domingo, 14 de agosto de 2011

Conspirações de Silêncio: Portugal e o fim do império colonial

Debret, de Vasco Araujo, 2009. 
Debret, de Vasco Araujo, 2009.


Após períodos de grandes febres – levantamentos, guerras, revoluções, massacres, genocídios – as sociedades acumulam silêncios para que todos os cidadãos prossigam a sua vida em conjunto. É somente depois que as memórias dolorosas retornam à superfície das sociedades. E então, às vezes, conflitos começam [ii].
Com estas palavras, o reputado historiador francês Benjamin Stora abre o prefácio à obra colectiva Les Guerres de Mémoires, la France et son Histoire dirigida por Pascal Blanchard et Isabelle Veyrat-Masson, um livro que procura fornecer uma visão panorâmica sobre os vários conflitos que irrompem na sociedade francesa como resultado do embate público entre diferentes versões sobre o passado nacional. Estes conflitos são não apenas factores de destabilização da integridade da narrativa nacional, pondo em causa o próprio modelo republicano que lhe dá forma, como também captam a atenção para acontecimentos históricos sobre os quais antes recaía uma aparente amnésia colectiva.

Debret, de Vasco Araujo, 2009.
Estes fenómenos não são exclusivos do contexto social e político francês, embora aí se tenham revelado em tempos recentes particularmente expressivos, mas antes são extensíveis a outros colectivos que têm de lidar com acontecimentos violentos ou episódios traumáticos dos seus respectivos passados nacionais. Estes acontecimentos são tanto mais problemáticos quanto a sua capacidade de destabilizar ou desestruturar narrativas estabelecidas e indisputadas sobre a identidade colectiva. Daí que, como refere Stora, um aparente esquecimento possa ser produtivo em períodos de grande conturbação política e social, pois mexer nas feridas do passado nestes momentos poderia abalar irremediavelmente as fundações em que assenta a solidariedade colectiva e, nesse sentido, pôr em causa o projecto nacional. É preciso tempo para lembrar o que não é passível de ser esquecido.
Enquanto isso não acontece, a lembrança contida na fala ou no corpo daqueles que viveram essas “grandes febres” de que fala Stora volve-se em silêncio. Um silêncio que mascara a culpa, o ressentimento, o medo e a vergonha, por baixo de uma superfície anódina e banal que serve de filtro à forma como os colectivos se relacionam com os traumas do passado. Através de um acordo tácito, socialmente estabelecido, capaz inclusivamente de vincular percursos sociais altamente assimétricos, estabelecem-se “conspirações de silêncio”, como as designou Eviatar Zerubavel[iii], mediante as quais se dita o que se pode - e o que não se pode - falar acerca do que é calado. Até que o silêncio é quebrado, e o que todos sabem existir sob a superfície do discurso público não mais pode ser ignorado.
Através do romance, tantas vezes auto-biográfico, da arte, do documentário, ou do humor, o indizível é dito, em tom emocional, parcial, implicado, explosivo. É geralmente nestas condições que o conflito emerge. As versões públicas autorizadas que sancionam o esquecimento destes passados por via da sua integração intencional num esquema de recordação abrangente e trivial, bem como os pactos de silêncio que se mantêm no tecido social, são destabilizados por incómodas e imprevistas erupções da memória que trazem à superfície as ambiguidades dos legados problemáticos. Emanadas a partir da experiência retida ou por via do estabelecimento de um diálogo criativo com o passado, estas erupções não carecem de aval público nem de acuidade para serem legítimas no seio dos debates sobre a memória, pois a sua autenticidade reside na capacidade que têm de instarem a uma revisão do passado à luz das condições contextuais do presente que convidam à sua actualização.
Debret, de Vasco Araujo, 2009.Debret, de Vasco Araujo, 2009.Debret, de Vasco Araujo, 2009.Debret, de Vasco Araujo, 2009.

