sábado, 2 de junho de 2012

Dossier A revolução de Abril: ENTREVISTA António Gonçalves Ribeiro, general




General António Gonçalves Ribeiro




A história da ponte aérea por quem a tornou possível. O transporte de emergência que trouxe centenas de milhares de 'retornados' não estava previsto. Deve-se a este homem

No Verão de 1975 vem a Lisboa falar com o presidente Costa Gomes.
Com que estado de espírito?


Desesperado. Acompanhara todo o processo que, desde Abril de 74, tinha determinado a derrocada, a destruição do tecido económico e social de Angola. Via que se estava a preparar a desgraça.
É quando me apercebo de que a desgraça era completamente desgraçada, já com a guerra civil, que venho cá.

Como objectivo de preparar o êxodo...
Não queria tirar as pessoas de Angola, mas dar condições a quem queria vir. A partir do momento em que no dia 10 de Novembro saísse o último militar português não podia ficar o cais ou no aeroporto gente desesperada a rogar pragas a tudo o que eram militares portugueses, Portugal e o Estado português. Seria de todo inaceitável que lá ficasse um único cidadão que quisesse vir. Mas para isso tornava-se indispensável um incremento no transporte aéreo e marítimo.

Que acolhimento teve?
Muito fraco. Estava o célebre V Governo Provisório, o último a ser liderado por Vasco Gonçalves... Era difícil encontrar interlocutores credíveis, com capacidade de decisão política, de gizar soluções.

Diz no seu livro de memórias, A Vertigem da Descolonização, que o único interlocutor válido seria o presidente. Mas a descrição que faz do encontro com ele é no mínimo bizarra...
 Fui ter com Costa Gomes acompanhado de um administrador da TAP, o engenheiro Norton, que disse não ser possível aumentar a capacidade de transporte. O presidente e os que estavam com ele consideraram: «Pronto, foi feito tudo aquilo que podia ser feito, é impossível fazer mais.» Alguém até disse: «Não há aviões. Eles que comeram a carne que roam os ossos.» Não aceitei essa impossibilidade.
E recoloquei a questão: tem de haver uma via, seja qual for.

O engenheiro referiu a capacidade de transporte aéreo estratégico dos americanos. Aí, levantei-me, procurei numa lista telefónica o número da embaixada americana e liguei para lá.
Costa Gomes mantém-se «calado e imperturbável»... E o então tenente-coronel Gonçalves Ribeiro sai, direito aos americanos, sem mandato de ninguém.

Só num quadro político-militar como aquele é que se compreende o que se passou... Costa Gomes sabia onde eu ia. Houve um deferimento tácito, aderiu pelo silêncio. Como o embaixador Frank Carlucci não estava, falei com o número dois. Fui ter a casa dele, à hora do jantar ...
Ele diz que os EUA ajudarão, desde que haja uma carta do PR.

Que o senhor redige... Do ponto de vista da hierarquia militar e do Estado, nada faz sentido.
Tudo isso estava transponível e transpunha-se. Havia uma ausência de liderança, de referências... As referências que existem normalmente em qualquer sociedade organizada, incluindo a do bom senso, estavam pulverizadas. E eu, falando por mim, senti que, se fosse preciso, iria às últimas consequências.

Que acha que teria sucedido se não tivesse feito o que fez?
É-me difícil imaginar. Não sou de puxar os galões, mas está-me a perguntar, tenho de responder.
Houve em todo o caso civis deixados para trás: no Huambo, por exemplo.
Isso porque o dispositivo militar português foi contraindo e até muito tarde houve a preocupação de nunca incentivar a saída dos portugueses. Tentámos não dar sinais de alarme: as pessoas faziam o estudo da situação envolvente, e decidiam. Mas quando as coisas começam a aquecer, percebe-se que aquela gente tem de sair...

