecido com aquelas situações em que se abranda para ver o acidente, não é? Só se deve abrandar se for para prestar ajuda, se não, não se deve abrandar, porque é um pouco obsceno, muito obsceno.
Portanto, o dirimir de culpas nunca te interessou?
Não, não se trata de ajustar contas com o passado, não é uma escrita terapêutica. É exactamente uma proposta de reflexão, sobre a perda, sobre como é que se vive uma perda, e percebi que não se vive uma perda por antecipação. Mas isso é válido tanto neste caso, em que se aborda a perda de um país ou de um modo de vida, como para outra perda qualquer, por exemplo, de uma pessoa que amamos. Mas aprendi que nunca se vive por antecipação. Quando a coisa acontece é sempre devastadora.
Sentes, de algum modo, que a culpa se diluiu no rolo da História que envolveu todos e acelerou aqueles tempos conturbados, como amiúde as personagens o dizem?
Eu acho que as culpas não se diluíram, porque a culpa nem com toda a água do mundo se pode diluir. O que acontece é que a Justiça quando é extemporânea passa a ser uma grande injustiça. Já passaram muitos anos e é impossível julgar agora segundo aquelas circunstâncias. Portanto, as circunstâncias mudaram tanto… Mas a culpa está lá e continuará lá. Só que já é inútil falar nela. Só é interessante falar na culpa se houver a possibilidade de um julgamento.
Foi difícil partir para este relato na cabeça de um adolescente à época, e subtraíres-te ao peso, até de um julgamento inconsciente dentro de ti, de todos os anos que entretanto passaram?
No fundo, perguntas-me pelo processo da escrita… Nós não sabemos de onde vem as coisas, não é? Nesse sentido, escrever este livro não foi mais difícil do que outro livro qualquer que eu tenha escrito; o que nós temos é uma parte de decisão sobre o que é que vamos tratar, o que é que pensamos, depois há a parte do mistério criativo, em que as personagens se impõem, em que a história se impõe. Portanto eu acho que estive apenas disponível para a descoberta do que podia acontecer no livro.
E quanto ao lugar da escrita, na Alemanha. Este livro poderia ter sido outro, acaso tivesse sido escrito aqui, perto de onde as coisas aconteceram?
Não sei, é a velha história dos «ses». A Alemanha foi muito interessante. Primeiro, recebi um convite para a residência literária e depois decidi aceitar e quando decidi aceitar decidi escrever o livro lá. Foi muito interessante porque, de algum modo, eu também estava deslocada, pelo que pude outra vez experimentar ter aquela sensação de não pertença. Sendo certo que esta não pertença, vivida na Alemanha, foi sobretudo lúdica. Ou seja, eu quando vim para cá de Angola eu não tinha maneira de voltar a casa, na Alemanha eu tinha um bilhete de avião. Portanto, isto é acima de tudo lúdico, eu não gosto de confundir as coisas.
Mas a escrita foi dolorosa por estares a lidar, a reviver acontecimentos tão marcantes do ponto de vista emocional?
Não mais do que o que eu tenho na cabeça desde que as coisas aconteceram. Esta história, os factos todos que eu conto, tudo o que está no livro foi registado nos anos que em que aconteceram, em 75, 76… Portanto, e na verdade, será doloroso não mais do que viver comigo, não mais do que isso.
Sendo um romance sobre a perda e a identidade, o que é que, ainda assim, passando pelo processo, ganhaste e em que é que te tornaste?
As hipóteses do se, volto a dizer, são sempre perigosas, porque tínhamos de ter não sei quantas vidas para ver se eu tivesse ficado em Luanda o que é que tinha acontecido, se isto não tivesse acontecido o que é que eu seria hoje… Portanto, eu não posso responder com rigor a isso. O que eu acho é o facto de eu ter sido exposta tão cedo a uma guerra civil, à perda do convívio com tudo o que me era familiar, até mesmo com a minha própria família, e depois ter sido exposta à discriminação e essas coisas todas, a situações muito injustas, tudo isso expôs-me muito cedo à maldade e ao sofrimento. E o que terá sido diferente é que eu ganhei outra vida, porque eu acho que se ganha mais possibilidade de análise quando se exposta a situações extremas e, portanto, nesse sentido eu terei sido diferente por ter sido exposta a isso, mas, em concreto, o que mudou em mim isso não posso saber.
A perda, de resto, fui muito além do territorial e do material…
Sim, a perda foi acima de tudo afectiva, porque a perda material pode alguma forma, com alguma ingenuidade pensar que nós podemos recuperar tudo, a casa, o carro… a parte afectiva é que é difícil, tirando as histórias horríveis que aconteceram lá nessa altura e antes disso. Mas a parte afectiva é terrível. Aliás, ao escrever o livro apercebi-me que aquele princípio que nós gostamos tanto de aplicar à parte afectiva do «nada se perde, nada se ganha, tudo se transforma», na parte afectiva é impossível. Perde-se e ganha-se, não se transforma assim tanto. Este livro eu tinha de o escrever, acho que se insere naturalmente no que eu fiz e no que virei a fazer, quer dizer, é mais outro degrau entre os outros romances e os contos.
O Rui sonha com a América. Já o pai, apesar de ter perdido tudo, a sua terra, regressa a Portugal para ficar, sem desejo de voltar a partir. Haverá no desejo do Rui um desejo qualquer de vingança, em resultado de indignação e revolta contra o que a Metrópole fizera aos pais?