Em Portugal, pelo facto das formulações da identidade nacional estarem tão fortemente associadas ao império, o seu fim não é recordado de uma forma especialmente efusiva. Nos palcos da memória veiculada pelas instâncias oficiais, na escola, em exposições, em ocasiões de estado, ou pela esfera mediática, em concursos televisivos, na música, e por vezes na literatura, o império mantém-se indisputável fonte orgulho colectivo, concebendo a identidade nacional à luz de um quadro idílico de trocas interculturais e de diálogos civilizacionais estabelecidos por via das extensões imperiais da nação. Salvo em raras excepções, como o caso da série Debret do artista plástico Vasco Araújo, que expõe cruamente as assimétricas relações de poder subjacentes ao projecto imperial mediante a exposição da violência exercida sobre os corpos colonizados, a memória pública associada ao império português, aqui concebido na sua longa duração, é francamente celebratória e apologética.
Talvez por isso, tanto no domínio académico como no de uma esfera mais ampla da designada sociedade civil, tenha sido notória a desatenção aos aspectos mais problemáticos da história do império, nomeadamente os associados ao seu fim, como a guerra colonial e o súbito repatriamento do ultramar de centenas de milhar de portugueses quando são concedidas as independências às colónias portuguesas em África. Também no domínio privado, das sociabilidades mais íntimas, se aprendeu a não perguntar sobre a guerra, ou a recordar África, e o retorno, de acordo com um punhado de lugares-comuns imputrescíveis, criando assim as condições para a transmissão geracional do silêncio. Acresce que, contrariamente ao verificado em outros contextos nacionais marcados por processos de descolonização, em que representantes das populações repatriadas, como os pieds-noirs em França, têm mantido uma voz activa nas guerras da memória, não se verificou em Portugal o desenvolvimento de um movimento associativo suficientemente forte para dar corpo e expressão identitária a um colectivo delimitável pela experiência do repatriamento, capaz de, a partir daí, contribuir para a problematização da memória do império colonial português.
Contudo, a expressividade da população portuguesa implicada no retorno, eventualmente envolvendo mais do que o meio milhão de pessoas identificado por Rui Pena Pires no estudo sociográfico publicado em 1984[iv], é um indicador suficiente para supor que as representações detidas por esta população, embora informadas por vivências específicas bem como por trajectórias sociais particulares, são influentes na forma como o colonialismo português e o seu fim são recordados e esquecidos. Porém, o facto de o repatriamento ter sido rápido e súbito, tendo sucedido maioritariamente em 1975, e de ter ocorrido num momento de agitação social e política, bem como a ideia de que a integração foi relativamente fácil, são factores que contribuem para um alheamento em relação às fracturas deixadas na sociedade portuguesa por este fenómeno em particular, e pelos legados coloniais em geral.
Este alheamento tem, porém, encontrado a sua expressão de protesto no campo da literatura, onde é notória uma obsessão memorialista associada ao fim do império, primeiro com a publicação de autobiografias ficcionadas ou romances autobiográficos focados na guerra colonial e, mais recentemente, na própria experiência colonial, com extensões para a descolonização e subsequente repatriamento. Geralmente relatos retrospectivos escritos na primeira pessoa, intersectando trajectórias individuais com a experiência colectiva do colonialismo português, estas narrativas sempre denunciam, independentemente da sua forma e conteúdo, as tensões geradas pelos legados coloniais, enunciando uma relação visceral com este passado, impressa no corpo, evocada pelos sentidos ou actualizada pelos afectos.
Debret, de Vasco Araujo, 2009.Debret, de Vasco Araujo, 2009.
A este propósito, o livro Caderno de Memórias Coloniais de Isabela Figueiredo é particularmente expressivo. Este livro, que resulta da selecção e composição das publicações que a autora vinha fazendo no seu blogue O Mundo Perfeito, quebra violentamente o pacto de silêncio mantido em torno do colonialismo português em África e do pânico colectivo gerado pelo repatriamento da população colonial. Ao contrário de outros títulos que abordam directamente a experiência do retorno, como é o caso do romance Os Retornados: Um Amor Nunca se Esquece de Júlio Magalhães, Isabela Figueiredo destabiliza os tropos mais comuns da narrativa quotidiana dos retornados. Estes tropos incluem a “vida paradisíaca” que se levava em África, o “tratar bem os nativos”, o sentimento de “traição” e o ressentimento relativamente aos políticos mais associados com os processos de descolonização e de repatriamento, e o trauma do retorno, devido à forma repentina como este sucedeu e às dificuldades de integração na ex-metrópole, geralmente representada como “atrasada” e “escura”. Júlio Magalhães confirma: “Jogar à bola, grandes farras em garagens, a praia, a mini-Honda”[v], assim o diz, se fazia uma juventude em África, onde a “vida corria quase de forma perfeita…”[vi].
O “sonho dourado”[vii] de Júlio Magalhães esfuma-se quando confrontado com o relato virulento de Isabela Figueiredo. Mas tal como Júlio Magalhães, também ela dá conta de um universo onírico, embora bem mais complexo, edipiano, subterrâneo, carnal, a partir do qual procura conferir inteligibilidade tanto à sua experiência íntima como à experiência transpessoal do colonialismo africano e do seu fim depois do 25 de Abril de 1974. A partir da relação com o seu pai, Isabela Figueiredo evoca as emoções conflituais, ambivalentes, associadas ao passado colonial português, num diálogo consigo mesma sobre o poder do medo, da culpa, da humilhação, na fixação dos limites da recordação. Ao transgredir estes limites, Isabela Figueiredo repudia uma paternidade que vai muito além da esfera das suas relações íntimas. Como conclui a determinado momento no decurso da sua narrativa, “Aquele homem branco não é o meu pai.”[viii]
Debret, de Vasco Araujo, 2009.Debret, de Vasco Araujo, 2009.O seu relato não fornece uma representação factual da realidade nem uma ficcionação desta. O facto de os afectos assentarem em temporalidades diferentes daquelas que estruturam a linearidade da memória histórica não diminui o seu valor como testemunho menmónico. Muito do que nos recordamos acerca do passado, mesmo acerca dos passados pessoais, é informado por outras memórias individuais, pelas histórias que lemos, pelas imagens que vemos, memórias diferidas que compõem a densidade do senso-comum acerca do passado. É desta forma interpessoal que se constroem narrativas incontestáveis sobre os acontecimentos pretéritos. O relato emocional de Isabela vem abalar a incontestabilidade da narrativa sobre o império colonial português, incitando uma reconstrução do passado a partir da sua erupção emocional no presente. Sem impor um significado definitivo à experiência recordada, o livro de Isabela antes actualiza o potencial de significado que esta experiência encerra, ao conduzir a passagem do não dito ao dito, do encoberto ao “não escondido”, como designado por Heidegger[ix]. Convida-nos, por isso, a “olhar sem filtro”[x], o espaço nu onde procura a redenção: “Todos os lados possuem uma verdade indesmentível. Nada a fazer. Presos na sua certeza absoluta, nenhum admitirá a mentira que edificou para caminhar sem culpa ou caminhar, apenas. Para conseguir dormir, acordar, comer, trabalhar. Para continuar. Há inocentes-inocentes e inocentes-culpados. Há vítimas-vítimas e vítimas-culpadas. Entre as vítimas há carrascos”[xi].
O livro de Isabela Figueiredo instiga, portanto, a uma ampla reflexão sobre um passado que até agora tem resistido à interpretação. Vai faltando, entretanto, um exame mais sistemático desta memória. Um exame capaz de estabelecer um diálogo entre a força reprodutora das instâncias de poder e a força, ora transformadora ora repressora, das emoções associadas à recordação e ao esquecimento deste passado. Deste diálogo poderá finalmente resultar a tão adiada reconciliação da nação com a sua história colonial.