Não aqueceram de um tempo para o outro... Portugal não foi irrealista em manter a sua parte do Acordo de Alvor, a independência a 11 de Novembro?
Uma descolonização numa revolução é um casamento contranatura! Aqui havia a campanha «Nem mais um soldado para África», lá os movimentos tinham armas na mão. E ninguém queria adiar a descolonização, nem poderia fazê-lo se quisesse. As famílias queriam os soldados de volta, diziam: vão apertar o gatilho contra quem, porquê? Era uma pergunta sem resposta!
«Não gosto de palmadas nas costas»

Conta no livro que disse a um comandante de tropas: «Portugal, ao fim de séculos de permanência em Angola, não pode sair com as calças descidas até aos calcanhares. No mínimo, há que agarrá-las pelos joelhos.» Afinal, por onde estavam as calças?
Muito próximo dos calcanhares. Não foi uma saída bonita. Mas com as calças a arrastar pelo chão era se a certa altura batêssemos com a porta e disséssemos: «Fica quem fica, não temos nada com isso.»
Ofereceram-lhe o cargo de último alto- -comissário de Angola e a patente de general . Recusou... [Levaria 14 anos a chegar a general]
Porque estava concentrado na solução para aquelas gentes, na organização daquela saída. Foi só isso.
O cargo foi para o almirante Leonel Cardoso, que no discurso de 10 de Novembro diz: «Portugal parte sem sentimentos de culpa e sem ter de que se envergonhar..Não foi bem assim...
Creio que quando ele fala de sentimento de culpa não é em relação à forma como a descolonização foi feita, mas ao futuro de Angola.
Repare: foram pessoas, não instituições, que a certa altura tiveram de lidar com um problema de dimensão histórica. As coisas foram feitas conforme podiam ser feitas...

Mas sem vergonha?

[Silêncio] Estou a pôr-me naqueles últimos momentos lá. Já não havia gente nossa a berrar. Quem quisesse, e não só portugueses, também angolanos, tinha partido. O presente era o preparado pelos filhos de Angola, o futuro o que quisessem.
No seu livro, narra a cena de um casal de meia-idade, com um cão, que está para embarcar no último avião que sai do Huambo.

O homem diz que não vai, não quer deixar o cão. É um símbolo?

Sim. Aquele homem naquele momento simbolizou o que se passou com todos os portugueses que consideravam aquele país a sua terra.
Agarrou-se ao pretexto do cão para dizer «eu não vou». Porque a maior parte deles não queria vir: queriam lá ficar, disponíveis para ajudar a progredir Angola independente. Toda a gente saiu forçada.

Continuou ligado à questão, como alto--comissário para os Desalojados.
Que balanço faz, trinta anos depois?

Não foi preciso esperar tanto. O sentimento geral, cinco, dez anos depois, era de integração completa: já não se ouvia falar de retornados. Sabe, os que vieram eram diferentes dos de cá.
Vinham de um lugar onde não só havia mais espaço e mais silêncio como mais liberdade, onde a aventura ainda era possível. Eram mais dinâmicos. Foram capazes de dar a volta por cima ao seu drama pessoal. A sua tragédia acabou por ser, no colectivo, uma história de sucesso.

Crê que o seu papel nessa história foi suficientemente reconhecido?
Que se deve entender por ser reconhecido? Entendi que devia fazer algo e fi-lo. Nunca me passou pela cabeça cobrar dividendos de ordem social, económica ou política. A memória dos homens é curta...

Sente-se injustiçado?

[silêncio] Já me têm dito que o problema não teve a dimensão que podia ter tido. E um ou outro dá-me uma palmada nas costas.
Ficam-se por aí. Mas só se me apanharem desprevenido: não gosto de palmadas nas costas.

Perfil
António Gonçalves Ribeiro
General
Ele não quis deixar ninguém para trás
Colocado em Angola desde 1972, será secretário de Estado no governo provisório da (ainda) colónia e membro da delegação portuguesa às negociações que em Alvor reconhecem no MPLA, FNLA e UNITA «os únicos legítimos representantes do povo angolano», e acordam os termos da independência. É como secretário geral do Alto-Comissariado de Angola (declina a «honra» de ser o último comissário) que vem a Lisboa falar com Costa Gomes. Alto-Comissário para os Desalojados de 1976 a 79, termina a carreira, em 2002, como director-geral de Política de Defesa Nacional.