Não, não… Em Angola nós éramos muito americanizados, portanto é normal que o Rui tenha esse sonho. De qualquer maneira eu aproveitei esse sonho porque eu acho que Portugal ainda é fruto destas duas vontades, dos que ficam, dos que aceitam ficar, e há uma parte, uma parte mais infantil, uma parte, isto porque temos uma fronteira tão grande com o mar, que quer sempre partir, não é? E isto cria em nós uma espécie de esquizofrenia entre o ficar e o partir e, portanto, é mais neste sentido que está esse constante desejo de sair. E, na verdade, a América era porque era na altura digamos o país mais importante do mundo, o mais sugestivo, mas o Rui queria genuinamente sair, ele punha, aliás, também como hipóteses a Venezuela, o Brasil. Portanto, ele queria sair e há uma parte de nós portugueses, ainda hoje, que querem sair. Nós sempre tivemos este desejo de sair, um desejo que eu não encontro nos outros povos. De certa forma, a ideia que também está no livro é enquanto o mar estiver à nossa frente o futuro pode ser o que nós quisermos.
E qual foi o desafio formal que te impuseste neste livro?
O grande desafio formal deste livro, ao contrário, por exemplo, do que aconteceu com «Os Meus Sentimentos», em que há um único parágrafo e em que não há futuros, não há condicionais, não há nada disso, neste livro o desafio era ser adolescente, era ser um rapaz, era escrever com muito pouco vocabulário, porque ele não conhecia a maior parte das palavras, era recuperar o vocabulário angolano, que eu nunca mais ouvi, que nem está nos dicionários, era um vocabulário dos brancos lá. Portanto, foi um desafio formal diferente, mas cada livro tem um desafio formal.
É interessante que escolheste repartir o mal pelas aldeias, ou seja, não diabolizar ninguém, nem num lado nem no outro, isto por via do Rui, que é algo equidistante e tanto crítica os de «lá» como os de «cá»…
Sim e isso porque eu tento sempre aproximar as minhas personagens da vida. E eu não acho que houve um lado bom e um lado mau, eu acho que nós fomos sendo bons e maus à vez. Não há, nem acredito nesta coisa extremada entre o Bem e o Mal, é sempre esta guerra, esta tensão entre o Bem e o Mal… É a tal frase do São Paulo, muito bonita, que «não fazemos o bem que queremos, mas o mal que não queremos»; é natural em nós! Portanto o Rui, como aliás as outras personagens todas, foram sendo bons e maus à vez, foram sendo vítimas e carrascos à vez, foram sendo agressores e agredidos à vez, mas porque a vida é assim, não houve assim uma coisa programática. O que eu tento sempre é aproximar-me o mais possível da vida, essa é a grande inspiração.
Serias incapaz de voltar a Angola?
Sim, não me interessa muito ter picos emocionais. Canalizo os meus picos emocionais para a escrita e em termos pessoais gosto de uma vida mais apaziguada. De resto, acho que seria complicado voltar a Angola e rever uma série de coisas, até porque há pessoas que já não podem voltar comigo, como por exemplo o meu pai. Mas também porque, acima de tudo, Angola não é hoje, em termos políticos, um país aconselhável. Envergonha-me muito enquanto cidadã portuguesa o que se passa entre Angola e Portugal neste momento e não conseguiria visitar Angola enquanto turista, digamos assim.
Temos sido comprados e calados com o dinheiro sujo…
Isso e as condições em que o povo angolano vive. Imaginemos que Angola é um país muito próspero e rico, que, aliás, é, e pronto, podia investir em Portugal… Naturalmente que sim. O problema é que há um sofrimento enorme associado a esse dinheiro que vem de Angola, é um dinheiro criminoso, um dinheiro vergonhoso. E isso eu não gostaria de testemunhar enquanto turista.
Quase a terminar, achas que esta questão e terminologia dos retornados é hoje assunto enterrado?
Não, não é. Ainda há bem pouco tempo, a ver uma casa que estava interessada em comprar, e que estava em muito mau estado, a senhora disse-me que era assim, que estava naquele estado porque quem ali tinha vivido tinham sido retornados. Outro exemplo: mesmo da parte dos retornados acho que há ainda uma grande vergonha em reconhecer ou dizer que estiveram em quartos de hotel, eu não conheço ninguém que o diga ou assuma. Claro que à medida que as pessoas vão morrendo vão morrendo as memórias, mas que não está resolvido, não creio. Isto é… que se diga que a integração correu bem, porque não houve uma coisa terrível, não houve uma guerra civil, nesse sentido poderá dizer-se que correu bem, mas não foi uma boa coisa, não podemos, como alguns intelectuais, dar o exemplo de Portugal como exemplo de uma integração perfeita.
Em que livro trabalhas agora?
Estou a trabalhar n’«O Amante Americano», que aliás já estava escrito antes deste, ou quase, porque entretanto decidi escrever «O Retorno». Agora voltei a’«O Amante Americano». É um romance sobre as relações entre o velho mundo e o novo, neste caso a Europa e os Estados Unidos, ou Portugal e os Estados Unidos, em concreto. Acima de tudo tem que ver com o que nós também estamos a viver, que é a decadência de uma civilização como a conhecemos. «O Amante Americano» centra-se acima de tudo na decadência da família ocidental.