Artigo publicado originalmente no Le Monde diplomatique, ed. portuguesa, Fevereiro 2011

[ii] Benjamin Stora, “Preface”, Pascal Blanchard et Isabelle Veyrat-Masson (dir.), Les guerres de mémoires, la France et son histoire,Paris, La Découverte, 2008, p.7.
[iii] Eviatar Zerubavel, The Elephant in the Room: Silence and denial in everyday life, Oxford and New York, Oxford University Press, 2006, p.2.
[iv] Rui Pena Pires et al, Os Retornados: Um Estudo Sociográfico, Lisboa, Instituto de Estudos para o Desenvolvimento, 1984.
[v] Júlio Magalhães, Os Retornados: Um Amor Nunca se Esquece, Edição Especial Limitada, Lisboa, Esfera dos Livros, 2008, p. 18.
[vi] Júlio Magalhães, p. 19.
[vii] Júlio Magalhães, p. 15.
[viii] Isabela Figueiredo, Caderno de Memórias Coloniais, 4.ª Edição, Coimbra, Angelus Novus, 2010, p. 53.
[ix] Martin Heidegger, Being and Truth, Bloomington, Indiana University Press, 2010
[x] Isabela Figueiredo, p. 27.
[xi] Isabela Figueiredo, p. 115.