23 Abril 2004
Retirado DAQUI

sexta-feira, 1 de junho de 2012

SOS Angola - Os dias da Ponte Aérea


Rita Garcia, jornalista: Mentes eram muito mais abertas em Angola do que cá
No livro SOS Angola - Os dias da Ponte Aérea, a jornalista Rita Garcia relata a história dos chamados "retornados" e a importância da designada Ponte Aérea que, em 1975, salvou a vida a milhares de portugueses.
Foram a memória e o espólio de António Gonçalves Ribeiro, o mentor da Ponte Aérea em 1975 e sem a qual milhares de portugueses não teriam escapado de Angola com vida, que permitiram a Rita Garcia escrever este livro. Apresentado de forma isenta e acessível, é um relato humano de um acontecimento que marcou a nossa História e a história de vida daqueles a quem chamaram de “retornados”


Porque se lembrou de escrever o livro S.O.S Angola – Os dias da Ponte Aérea, sobre os 200 mil portugueses que abandonaram Angola, entre Julho e Novembro de 1975?
Tudo começou quando escrevi para a revista Sábado um trabalho sobre a antiga Primeira Classe da TAP, feita em voos de longo curso e muito particularmente na linha de África. Uma linha muito requintada e chique, frequentada por muitos dos grandes empresários com interesses, sobretudo, em Angola. Quando falei com os antigos tripulantes da TAP, todos me referiram a Ponte Aérea de 1975 como uma coisa fora de série e com histórias que os marcaram para sempre.

Diz que sem António Gonçalves Ribeiro, mentor da Ponte Aérea, muitos portugueses não teriam escapado de Angola com vida. Quem foi este homem?
Na altura, ele era tenente-coronel e estava em comissão de serviço em África, como secretário do alto comissariado de Portugal em Angola, organismo criado para ajudar o governo de transição a fazer a passagem de poderes de Portugal para Angola. Foi ele que, no terreno, se foi apercebendo que havia muita, muita gente que se queria vir embora, depois dos primeiros voos da Ponte Aérea terem sido mantidos quase em segredo, para que não entrasse tudo em pânico. Quando António Gonçalves Ribeiro se apercebeu que as pessoas queriam mesmo vir embora, teve noção de que os voos comerciais da TAP não eram suficientes para trazer tantas pessoas. Veio então a Lisboa e disse ao FMA e ao Governo, na altura chefiado por Pinheiro de Azevedo, bem como ao Presidente da República, que era preciso fazer alguma coisa.


Foi fácil convencer o governo português?

Não, porque em pleno PREC (Processo revolucionário em Curso) as preocupações cá não eram com os que estavam em Angola. Ainda por cima, por parte da Esquerda, não havia muito boa impressão de quem tinha ido para Angola. Mas ele chegou cá e disse que era preciso agir. Pinheiro de Azevedo respondeu-lhe com esta frase horrível: “ó senhor tenente coronel não sei porque está tão preocupado. Se eles comeram a carne, agora que roam os ossos”. António Gonçalves Ribeiro enfrentou o seu superior hierárquico e respondeu-lhe para ir ele a Angola dizer isso às pessoas. Embora a muito custo, conseguiu deste modo convencer o Presidente da República a pedir ajuda diplomática aos Estados Unidos. Na época, o embaixador em Lisboa era Frank Carlucci, que entrou em contacto com a administração americana, conseguindo-se assim avançar com a Ponte Aérea. Até porque, do ponto de vista da política externa norte-americana, também interessava aos Estados Unidos ter alguma moeda de troca para tentar influenciar o regime português a não se encostar tanto à Esquerda e seguir mais o caminho do Grupo dos Nove (grupo de oficiais do MFA de tendência moderada, liderado por Melo Antunes). António Gonçalves Ribeiro conseguiu não só o apoio norte-americano, que embora tenha começado só em Setembro, foi fundamental para trazer as pessoas, mas de outros países como a Inglaterra, a França, as duas alemanhas e a União Soviética.