DAQUI

sábado, 5 de novembro de 2011

Do Jornal de Angola Online: Lubango no coração dos portugueses

Artigos
Muanamosi Matumona | em Lisboa

Lubango no coração dos portugueses

13 de Agosto, 2010
Noto que já lá vão anos em que a cidade de Lisboa continua a mesma, pois, uma vez posto cá, vive-se o ritmo de sempre, cruzamo-nos com as mesmas pessoas e também as conversas acabam de ser as mesmas. Porém, são inegáveis as novidades que a capital portuguesa registou, pois já lá vão os tempos em que a capital lusa era encarada como uma zona satélite de grandes cidades europeias, como Madrid, Paris, Londres, Frankfurt, Roma, etc.
Hoje, mesmo mantendo a sua “espiritualidade”, notam-se sempre nela ares de mudanças, bem configurados em grandes novidades que fazem dela uma cidade do século XXI. A rede metropolitana já foi alargada, a economia vai resistindo face à crise internacional que assola todo o mundo, os turistas vão aparecendo em massa nesta época do ano, o número de africanos vai diminuindo paulatinamente, pois as obras, que constituíam uma grande ajuda para muitos deles ganharem o pão à custa do seu suor, já não aparecem com muita facilidade. Isto demonstra, realmente, que Lisboa cresceu, houve investimentos para melhorar a sua imagem e agora é tempo de apostar noutros desafios, sempre dentro dos cânones da modernidade. Por isso, fala-se, hoje, de um Portugal moderno e global...
Neste prisma, vê-se, hoje, um Portugal mais virado para uma das suas antigas colónias: Angola, que durante o tempo colonial era vista como a “menina bonita” dos conterrâneos de Camões. A independência traçou um destino diferente e a História de Angola teve de ganhar outros contornos, “empurrando” Portugal para o seu devido lugar, pois o povo angolano, com a independência, ganhou respeito e maturidade para caminhar de uma forma mais solta. Enquanto o então império português se via reduzido, e confinado dentro do seu pequeno, mas grande mundo, os portugueses tiveram que cair no real, tomando consciência da nova página da História tanto do seu país como de Angola.
Agora, fala-se da cooperação, do diálogo, do respeito mútuo. Mas fala-se, também, do regresso à Angola querida. Ontem, era uma Angola dividida, cansada, abalada, sofredora, porque vítima de uma guerra cruel que ceifou vidas e destruiu muitas infra-estruturas, forçando o país a atrasar-se na corrida para o progresso e desenvolvimento. Registava-se, na altura, uma grande “fome” e “sede” da paz e da democracia. Hoje, tudo passou e vive-se uma era nova, uma Angola nova, sendo um país apostado a acolher tudo e todos, num momento crítico da História, pois todos os povos e nações gritam como um “diabo” atormentado no fogo do inferno. Tudo por causa da crise económica que está a ameaçar todos os países. Ricos e pobres.
É, justamente, neste contexto que os portugueses estão a manifestar, cada vez mais, o interesse em regressar, ou instalar-se, em Angola para encontrar meios necessários para escapar à crise que está a afectar o seu país. Isto não constitui qualquer novidade, pois portugueses e angolanos bem sabem da realidade que está a marcar, hoje, os dois países. Nesta perspectiva, sempre que visito a terra de Camões, registo sempre versões, episódios, experiências, histórias, emoções bem diferentes... Interpelações não têm faltado, pois as movimentações dos nossos irmãos portugueses para o país de Ngola Kiluanji, Nzinga Mbandi, Nzinga Kuvo, Mandume, Ekuiki, são constantes. E quando isto acontece, a alegria tem sido sempre bem visível no seu rosto. Formidável, esta operação, que faz com que diariamente os voos Lisboa/Luanda/Lisboa estejam sempre cheios.
“Agora é Angola que está a dar...”, “Portugal e os portugueses estão muito cansados”, “Vamos para Angola trabalhar e ganhar muito dinheiro”, “Viva a ‘nossa’ Angola”, “Para frente, angolanos”, “Angolanos e portugueses de mãos dadas”, etc., são as frases que estão a sair, actualmente, da boca dos portugueses quando se preparam para ir explorar ou sondar o terreno. Desta vez, foi na Parede, nos arredores de Lisboa, que encontrei uma senhora portuguesa, com os seus dois filhos, despedindo-se das religiosas que gerem o centro infantil onde estudam os meninos. A senhora foi informar a direcção que os seus filhos não aparecerão na escola quando começar o novo ano lectivo.
Bem animada, a senhora explicou, religiosamente, o motivo desta decisão. Com uma voz serena, disse ela, contemplando o local que já não verá diariamente, como era antes, quando quase todos os dias ia deixar e recolher os seus dois rebentos: “O meu marido já tinha enviado a carta de chamada. Já temos visto e ainda esta semana estaremos em Angola, mais concretamente na cidade do Lubango, onde ele trabalha numa empresa portuguesa, a ganhar muito bem. A nossa vida vai mudar. Lá teremos tudo. Sinto-me feliz graças a este país que em tempos idos era a nossa província. Estou bem feliz, pois a cidade do Lubango está no meu coração e no dos outros conterrâneos que já lá estão e no dos que se preparam para também para ir para lá. A nossa vida vai mudar. Viva Angola!”.