Encruzilhadas históricas: reunir experiência e gerar convicções, entrevista à escritora Aida Gomes 1

 


Aida Gomes nasceu em Lundimbale, no Huambo em1967, onde passou a infância. Mais tarde Portugal e Holanda foram a sua casa, com experiências nas áreas de desenvolvimento em países como Camboja, Moçambique, Suriname, Libéria, Sudão e Guiné-Bissau, onde mora actualmente. É socióloga de formação e tem publicado em revistas e jornais. Lança, hoje, no encontro Correntes d’Escrita, em Portugal (dia 24 de Fevereiro), o seu primeiro livro: Os Pretos de Pousaflores pela Leya. Fala-nos sobre identidade, as ambiguidades das organizações não governamentais e da construção do Estado-nação em Africa e ainda sobre os impasses da Guiné Bissau.

Qual é a tua expectativa em relação a este primeiro livro?

Que comunique algo que seja vida na miríade de maneiras de ver, sentir, provar e pensar o que se lê. Embora tenha escrito Os Pretos de Pousaflores tendo em mente o cenário social de Portugal dos anos setenta, oitenta até ao começo dos anos noventa (exclusão social, contrastes acentuados entre rural-urbano, preto-branco, homem-mulher), a expectativa é de que, na leitura, as seis personagens angolanas e portuguesas se tornem reconhecíveis nas suas fraquezas, lugares-comuns, esperanças e medos. Entre elas há mal-entendidos e dores de parte a parte, como sempre houve e haverá entre seres humanos. Alegrias também. Que tenha conseguido através da literatura, na forma como a linguagem nos permite expressar sentimentos e emoções, criar uma visão sobre como Angola e Portugal se tocaram através de vidas imaginadas.

De que forma o livro bebe da tua história de vida e em que contexto quiseste trabalhar a narrativa?

Aristóteles definia a arte como a exteriorização de uma ideia à semelhança da vida humana; mas a Arte, era a seu ver, mais do que uma cópia da vida ou da natureza. A arte era a tentativa de criar um ideal da natureza e da vida, corrigindo-se-lhe as deficiências. Os Pretos de Pousaflores procura dar voz aos diferentes membros de uma família vinda de Angola entre 1976 e 1978 para uma aldeia fictícia de nome Pousaflores. Um pai solteiro e três filhos. A reacção da irmã, uma portuguesa beata à chegada de “pretos” na aldeia; a perspectiva do irmão, um português “cafrializado”; a perspectiva de uma mulher angolana que perdeu uma filha e os enteados; e finalmente, o olhar de três jovens produtos de encruzilhadas históricas. Mais do que uma história pessoal, Os Pretos de Pousaflores procura ser um retrato social ficcionado de um período que coincide com o fim do regime fascista em Portugal, o processo de descolonização e a vinda para Portugal de milhares de “retornados” das ex-colónias portuguesas. Os primeiros anos depois do 25 de Abril são difíceis do ponto de vista de transição política e socioeconómica. Portugal tinha de reajustar-se e reinventar-se a si mesmo, inclusive a sua relação com África e os africanos; e vice-versa.

Como tratas o “drama” vs sucesso dos retornados?

Do período que o livro retrata existe o mito que os chamados “retornados” foram uma história de sucesso porque trouxeram de África a dinâmica empreendedora, uma visão mais esclarecida, etc. No entanto, esta narrativa de sucesso apenas coincide com um grupo selecto, maioritariamente branco, de classe média, educação superior que tanto podia ser bem sucedida em Portugal, como no Brasil, Angola ou noutro lugar qualquer. Uma parte significativa dos “retornados” não foram histórias de sucesso: havia-os portugueses (brancos) e africanos de origens culturais e raciais miscigenadas. Foram as franjas menos bonitas da sociedade portuguesa. Nas cidades “coloriram” os bairros degradados e nas zonas rurais viveram a melancolia e o esquecimento dos mal-amados, sentimento de uma dor ou talvez um sono d’África, que perdura tal como a memória de D. Sebastião.

Sentes Angola como tua terra? O que é pertencer a algum lado?