Portugal já homenageou António Gonçalves Ribeiro?

Que eu saiba não. Ainda está vivo, mora em Lisboa e foi fundamental para o meu livro. É um senhor extraordinário. Só um homem com coragem se presta a este esforço. Tenho os relatos das pessoas, mas do ponto de vista de fonte histórica solidificada, o seu arquivo com todos os documentos daquela época foi fundamental. Possui relações dos voos, dos navios que faziam a ponte marítima para trazer as pessoas para Luanda, dos apoios prestados por outros países e pela Cruz Vermelha, bem como das quantidades de leite e de roupas disponibilizadas. Curiosamente, António Gonçalves Ribeiro não chegou a Portugal de avião mas de navio. Veio no último navio que saiu com toda a comitiva portuguesa.

Luanda e Nova Lisboa eram, à época, campos de refugiados?
Sim, foram construídos autênticos campos de refugiados. Durante uma semana, antes da Ponte Aérea começar a fluir e os aviões a chegar com mais regularidade, as pessoas ficavam sempre dois ou três dias à espera, sobretudo quem vivia antes no interior ou a sul. Dormiam no Quartel de Velas, de para-quedistas, com capacidade para 600 homens e que se via a braços com milhares, ou então na Feira Internacional de Nova Lisboa, de onde partiam em autocarros para o aeroporto. Ficavam em gabinetes, no chão, em ginásios. Havia pessoas que tinham nascido em Angola, famílias que estavam lá radicadas há muitas gerações. E só muito em cima da hora aceitaram perder as suas vidas simpáticas e tranquilas, até do ponto de vista financeiro. Não quer dizer que todos fossem ricos mas houve quem lá deixasse fortunas enormes. Vieram todos apenas com os tais cinco mil escudos dados pelo Governo. O dinheiro de Angola cá não valia nada, chamava-se “dinheiro macaco”.

Quantos portugueses morreram neste processo de descolonização?

Não sei quantas pessoas morreram e julgo que é difícil haver uma noção exacta, porque os tempos eram tão conturbados e a situação tão caótica que havia muita gente que desaparecia. Havia gente que se deslocava de uma cidade para a outra e nunca mais aparecia. Só se via mais tarde o seu carro na posse de um dos movimentos da guerrilha, mas da pessoa nunca mais se sabia nada.

Há quem assemelhe a descolonização ao holocausto nazi...
Acho excessivo, com a minha distância em relação ao assunto, comparar esta descolonização com o holocausto nazi. É verdade que algumas pessoas morreram, é verdade que perderam tudo mas o holocausto fez seis milhões de mortos. Não se fala na mesma escala. Apesar de tudo, as pessoas que conseguiram fugir, chegaram cá e embora com dificuldades refizeram as suas vidas. Comparando com colonizações de outros países, na nossa não havia uma relação tão difícil e opressiva com a comunidade negra. Claro que a primazia era branca, os bons empregos eram dos brancos e não quer dizer que não houvessem maus tratos, aqui e ali, mas não era uma coisa concertada. Havia muita gente que tinha boas relações com os trabalhadores negros, relações até de amizade. Muitos negros ficaram a chorar e com imensas saudades dos patrões. Hoje, a verdade é que existe  uma nova diáspora portuguesa e que os portugueses não são mal recebidos em Angola. Se tivesse ficado uma clivagem muito grande, isso não acontecia. Pelo menos os portugueses que conheço, que têm estado em Angola, não me falam disso.