Impressionante esta revelação, que me deixou sem palavra! Sinceramente, limitei-me a ver e a ouvir atentamente a senhora, que não escondia a sua alegria e não se cansava de elogiar os passos que Angola continua a dar rumo ao seu desenvolvimento e, consequentemente, à consolidação da paz. Depois desta visita que efectuei àquela comunidade religiosa, não me canso de meditar sobre a atitude desta senhora. Sem qualquer preconceito, nem tão-pouco espírito de vingança e também sem ressentimentos nem complexos, a única conclusão a que cheguei é esta: os portugueses gostam mesmo de viver em Angola.

Em média, as pessoas que emigravam para Angola e Moçambique eram mais escolarizadas que a média dos portugueses :entrevista a Cláudia Castelo


Cláudia Castelo é doutorada em Ciências Sociais pelo ICS. A sua tese de doutoramento, sobre o colonialismo de povoamento, foi publicada em livro (Passagens para África. O Povoamento de Angola e Moçambique com Naturais da Metrópole, Porto, Afrontamento, 2007). Actualmente, enquanto investigadora auxiliar no IICT, desenvolve um projecto de recolha de histórias de vida de cientistas e técnicos da Junta de Investigações do Ultramar. A entrevista foi concedida ao Observatório da Emigração no dia 26 de Abril.
Observatório da Emigração - Qual o percurso académico e profissional que a levou a estudar a emigração portuguesa para Angola e Moçambique?
Cláudia Castelo (à frente CC) – O meu percurso académico começou com a licenciatura em História. Segui com o mestrado em História dos séculos XIX e XX - mas com incidência no século XX. Depois fiz uma pós-graduação em ciências documentais - para fugir àquele fado das bolsas que não permitiam grande estabilidade em termos profissionais e as ciências documentais, de facto, abriram-me uma via profissional - e entrei como arquivista para a Câmara Municipal de Lisboa. Mas mesmo antes de ter essa saída profissional, comecei a fazer o doutoramento em ciências sociais, no Instituto de Ciências Sociais, sobre esta temática do colonialismo de povoamento e da migração de naturais de Portugal - da metrópole e das ilhas - para Angola e para Moçambique, ao longo do século XX até à descolonização. Porque é que eu escolhi esse tema? Já não sei reconstituir muito bem, mas eu associo ao facto de, quando estudei a recepção do luso-tropicalismo em Portugal na minha tese de mestrado, me ter confrontado com um discurso muito generalizado, na sociedade portuguesa, sobre a especial capacidade da relação dos portugueses com os trópicos. Todo esse discurso era anterior às teorizações do Gilberto Freyre, conseguiu perdurar depois de terem sido publicadas as principais obras dele e, sobretudo, depois de ele cunhar mesmo o conceito de luso-tropicalismo em 1951. E houve um livro do Gerald Bender que também foi muito importante para eu ter escolhido este tema, com o nome "Angola sob o Domínio Português. Mito e Realidade", em que o argumento é que há todo um discurso em torno da especificidade do colonialismo português e da relação de Portugal com os trópicos, que depois não corresponde à realidade. Eu também reparava que começavam a surgir aquilo que hoje já mais ou menos se convencionou chamar "os romances de retornados", ou uma "literatura de retornados", que focava muito a experiência de vida no período do colonialismo tardio, anos 1950-60, e que mostrava que, com a descolonização, eles tinham perdido um determinado nível de vida, uma determinada situação económica e social, mas também o que eles enfatizavam muito: uma relação especial com África. E eu quis ir à procura de quem eram esses portugueses. Porque havia o estudo de Rui Pena Pires sobre os retornados que, de certa forma, também permitiu desmistificar bastante o que foi esse movimento de retorno e integração dos retornados. Como Rui Pena Pires mostra no seu estudo, apesar de inicialmente ter havido alguma tensão na sociedade portuguesa, os retornados também rapidamente se tornaram invisíveis, na medida em que se integraram muito bem e eram pessoas com alguma capacidade de adaptação. E depois dessa integração na sociedade portuguesa - bem sucedida se compararmos com o caso francês dos retornados da Argélia - e de ter sido feito um luto - que eu acho que fizeram - pela perda daquilo que tinha sido o seu paraíso, emergiram muitos depoimentos de retornados que falam da sua experiência de vida em África, na forma de ficção. Pronto, foi mais ou menos neste contexto que eu procurei estudar, não o retorno e a integração na sociedade portuguesa, mas quem tinha ido, sobretudo para Angola e para Moçambique, porque eram - ou pretendia-se que fossem - colónias de povoamento branco.
OEm - A pergunta a seguir prende-se precisamente com isso. Quem eram os portugueses que iam para as colónias?