Angola é onde está enterrado o meu cordão umbilical. É o riso e o humor quase cáustico de auto-flagelação. No definir da palavra “identidade”, penso que sou parte de uma diáspora angolana. Diáspora é um conceito moderno fascinante porque é paradoxal, pertença sem ser pertença. Um espaço imaginado, o reconhecimento de ser parte de uma comunidade que, distanciada de um solo, reconhece os sabores (Calulu), os sons (tanta música!), o gozar e finalmente as paisagens: os verdes do Huambo a Benguela são a minha paz, não as trocava pela serenidade dos lagos da Suíça. Todos temos um lugar de origem onde a nossa alma descansa. Nem que seja um lugar imaginário. Nos anos noventa queria tanto voltar para Angola e não podia por causa da guerra (lembro-me vividamente daquele sentimento de esperar pela paz, de canções a falar de uma paz que nunca mais vinha.) Finalmente consegui ir trabalhar para Angola entre 2000 e 2003 - durante os últimos anos da guerra. Foi uma experiência muito mais penosa do que trabalhar em países como Sudão, Libéria ou Guiné-Bissau, também eles marcados por conflitos e violência. Há quem diga que a guerra é uma forma de se fazer política, quando outros meios não funcionam. A maior vítima da guerra, diz-se, é a verdade. Tenho sempre consciente o enorme esforço que é construir-se um país de novo; nas casas novos tijolos, nas janelas vidros. Pergunto-me sobre as pessoas, se lhes basta também pintar de novo as paredes das casas. Na Holanda quem viveu a guerra ainda traz as marcas consigo; não consegue deitar comida fora porque passou fome, não consegue apagar de si a vulnerabilidade de ter sobrevivido (mesmo o ódio ao inimigo de então subsiste). Não sei até que ponto o facto de ter crescido fora de Angola, país onde questões políticas trouxeram uma guerra longa, afectou as minhas escolhas profissionais. Guerra, conflito e política foram os assuntos dominantes do meu trabalho.
 
fotografia de Marta Jorge

A experiência profissional aventurosa fez-te conhecer África e encontrares-te nela…

Enveredei por um percurso profissional que me levou a vários países africanos, e não só, todos eles envolvidos em conflitos. Um interesse genuíno em perceber a génese da construção do Estado-nação na sua variante africana, sabendo que os Estados africanos são identidades territoriais “delineadas” com uma régua na Conferência de Berlim e que os povos foram “aglomerados” e catalogados no processo de colonização. Na sua sabedoria, a União Africana (ainda na sua denominação Organização para a Unidade Africana (OUA)), e os líderes dos cinquenta e três Estados membros, decidiram que as fronteiras africanas eram sagradas. No entanto, no pós-independência poucos são os Estados que conseguiram criar entidades políticas e territoriais em que a maioria da população, ou mesmo metade, aufere o que a geração de Amílcar Cabral, Kwame Nkrumah e outros projectaram para África: auto-suficiência em termos económicos e políticos onde a população teria acesso a educação, empregos e estabilidade sócio-política. O mínimo necessário de dignidade humana que lhes foi negado durante séculos de colonização.


Quais são, na tua opinião, as principais adversidades para África?

Os problemas acumulam-se. Hoje, a maioria das populações africanas auferem de uma educação e serviços de saúde medíocres, enquanto que as elites têm ao seu dispor as melhores universidades, centros de saúde e hospitais nas capitais dos países mais avançados. Como contornar o facto de que o Estado africano representa frequentemente interesses de grupo, sejam estes de acordo com linhas étnicas, ou pseudo-políticas? O Estado africano preocupa-se predominantemente em estabelecer e consolidar redes nacionais de grupos e linhagens com ramificações económicas, militares, diplomáticas internas e externas com base numa competição renhida entre si (o conflito, inevitavelmente) para a capitalização de bens, prestígio e influência. As relações entre os grupos são de dependência (nunca de interdependência salutar) ou então, a aniquilação mútua, a sucessão e legitimação do poder é sempre problemática. As relações sociais da sociedade colonial, baseadas numa extrema desigualdade, foram reconfiguradas e fortalecidas, existem novas elites e velhas dinâmicas de desigualdade. Como mudar? Se olharmos para a América latina, independente desde há século e meio, vemos que, após tanto sangue e revoluções, temos, a par de crescimento económico, políticas sociais de desenvolvimento com maior equidade.

O continente africano atingiu recentemente a espantosa cifra de um bilhão de habitantes. Tem capital humano e económico suficiente para que não demore um século e meio a elevar-se e a sair da subserviência e desenvolvimento socioeconómico glutónico.

fotografia de Marta Jorgefotografia de Marta Jorge

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Sentes que as instituições internacionais multi-laterais, com as quais colaboras, têm contribuído realmente para uma melhoria da vida das populações?