“Não tenho conhecimento de que em Angola se dividisse uma sardinha por três”
A reportagem Os anos dourados dos portugueses em África (praias, caçadas, luxo, vivendas com empregados, noitadas), publicada por si há um ano na Sábado, recebeu algumas críticas, nomeadamente no blogue Bravos “Retornados”, Espoliados, Deslocados, onde se alega que aquela era a vida de uma minoria. Estas pessoas continuam ainda muito ressentidas?
Não quisemos fazer na Sábado um trabalho sociológico sobre todos os habitantes de Angola. Efectivamente, grande parte das pessoas com quem falámos (claro que algumas pertenciam a uma elite) não eram só gente rica, também havia funcionários públicos. Era inegável que a vida das pessoas era, na altura, muito mais confortável que a de cá. Não quer dizer que tivessem todos muito dinheiro mas tinham uma mente muito mais aberta. Acredito que houvesse pessoas com vidas muito diferentes das retratadas nesse trabalho jornalístico, mas pobres, pobres e a dividirem uma sardinha por três, como cá na metrópole, não tenho conhecimento. O que não quer dizer que não houvesse.

A palavra “retornado” tornou-se estigmatizante. Qual a mais apropriada?
Nunca pensei nisso e não dou à palavra essa importância. É verdade que uma parte significativa dessas pessoas nasceu em África e portanto não estava a retornar. Mas isso é apenas um pormenor. Eles tinham tantas razões para ficar zangados com a forma como foram recebidos.... Não acho que a palavra seja o mais importante. Mas também acho outra coisa: quem veio das colónias tinha razões de queixa mas também percebo as razões de quem cá estava. O País estava a sair de 40 anos de ditadura, havia falta de emprego e de oportunidades. E quem veio das colónias, tendo deixado lá vidas inteiras e com a injustiça que isso significou, teve aqui acesso a coisas que os da metrópole não tinham, como empréstimos e alojamento. O que acho bem porque era preciso ressarcir as pessoas de alguma maneira. Mas para os de cá, que não tinham acesso a nada disso, também havia essa sensação de injustiça. Ou seja, os dois grupos tinham a sensação de desconforto.

Mas a sua reinserção acabou por ser pacífica...

Sim, face ao que podia ter acontecido, devido a esse mal estar entre os dois grupos, acho que as coisas acabaram por se orientar. Também porque quem vinha de Angola, onde havia um tecido empresarial muito forte, de um modo geral, trazia a escola comercial e industrial ou o liceu. Como disse, eram pessoas de espírito aberto porque não tinham estado sujeitas a um peso tão grande da censura como cá. Ouviam muito rádio e chegavam lá notícias de países livres. A Pide apenas actuava para tentar controlar a força pela libertação dos territórios. Isso permitiu-lhes uma outra vivência e outra descoberta das coisas em relação às pessoas de cá, onde a vida era muito mais controlada.

Mário Soares é para os “retornados” uma “persona non grata”? A descolonização poderia ter sido feita de outra forma?
Não sei responder. Claro que se o processo tivesse sido organizado com tempo, é possível alegar que a descolonização poderia ter sido feita como fizeram outras potencias colonizadoras em África, que preparam a saída dos seus colonos ao longo de vários anos. Agora, aquilo foi decidido de um momento para o outro, porque as coisas se precipitaram e ter de fazer sair aquelas pessoas todas... Não sei se era possível antecipar o que ia acontecer e se os movimentos angolanos estariam disponíveis para prolongar mais a saída. É muito difícil fazer esse tipo de avaliações, à posteriori.

Os que foram espoliados dos seus haveres, deveriam ser indemnizados?

Não vou falar sobre isso porque não tenho conhecimento ainda dessa realidade. É o que vou estudar a seguir, porque é uma investigação que quero continuar a fazer. Estas questões não têm sido muito estudadas e portanto nada está ainda sistematizado. Por isso há respostas por onde não quero ainda entrar, porque também não sei. Não gosto muito de falar daquilo que não conheço

José Eduardo Agualusa diz, também na Sábado, que Portugal tem medo do governo angolano. Como interpreta esta suposta posição subalterna de Portugal em relação a Angola?
Essa é a opinião do Agualusa. Não sei o suficiente sobre as relações dos governos de Portugal e Angola para poder fazer uma afirmação desse tipo. O que sei é que, do ponto de vista económico, Angola é neste momento uma grande oportunidade para os portugueses. Sobretudo, porque há cá muito desemprego e situações complicadas por causa da crise. O que acho também, e quanto a isso congratulo-me, é que tenha ficado uma relação entre dos dois países que permita esta reaproximação. Não quer dizer que seja perfeita mas já acho óptimo que ela se tenha conseguido fazer. Agora as palavras de Agulusa são dele. Ele é que é angolano e anda sempre a circular entre cá e lá e, portanto, conhece muito bem as duas realidades.