CC – Aquilo que me apercebi é que a migração para Angola e Moçambique teve um boom relativamente tardio, acontece sobretudo já depois da 2ª Guerra Mundial e com especial incidência nos anos 1950 e 1960, embora o início das guerras coloniais - primeiro em Angola em 1961, na Guiné em 1963 e em Moçambique em 1964 - faça com que posteriormente comece a haver um abrandamento desse fluxo migratório; e isso é mais notório, se não estou em erro, para Moçambique. Por isso, os contingentes não são muito elevados, se compararmos o movimento migratório destas colónias com o movimento migratório com o Brasil e, depois, com a França ou outros países europeus. Eu digo migração [sem "e"] porque, na época, como estávamos a falar de um mesmo espaço imperial, não era considerado um movimento para fora do território nacional - embora geograficamente fosse disperso. E é por uma certa consistência e rigor histórico tendo em conta o contexto da época, não tem, por isso, nenhuma carga ideológica associada. De entre a emigração portuguesa são, de facto, destinos menos apetecíveis, embora nos anos 1950 e nos anos 1960 haja um pico nos movimentos. Eu não me consigo lembrar dos números que estavam envolvidos, eu tenho alguns quadros que os têm para os vários destinos e que permitem, depois, fazer essa comparação. Uma coisa que é curiosa é que qualquer português que quisesse emigrar para Angola ou para Moçambique deixou de precisar de passaporte para esses destinos a partir de 1907. Isso faz com que a ida de portugueses para Angola ou para Moçambique com o intuito de se fixarem de forma permanente, não conste das estatísticas. Isto é muito aborrecido, do ponto de vista de quem quer estudar estes movimentos migratórios, porque não há números já determinados para podermos chegar à estatística e retirar que em 1908 foram não sei quantas pessoas, em 1909 outras tantas... Aquilo que se faz é tentar ver, no movimento de passageiros - primeiro só através de barco, depois através de transporte aéreo - a diferença entre quantas pessoas foram e quantas pessoas voltaram, para termos um número aproximado daqueles que, supostamente, iam para fixar residência. Mas isto também é muito frágil, porque umas pessoas iriam de férias, outras iriam em negócios e mais do que uma vez ao ano; portanto, são números aproximados. Por isso, aquilo que eu apresento é o número de pessoas que entraram em Angola e o número de pessoas que saíram de Angola, ou de Moçambique - há também dados nas estatísticas para o conjunto das colónias, ou para o conjunto do Ultramar, mas são dados aproximados - e depois, o saldo será o que vamos seguir como, hipoteticamente, o número das pessoas que se fixaram. E nós temos, por exemplo em 1943, 1.147 pessoas que, supostamente, se terão fixado no conjunto do Ultramar. O ano em que este número é mais significativo é em 1960: 14.896 pessoas. Por isso, estamos a falar de números muito inferiores aos números que temos para o Brasil ou para os países da Europa. Em termos escolares, quem eram estas pessoas? Aquilo que nos apercebemos é que, em média, as pessoas que emigravam para Angola e Moçambique eram mais escolarizadas que a média dos portugueses. Era um conjunto de pessoas muito diversificado em termos escolares, pois estavam representados analfabetos, pessoas que só sabiam ler, pessoas que já tinham o ensino secundário ou liceal e também pessoas com o ensino superior. Mas apesar desta representação heterogénea, em média eram mais qualificados que a média dos portugueses. E eram mais qualificados que os emigrantes no conjunto para os outros destinos. Em termos de ocupações profissionais na origem, eram sobretudo pessoas ligadas ao sector terciário, embora quando este movimento atinge o seu pico - entre os anos 1950 e 1960 - estejam mais representadas pessoas do sector primário. Depois, no destino, as pessoas iam sobretudo dedicar-se ao comércio, à administração pública, aos serviços. Embora o Estado Novo tenha constituído, tanto em Angola como em Moçambique, colonatos e núcleos de povoamento rural, as pessoas mobilizadas para esses núcleos eram uma ínfima parte, uma minoria; as pessoas concentram-se sobretudo nas cidades. Em Angola concentram-se sobretudo em Luanda, Nova Lisboa, Lobito, Benguela, Sá da Bandeira... E em Moçambique isso é ainda mais notório porque a concentração é sobretudo em duas cidades: Lourenço Marques e Beira.
OEm - E isso, ao longo de todo o período que referiu [1950-1960]?
CC –Ao longo de todo o período. E há a tendência para se acentuar este povoamento eminentemente urbano. Na semana passada, numa conferência ali no ISCTE, esteve cá um historiador francês, René Pélissier, que em 1973 conseguiu autorização para ir visitar os postos militares portugueses na fronteira Leste de Angola e, de facto, naquelas zonas não havia praticamente colono nenhum, eram zonas muito pouco povoadas de portugueses idos daqui. O que houve muito nos anos 1960, consequência da Guerra Colonial, foi um desenvolvimento das cidades e das infra-estruturas de todo o género, sobretudo das comunicações, das estradas e dos portos, para potenciar esse desenvolvimento urbano. Por isso, aquela ideia do português no interior, no sertão, com uma fazenda de proporções pequenas ou médias, associada a um pequeno comércio de permuta com as populações autóctones daquela região, é claro que existia em Angola e em Moçambique, mas envolvia um número muito menor de portugueses. E eu também dou números por aqui [edição da tese] que mostram bem essa concentração urbana. Por todo o território de Moçambique a actividade comercial estava muito nas mãos de comerciantes indianos. E uma coisa que eu não disse, ainda há uma diferença relativamente a Angola: vão mais pessoas trabalhar na Administração Pública e esta estava concentrada na capital da colónia, no caso em Lourenço Marques, e as pessoas são ligeiramente mais qualificadas do que aquelas que vão para Angola. É uma diferença que não é muito notória, embora quando falamos com pessoas que vieram de Angola ou de Moçambique, elas costumam enfatizar que para Moçambique seria uma emigração ainda mais qualificada, ainda que os números não mostrem que a diferença fosse assim tão acentuada.
OEm - Já falou nas qualificações, nas profissões, na inserção à chegada... Foi possível saber as origens geográficas dos emigrantes?