A questão do desenvolvimento, em termos de realidade sociopolítica e histórica, tem várias vertentes, desde a geopolítica que determina interesses económicos estratégicos, a aspectos sociopolíticos, nos quais se insere a vertente humanitária ou de direitos humanos. É um mundo de paradigmas, de lutas de hegemonia e funciona tal qual o mundo: cinicamente ou com as melhores das intenções. No contexto profissional, estive ligada à cooperação multi-lateral em questões de paz e segurança mundial. Um emaranhado complexo. Nos anos noventa e mais recentemente, intervenções multi-laterais desastrosas para Estados e populações na Somália, Haiti, Ruanda ou Iraque. Esse era o pano de fundo para “as lições aprendidas” quando fui trabalhar na Libéria em 2004. Era necessário fazer-se melhor. Dag Hammarskjöld (1905-1961), o segundo Secretário Geral das Nações Unidas (de 1953 a 1961) dizia que a ONU não foi criada para criar o paraíso na terra; mas para que o planeta não se tornasse num inferno. Quando a Missão da ONU foi estabelecida em 2004 na Libéria, logo após a fuga de Charles Taylor, não havia praticamente ninguém no interior do país. Parte da população morrera ou tinha procurado refúgio nos países vizinhos, aterrorizados e fustigados por 16 anos de violência extrema. A Missão foi crucial na transição e na reposição da autoridade do Estado e na criação de um ambiente com o mínimo de estabilidade para que a população pudesse retomar as lavras e as escolas e tribunais no interior iniciassem as suas funções para as comunidades. Ao mesmo tempo que o período de transição era utilizado para a criação de mecanismos de controle do uso dos recursos naturais e reformar as estruturas do Estado. Hoje a Libéria é um país com uma governação política credível e legítima, onde foi eleita a primeira mulher como presidente no continente. Organismos internacionais multi-laterais contêm cada uma das vertentes de desenvolvimento e embora tenham vastos meios materiais e humanos ao seu dispor, o seu campo de actuação é frequentemente restringido pela necessidade de negociação de um grande leque de actores políticos estatais. Determinados lobbies podem levar uma causa para a frente ou fragilizá-la. Um campo de visão e de actuação mundial é diferente de uma organização não-governamental com menor capacidade de mobilização de meios materiais e humanos, mas que terá maior autonomia para definir o seu método e campo de actuação para melhorar a vida, por exemplo dos camponeses de aldeias no leste do Níger.

Como deveria funcionar a cooperação, sem se substituir aos deveres e competências dos Estados?

Estou cada vez mais convencida do que a cooperação deveria ser apenas um empurrão e não um soro permanente, que distorce mecanismos internos. Não penso que existam hierarquias ou consensos sobre a melhor forma de actuação na área de desenvolvimento: se a partir de projectos locais de pequena escala ou a partir do apoio ao nível macro na estruturação do Estado de países em vias de desenvolvimento. Pode-se tentar ver a floresta como um todo, ou apenas uma árvore ou um conjunto de árvores. Mas a água da floresta tem de vir do seu próprio solo ou tem de cair do seu céu. Quando os interesses representados por organismos multi-laterais são consensuais e coincidem com os das elites locais em termos de compromisso político para uma melhor governação com vista a melhorar o estado da nação, a actuação de um organismo como a ONU pode ser instrumental no sentido de se atingirem objectivos positivos. Quando as elites locais estão divididas ou não comungam a mesma interpretação sobre o que é uma boa governação ou respeito pelos direitos humanos, a ONU pode ter grandes dificuldades na sua actuação.

Bissau, fotografia de Marta Lança Bissau, fotografia de Marta Lança
Bissau, fotografia de Marta Lança  
Bissau, fotografia de Marta Lança
A experiência de trabalho na Guiné-Bissau ajudou-te a entender a complexidade deste país, certamente. Qual é o ponto da situação do país?