O carro que veio à procura do dono

Encontrou histórias pessoais marcantes ao escrever este livro?
Muitas. É muito difícil alguém pôr-se na pele de uma pessoa que saiu de casa para ir levar a mulher ao aeroporto (o marido tentava ficar lá mais tempo para ver se dava) e, de repente, porque irrompe um tiroteio na pista do aeroporto, acabar em Lisboa sem documentos, sem dinheiro, sem roupa, sem nada. O condutor do autocarro que transportava o casal assustou-se de tal maneira que mandou toda a gente para dentro do avião. Deu-se o ridículo deste funcionário do Banco de Angola não ter feito, sequer, a transferência dos tais cinco contos a que tinha direito. E cá já não tinha forma de o fazer. Mas a história curiosa vem depois. Um dia, quando viajava entre o Estoril (onde o tinham hospedado), e Lisboa para tratar de documentos e conseguir provar que era retornado, na zona de Santos, olha pela janela do comboio e vê o carro dele estacionado, o mesmo que tinha ficado em Luanda mas que um amigo tinha enfiado num navio. Por sorte, ainda tinha a chave no bolso. Saiu do comboio, abriu o carro e assim pode ir a Viseu reencontrar a filha e a mulher.

Depois, há as fugas massivas...
Sim, a fuga massiva da Gabela (cinco quilómetros de carros em peregrinação até Nova Lisboa) como de outras localidades, como por exemplo de Malange, em que toda a população teve de sair para não ser dizimada nos confrontos, depois de uma semana de negociações para conseguir que os movimentos angolanos os deixassem sair. É que os brancos, de alguma maneira, serviam de protecção para os negros não se matarem tão depressa uns aos outros. Há ainda a história de uma senhora que ficou de tal maneira apavorada que se escondeu numa cave, enquanto não houve luz verde para sair. Quando os militares a foram buscar não conseguia andar e tiveram que a trazer ao colo. Já em Nova Lisboa, um primo diz que os dentes dela batiam tanto que pareciam uma máquina de costura. À chegada a Lisboa foi directamente para a psiquiatria do Hospital Santa Maria.


“Ser jornalista não é o glamour da televisão”
Rita Garcia, 32 anos, lisboeta, mãe de dois filhos pequenos, é licenciada em Ciências da Comunicação, pela Universidade Nova de Lisboa. Repórter da revista Sábado desde 2005 e autora do livro de reportagens INEM 25 anos, recebeu o 2º prémio Henrique de Barros, atribuído pelo Parlamento Europeu em 2003, e o Prémio de Jornalismo Novartis Oncology, em 2008. Aos jovens que acalentam o sonho de ser jornalistas diz que é bom, ao escolherem esta profissão, que tenham noção que “isto não é o glamour da televisão”.  Em relação à crise, limita-se a dizer: “Nunca gasto mais do que aquilo que tenho. Nunca gastei. Os tempos que aí vêm vão ser complicadíssimos mas se se pensar que serão horríveis, é porque vão ser horripilantes. O que tento fazer é não ficar centrada nesta coisa da crise. Tenho o instinto de ir sempre para a frente”. Rita Garcia gosta de estar com os amigos, de cozinhar e de ler romances de Vargas Ilosa ou da escritora brasileira Patrícia Melo. Tem particular interesse na realidade brasileira do tráfico de droga. À pergunta se tem curiosidade em conhecer Angola, responde: “Tenho curiosidade em conhecer o mundo inteiro”. De África, conhece o Senegal, onde esteve uma semana, a convite da AMI, para participar no programa Aventura Solidária, para construir estruturas de apoio à população local.

Textos e fotos: Graça Menitra

2011-11-24

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