CC –Aquilo que eu reparei é que a maioria dos colonos para Angola, como para Moçambique, era de Lisboa. As outras origens ou naturalidades que aparecem mais representadas são Porto e região Norte, salvo erro. Foram também pessoas da Madeira e dos Açores e, tendo em conta as populações na origem, se calhar essas migrações foram muito numerosas mas, em termos gerais, podemos ver que os maiores contingentes vinham de Lisboa. Temos aqui sempre Lisboa e o Porto, Viseu também é muito representativo, Bragança e Aveiro... Isto vai oscilando, mas aqui é para Moçambique, salvo erro, e Lisboa está sempre à frente. Depois o Porto...
OEm - Angola é diferente?
CC –Em Angola, estão mais equiparados Lisboa e Porto, mas isto depois também é por fases. Há bocado, o que eu estava a querer dizer é que em números absolutos a maioria dos migrantes era natural de Lisboa; depois Porto, Viseu, Guarda, Aveiro, Bragança, Vila Real. As regiões que menos contribuíram foram Alentejo, Setúbal, mas também algumas do Norte, como Viana do Castelo e Braga, também Faro. Mas se levarmos em conta a proporção dos migrantes na sua região de origem, constatava-se que o Norte e o Centro interior eram zonas de onde mais se partia para África, destacando-se em termos relativos o distrito de Bragança, depois a Guarda, depois Vila Real e Viseu.
OEm - O seu estudo é mesmo desde o início do século XX?
CC –Não, porque só consigo obter elementos quantitativos a partir dos anos 1940. Aquela questão de ter deixado de haver o passaporte é muito complicada, porque realmente esta emigração deixa de constar das estatísticas da emigração. E depois, só quando passa a haver informação sobre embarcados para o Ultramar nos anuários estatísticos - embarcados para Angola, embarcados para Moçambique - e desembarcados vindos de lá, é que posso começar a estabelecer esse contingente. E as estatísticas não nos ajudam nada porque são muito pouco homogéneas: para determinados anos ou para determinados períodos vem a naturalidade, mas para outros já não vem. E há uma grande discrepância ao nível das ocupações, porque ao longo deste período, que não é assim tão grande - entre 1940-73 - vão mudando as categorias e é muito difícil estabelecer comparações. É possível ter os contingentes em termos muito gerais, percebendo pelos censos quantas pessoas brancas havia de origem portuguesa, em Angola e em Moçambique, em 1900, e depois em 1920. E vê-se mais ou menos a evolução, embora tenhamos de ter em conta a evolução natural da população. E depois há outras fontes onde vamos buscar alguma informação, mas nada que nos permita estabelecer um quadro relativamente estável.
OEm - E quando diz "brancas" é porque na altura havia estatísticas racializadas, não era?
CC – Sim. Nas estatísticas aparece "branco", "negro", "misto" e em Moçambique aparece "amarelo" para as populações de origem chinesa e indianos. Em Angola praticamente só vinha mesmo na estatística "branco", "negro" e "misto". De entre os brancos, sobretudo em Moçambique, muitos não eram portugueses e isso a estatística também nos mostra. Quando vamos ver o Censo Geral da População em Moçambique, havia, até muito tarde, comunidades estrangeiras relativamente significativas de britânicos, sul-africanos, e em Angola isso já não se nota tanto. Há imensas categorias aqui que se misturam. E para perceber quem eram de facto os portugueses que estavam em Angola e em Moçambique que tinham nascido na metrópole, às vezes não é muito fácil porque se olharmos para o número de brancos não nos diz nada.
OEm - Não sei se conseguiu, pelo seu trabalho, saber as razões pelas quais as pessoas se mudavam para África... Havia projectos que explicavam porque é que as pessoas mudavam, processos mais organizados pelo governo, não era?
CC – Gostaria, se calhar, de ter desenvolvido mais essa parte relativa às motivações. Aquilo que eu consegui apurar é que as motivações são muito diversas, não podemos escolher uma. Mas parece que, e isso o Rui Pena Pires já dizia quando estudou os retornados - e os retornados também tinham ido antes de ter havido retorno, embora muitos fossem os filhos ou os netos -, os factores de atracção estavam muito mais presentes do que os factores de repulsão. Sobretudo depois do fim da 2ª Guerra Mundial, em que há uma alta das cotações dos géneros coloniais, as pessoas iam atraídas pelas possibilidades de ascensão social e de melhoria das suas condições económicas. Também terá sido importante, em alguns segmentos de pessoas que foram, toda a propaganda que o Estado Novo foi produzindo e alimentando sobre o Império Português. Há algumas referências, nomeadamente de pessoas que em Angola foram administradores, que trabalharam na máquina burocrática colonial, de que todas aquelas coisas que aprenderam na escola primária, todas aquelas actividades tais como a Semana das Colónias, as grandes exposições, todas essas acções de propaganda em prol do império, também disseram alguma coisa às pessoas. Porque aquilo que se dizia era que Portugal tinha uma missão civilizadora a cumprir em África. Essas coisas também podem ter tido o seu papel na motivação. Há toda uma literatura, nomeadamente do Henrique Galvão, de exaltação da presença de Portugal em África e, por alguns testemunhos que há, pode ter tido algum papel. Depois há outra coisa que não sei se subliminarmente poderá estar relacionada, que é: a pessoa, independentemente do seu estatuto económico ou social aqui da metrópole, indo para uma sociedade colonial ia sempre situar-se no estrato superior da sociedade. Em termos políticos, e em termos económicos, sociais e simbólicos, os colonos eram sempre os que estavam entre os privilegiados; e depois havia uma quantidade imensa de indígenas. O estatuto do indígena só acaba em 1961 mas, mesmo depois de abolido, os colonizados estariam no patamar inferior da sociedade. E não sei se isto, até de uma forma inconsciente, terá tido o seu peso. Um dos motivos pode ser o espírito de aventura ou o empreendedorismo de algumas pessoas que aqui não tinham forma de o concretizar, de alargar horizontes, e havia muito a imagem de que os horizontes eram mais largos... A comunicação social, mesmo que ainda só a imprensa e a rádio - a RTP começou só nos finais dos anos 1950 - teve um papel muito importante na tal questão da propaganda de passar uma imagem mitificada de África e de chamar muito os portugueses ao dever de ir colonizar. Mas, apesar de toda esta retórica, o Estado português não permitia, até muito tarde, que as pessoas fossem para Angola e Moçambique e fixassem lá residência de qualquer maneira, até muito tarde havia muitas restrições à ida de colonos. Só em 1962 é que a emigração para as colónias se tornou completamente livre. A pessoa decidia que ia e, desde que tivesse dinheiro para pagar a passagem, podia ir. Mas isto, só a partir de 1962.