A Guiné-Bissau é um país especial. O Estado entrou em queda livre depois do conflito de 1998-1999. A última década foi de crises cíclicas, as quais resultaram na degradação progressiva do funcionamento do aparelho estatal e das condições de vida das populações, o que também afectou espírito guineense. Muitos daqueles jovens africanos que se metem em pirogas no mar aberto para alcançarem a Europa, ou atravessam o deserto para que libertos do Norte de África alcancem essa miragem de destino melhor (e só ouvimos falar quando os seus corpos aparecem sem vida nas areias das praias norte do Mediterrâneo), muitos deles são guineenses. Na Guiné, tal como em muitos países africanos, os jovens têm poucas perspectivas. Há uma música de José Carlos Schwarz que faz referência aos primeiros anos depois da independência e descreve como as pessoas, por já não saberem qual o melhor caminho a seguir, voam pelas ruas tão leves como penas. Três décadas depois da independência, os jovens ainda continuam a querer voar para mais longe do que as ruas de Bissau. No entanto, começam a surgir sinais positivos; muitos jovens formados na Inglaterra, Estados Unidos, Portugal, etc., estão a regressar. Será necessário integrá-los.

No passado recente, com a agudização dos problemas, houve apelos para que a comunidade internacional não abandonasse o país. A contrapartida era que as autoridades nacionais assumissem o interesse maior da nação em beneficio da estabilidade do país para que a população possa finalmente conhecer algum progresso socioeconómico. Ultimamente, a nível bilateral, Angola tem-se sobressaído no seu apoio à Guiné-Bissau, apostando no desenvolvimento económico e reforma das forças armadas. O meu trabalho num organismo internacional multilateral tem sido mais na área política. No acompanhamento de processos democráticos e análise. O resultado é ambivalente. A herança de 30 anos de descapitalização em termos educacionais, dinâmicas sociopolíticas de implantação da impunidade, o alastramento do tráfico de drogas, a necessidade urgente de reestruturação do papel das forças armadas auguram um processo longo de consolidação do Estado na Guiné. O papel da comunidade internacional é sempre dependente do posicionamento dos vários interesses a nível internacional, regional e local, em que nem sempre se comungam os mesmos objectivos. Na Guiné-Bissau, com uma população relativamente pequena de 1.5 milhão, é possível que os esforços de organizações não-governamentais a nível local tenham um maior efeito em termos de beneficiar directamente as comunidades face às dificuldades do Estado em se afirmar. O mais positivo do meu dia na Guiné-Bissau é a generosidade, humildade e a bênção do sorriso guineense, apesar de tantos avanços e recuos.

O que é ser africano?

A definição de uma identidade pessoal pode ir mais além da imutabilidade estática de raça, origem e nacionalidade. Existe sempre um leque variado de escolhas e é essa a grandiosidade da nossa condição humana. Uma pequena história: “A Eritreia, país situado no Chifre de África foi invadido e colonizado pela Itália, processo durante o qual foi anexado temporariamente à Etiópia. Este país, por sua vez, é o único Estado africano que conseguiu manter a sua independência e, em 1950, a resolução da ONU 390(A), 1950 fixa a união da Eritreia com a Etiópia. Seguiram-se 30 longos e duros anos de uma guerra dura de secessão contra a Etiópia. A Eritreia consegue a sua independência em 1993. No ajuste de contas pós-independência, um soldado eritreu, cuja mãe era etíope e o pai eritreu, foi acusado pelas autoridades de ter uma lealdade duvidosa, porque mista; propensa à traição por afinidade com os etíopes, escapou da pena de morte por um triz, e foi enviado para uma das zonas mais áridas e pedregosas do território eritreu. O soldado lá ia passando os seus dias de desterro à procura de insectos e água nas concavidades das pedras. Perto de uma pedra, encontra um dia uma flor branca e amarela. Tão solitária como ele porque ali não havia vivalma. O soldado ajoelha-se, fascinado, perante a flor e comenta: eu sei o mal que lhes fiz, mas tu flor, que mal lhes fizeste para que te mandassem para aqui?”

Isto a propósito de identidades e das suas amarras, de políticas de lealdade, do acaso que nos faz nascer num sítio ou noutro, do facto de que identidades são pontos de referência com significados fixos, mas os sentidos estão sempre em transição como as emoções questionando “o que fazemos aqui?” Daí também o papel importante da literatura, filmes, teatro no exercício de introspecção de uma entidade de origem africana.por Marta Lança


LER AQUI PRÉ-PUBLICAÇÃO “OS PRETOS DE POUSAFLORES

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Terra dos Condenados, por Luciano Amaral


De Caetano ao 25 de Abril, e do 25 de Abril ao PREC  às independências.
Os novos países.

 Para lêr o texto, clicar AQUI