quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

A Ponte Aérea da Vergonha.Esquecer??? NUNCA.

Começou em Julho de 75 e acabou a 3 de Novembro, desse mesmo ano. Quatro meses para evacuar meio milhão de pessoas e dizer adeus a Angola. Centenas de aviões, milhares de voos. Aos números imprecisos soma-se a crónica dos ressentimentos. O que aconteceu e quem teve a culpa?
Os nomes baralham-se, calam-se os dramas. O ódio é sempre mais espesso que o sangue, mas há um momento em que nem isso adianta. É quando Portugal e traição já não se distinguem e os arautos do tempo repetem o veredicto. Ventos da História, descolonização possível. Desresponsabilização, descontracção e água benta. Cobardia. Pois claro.

A 17 de Julho, a ponte aérea começa.

Gonçalves Ribeiro, mais tarde alto-comissário para os refugiados, afirma o seu pudor em abordar a matéria em causa, que define como “a experiência da sua vida”. Mal ou bem, é ele o nome que todos apontam como coordenador do air-lift-ponte aérea-que em três meses e meio transportou quase meio milhão de pessoas de Nova Lisboa e Luanda para o aeroporto da Portela.

“Houve necessidade de um certo voluntarismo, por uma questão de dignidade nacional. Era uma da últimas coisas que Portugal tinha de fazer. Ter a certeza de que quem quisesse vir não ficava. Usávamos o rádio para chegar aos sítios mais isolados, à mata, para tentar saber onde é que havia gente a precisar de transporte. Mandávamos lá a Força Aérea para as trazer aos dois grandes aeroportos. Chegavam de todo o lado, exaustos, traumatizados, sem nada. Chegou a uma altura em que a tropa portuguesa já se tinha vindo quase toda embora e mesmo em Luanda as pessoas só se sentiam seguras no aeroporto. Chegámos a ter lá 5000, numa caserna para 500 homens.”

A comida era a da base, quando havia, as instalações inexistentes. As possíveis.
O homem da ponte aérea suspira.

“Para ser diferente era preciso que houvesse aqui uma situação estável. A pergunta principal é porque é que se levou tanto tempo a descolonizar. Toda a gente fala dos militares, mas não fomos nós que começámos a guerra. E aguentámos-la catorze anos. Chegava para encontrar uma solução política, não? Até porque a situação em Angola estava perfeitamente controlada do ponto de vista militar: com a UNITA não tínhamos qualquer confronto e a Leste e a Norte, as forças que se nos opunham estavam, respectivamente, na Zâmbia e no Zaire. Mas assim, desta forma, tudo tinha de correr mal.”

O desespero era tal para entrar num avião que as pessoas ofereciam tudo. Aos funcionários de check in, aos pilotos, a quem encontrassem. Termos de café, comida, álcool, casas, carros, barcos, dinheiro, diamantes, favores variados. E quando não era para entrar num avião era para meter lá dentro mais qualquer coisa. Nem toda a gente podia ou tinha tempo de despachar os pertences por mar.

Mais ou menos rigoroso no seu trabalho de check in, mais quilo menos quilo e um recorde de 26 horas seguidas ao balcão, João F., nascido em Luanda, funcionário da Tap, viu acontecer muita coisa. O tráfico de influências corria à desfilada, e para quem fosse habilidoso havia sempre um expediente para mandar tudo para Lisboa. Os mais modestos iam todos os dias ao aeroporto despachar pequenos embrulhos, os mais ambiciosos certificavam-se de ter tudo do outro lado do mar antes de dizer adeus a Angola.

Coisa que não deixava de ser arriscada: a João F., que despachou o frigorífico e o fogão, desapareceram-lhe os dois no aeroporto da Portela.

“Mais tarde descobri que tinha sido um colega e recuperei as coisas. Houve muita desonestidade. As pessoas traziam o que era delas e o que não era, aproveitavam-se da situação. Gente que nunca tinha estado em Angola chegava ao sítio do aeroporto onde as coisas se iam amontoando e escolhia o que queria. Houve nitidamente um abandono daquela gente.”

Regressado a 1 de Novembro, de 1975, com um pedido de transferência, teve de procurar outro emprego: só foi readmitido na TAP dois anos depois e para cúmulo retiraram-lhe o tempo da ponte aérea.
“Os registos perderam-se e ninguém se lembra”, conclui com um encolher de ombros.
“Dizem eles.”

Em Nova Lisboa a situação era tremenda. Havia uma espécie de grande hangar e as pessoas chegavam das mais variadas formas, carregadas de malas. Como não as podiam levar — havia um limite de 30 kg por passageiro — havia uma montanha incrível de bagagem deixada para trás. Não havia condições nenhumas, a sanita era um antigo avião de campanha completamente recuperado que um oficial qualquer tinha resolvido pôr ali como monumento. Imagine-se, um avião que tinha andado na guerra!

"Quem controlava eram os guerrilheiros da Unita, que tinham um aspecto inacreditável. A tropa já se tinha vindo embora. Assim tínhamos de discutir horas com os UNITAS que queriam entrar nos aviões para ir lá buscar pessoas, e assegurar que eles não inutilizassem o avião. Era essa a minha maior preocupação quando estava no solo.”

José Nico, brigadeiro da Força Aérea, na época capitão, não esconde a amargura que lhe ficou.

“O que andei a fazer sobretudo, foi evacuar os militares e suas famílias. Naqueles tempos era tudo ao contrário. Evacuava-se a tropa antes dos civis. A situação era tal que um dia, quando me pediram para ir complementar a acção dos aviões civis — porque o grosso da ponte propriamente dita foi feita por eles — e embarcar aquela gente que estava no aeroporto de Luanda à espera em vez de uma companhia de militares, os soldados se revoltaram. Armaram uma situação tão crítica que obrigou a uma intervenção.”

Cala-se, pensativo. Viveu a juventude em Luanda, foi estudar para a metrópole. O resto da família regressou antes da independência. À excepção do pai, que só voltou em 79.

“Era empregado numa companhia que não fechou. Teve de se mudar para um quarto ao lado do escritório para não andar na rua, mas mesmo assim iam lá visita-lo muitas vezes para o revistar. O que quer dizer roubar. Ele não se abre muito.”
O silêncio quebra-se uma última vez.
“Foi um abandono de todo o povo português. Vivi muitos anos revoltado até me habituar à ideia de que tinham sido os ventos da História."

É a 11 de Novembro de 1975, que tudo é suposto acabar. A ponte aérea acaba só a 3 de Dezembro desse ano. A esposa de Vitor B. regressa no dia anterior, num avião regular da TAP. Agora e durante algum tempo, os funcionários da imigração ainda apõem nos passaportes o carimbo Luanda-Portugal — saída.

Resta na cidade o alto-comissário, almirante Leonel Cardoso, e os seus colaboradores mais próximos, além de uma companhia de pára-quedistas, dois helicópteros e dois navios.

No palácio do governo, contra um painel do mapa-mundi com caravelas, o almirante lê a declaração de entrega da soberania do território. Ao povo de Angola.Já que não há mais ninguém na sala além dos portugueses e de um batalhão de jornalistas.
Ninguém para cantar o hino.
....Levantai hoje de novo o esplendor de Portugal,...
Logo de seguida, Leonel Cardoso, séquito e bandeiras partem nos navios, pela calada da noite, escondidos da vergonha, e da cobardia dos políticos e militares, que atraiçoaram séculos de História, entregando de mão beijada, o futuro de milhões de seres humanos, á crueldade do abandono e da incerteza do futuro. Esquecer? NUNCA.
17 de Abril de 2008 por Fernanda Câncio

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