OEm - Até lá o que é que era preciso?
CC – Até lá, quem quisesse ir, se que não cumprisse determinados requisitos - e os requisitos eram ter estudos superiores, determinados rendimentos ou propriedades/empresas no destino - não podia ir sem pedir autorização ao Ministério. Como é que as pessoas geralmente faziam? As pessoas que não constavam desse quadro muito restrito? Tinham que ter uma carta de chamada de alguém que vivesse nas colónias e a pessoa que estava no destino tinha de se responsabilizar por dar trabalho ou assegurar a subsistência de quem estava a chamar. Isto fazia-se muito em família, ou pessoas das mesmas aldeias, das mesmas terras. E então o Ministério podia autorizar. O Estado queria prevenir, ou queria impedir, que fossem para as colónias colonos pobres que não tivessem emprego no destino e que, de certa forma, passassem uma má imagem do colonizador; como alguém que fosse para as colónias e depois andasse lá a pedir, que não tivesse eira nem beira, que tivesse de ir para o asilo ou que tivesse de ser remetido outra vez para a metrópole - e isso aconteceu também. E isso depois era a expensas do governo colonial, o que também saía caro. Até muito tarde houve a insistência, da parte dos governadores coloniais, para que não se abrisse completamente a emigração para as colónias, para impedir também a chegada de pessoas que não tivessem depois forma de subsistência. Porque pessoas que não tivessem determinadas qualificações escolares, ou formação profissional, acabavam por ir concorrer com os nativos, cuja mão-de-obra era praticamente gratuita. Portanto, e voltando às motivações, estas devem ter sido muito diversas. É claro que nas pessoas que foram para os colonatos rurais, a motivação seria mesmo fugir a condições de vida muito difíceis na metrópole. Eram jornaleiros, pessoas que viviam uma vida muito dura e que tinham ali o sonho de virem a ser proprietários de uma pequeníssima parcela de terra porque o que lhes era concedido eram quatro hectares. Mas a esmagadora maioria dos colonos seria, de facto, movida pela possibilidade de ascensão social e, no destino, realmente havia essa capacidade de atracção, sobretudo com a alta cotação dos géneros coloniais e, depois do início das guerras coloniais, com o acelerado desenvolvimento económico que Angola e Moçambique tiveram. Angola, salvo erro, era o segundo exportador mundial de café e isso permitiu um desenvolvimento muito notório da economia. No final dos anos 50 e dos anos 60, todos aqueles planos de fomento dirigiram muito dinheiro ao desenvolvimento das infra-estruturas e ao desenvolvimento económico e social daqueles territórios e, então, pessoas com altas qualificações, nomeadamente pessoas licenciadas, ou mesmo pessoas com os estudos liceais, médios, jovens que acabaram os seus cursos, viram ali uma possibilidade de emprego e uma situação económica e social bastante favorável.
OEm - Há pouco falou dos colonatos. Foram organizados pelo Estado...
CC – Pelo Estado, sim.
OEm - Durante todo o período, ou mais em datas precisas?
CC – Os colonatos mais paradigmáticos são criados nos anos 1950. Em Angola, o Colonato da Cela e o Colonato do Cunene; em Moçambique, o Colonato do Limpopo. O da Cela é logo no início dos anos 1950 e depois, os outros dois são inaugurados em 1954, por aí. Mas aí é um modelo imposto pelo Estado, associado ao regadio, tanto no caso do Limpopo, como no Cunene, associado a barragens, e depois todo o sistema de regadio. É um modelo imposto pelo Estado, as pessoas são recrutadas pelo Estado e enviadas para ali, geralmente em famílias, famílias numerosas, e aquilo que é imposto é que as pessoas devem cultivar a terra pelos seus próprios braços ou recorrendo à força de trabalho da unidade familiar, sem contratação de mão-de-obra local. Era um pouco "exportar" ou recriar em África as aldeias portuguesas, o modelo metropolitano da freguesia rural. Geralmente nesses colonatos, inicialmente e por opção, não havia abastecimento de água, nem rede eléctrica. As mulheres tinham de ir à fonte buscar água, o trabalho agrícola era feito com recurso a bois, uma visão muito tradicionalista e de um romantismo rural de manter as pessoas numa pobreza... Quer dizer, numa auto-subsistência que não permitia grandes voos. E é interessante constatar que enquanto o Estado Novo não queria e tinha pavor da ideia dos brancos pobres nas cidades, foi o próprio Estado que criou estes colonatos em que o horizonte das pessoas também era assim uma pobreza, uma mediania... Nos campos as pessoas podiam ter aquela vida pobre, nas cidades havia o pavor dos brancos pobres.
OEm - Tenho mais uma ou duas questões. Uma, que não sei se conseguiu apurar, é se as pessoas iam mais sozinhas e depois faziam reunificação familiar, ou se iam logo em família...
CC – Sim, a partir dos anos 1940 é uma migração sobretudo de famílias. Uma coisa que é muito valorizada por parte do Estado é as pessoas irem em família, e também para não haver o perigo da cafrealização, dos homens irem sozinhos e acabarem por se juntar a africanas, havia também esse terror. Havia este terror e havia o discurso que exaltava à capacidade de os portugueses se miscigenarem. Isto é, por vezes, contraditório e vai evoluindo ao longo do tempo, mas quando já estamos na grande exaltação da criação das sociedades multirraciais em África, já não encontramos tanto o discurso que foi o estigma negativo dos mestiços. Mas, de qualquer maneira, ainda coexistem os dois discursos. Então, as pessoas iam sobretudo em família, muito cedo se tornou uma migração em família.
OEm - A outra questão tem a ver com o conceito de colono. Foi sempre utilizada essa designação ou houve alguma mudança para a designação de migrante? A designação consta de documentos oficiais?
CC – O conceito de colono nas estatísticas reporta-se às pessoas que iam para Angola e para Moçambique...
OEm - Ah, está mesmo presente nas estatísticas!
CC – Está. Designa as pessoas que iam com passagem paga pelo Ministério do Ultramar - ou das Colónias inicialmente, em 1951 passou a chamar-se Ultramar - para se fixarem em Angola e em Moçambique, independentemente de irem para zonas rurais ou para zonas urbanas e mesmo aqueles que não iam para nenhum colonato dirigido pelo Estado. É claro que as pessoas, a si próprias, não se viam como colonas. Pelo menos aquilo que eu constato através de conversas informais, e até vendo outro tipo de fontes, é que ninguém diz "eu fui colono em Angola ou em Moçambique". As pessoas não se revêem muito nessa terminologia, ou então associam o colono àquele que ia para os colonatos oficiais. No meu trabalho utilizo a designação colonos para todas as pessoas que se iam fixar em Angola e em Moçambique, independentemente do que iam fazer no destino. Na documentação aparece, às vezes, o conceito de povoador, mas migrante é raro. A designação "colono" era uma designação aceite e utilizada pelo Estado, acho que vem do latim e significa colonizar a terra, trabalhar a terra. E, então, como a maior parte dos colonos em Angola e em Moçambique até viveu em meios urbanos, penso que também será por isso que as pessoas não se reviam muito nesse conceito.
OEm - Por último, se quiser acrescentar alguma coisa...
CC – Não é que tenha a ver directamente com a temática da emigração, mas aqui no Instituto de Investigação Científica Tropical, que é o organismo herdeiro ou sucessor da Junta de Investigações do Ultramar - onde sou investigadora auxiliar contratada ao abrigo do Programa Compromisso com a Ciência - estou a fazer uma recolha de histórias de vida e de memória oral sobre as missões científicas às colónias. Tenho feito uma recolha com investigadores e técnicos que trabalharam na Junta das Investigações do Ultramar e que fizeram trabalho de campo científico nas colónias. Acabaram por ser migrantes temporários, eles próprios, ao longo de períodos mais ou menos longos. Estas missões eram organismos temporários criados para desenvolver investigação científica nas colónias, nas várias áreas do conhecimento. Geralmente, os investigadores estavam aqui na metrópole durante o Inverno, a Primavera e o Outono e, no Verão, durante as férias escolares daqui - porque alguns destes investigadores da Junta de Investigação do Ultramar eram também docentes universitários nas universidades portuguesas - iam às colónias fazer trabalho de campo; por vezes passavam um mês, dois, três, a fazer trabalho de campo em Angola e em Moçambique, na Guiné... Lembrei-me, embora o enfoque do projecto não seja a migração, que eles, enquanto estavam a fazer trabalho de campo em Angola e em Moçambique, às vezes durante três meses seguidos, acabavam por ser migrantes temporários. O nosso enfoque é a investigação científica que foi produzida no âmbito das missões. Paralelamente estamos a construir o arquivo de memória oral que vai estar disponível no site do Arquivo Cientifico Tropical Digital.
OEm - Mas também pode abordar essa questão, estou a perceber... É útil para nós sabermos isso, obrigada.
CC – E aborda a relação que estabeleciam depois com as populações locais, com as autoridades locais, tudo isso...
OEm - Óptimo. Obrigada!
Nota da edição: a investigadora refere, ao longo da entrevista, informação sobre a investigação que fez para a sua tese de doutoramento, já publicada.
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Da mesma autora  «O povoamento de Angola com naturais da Metrópole"clicar AQUI