quinta-feira, 19 de agosto de 2010

“Fugi de Angola na minha traineira”







"Podem dizer o que quiserem. Já ouvi de tudo: que foi heróico, que parecíamos os antigos navegadores – o diabo a quatro. Para mim, é muito simples: eu tinha de fugir de Angola, mas também tinha de salvar a minha enxada, que era o meu barco de pesca. E só havia uma maneira: fazer-me ao mar com ele e vir por aí acima até chegar a Portugal. Foi o que fiz – e, por muito perigoso que tenha sido, era o que faria outra vez. Aquele barco garantiu o sustento da minha família durante mais de vinte anos após o nosso regresso, primeiro na Costa da Caparica e depois em Quarteira. Nele se fizeram homens os meus dois filhos. E, quando tivemos de abatê-lo, há cerca de dez anos, foi como se perdêssemos um membro da família.

Nasci em Quarteira e tornei-me desde logo pescador. A seguir à tropa, já casado e com dois filhos, decidi ir para Angola ter com uns familiares – e pescador continuei. A pesca era perigosa: fazíamos arrasto de camarão, o mar era traiçoeiro e passávamos duas a três horas por dia a puxar as redes sem qualquer defesa. Mas ganhávamos dinheiro e dávamo-nos muito bem com os africanos. Vivíamos na ilha e, embora hoje se tenha uma vida melhor em Portugal, naquela altura vivíamos melhor na ilha de Luanda do que em qualquer outro lugar de Portugal. Tivemos muita pena de ter de vir embora.



Em 1975, já depois do 25 de Abril, a situação complicou-se. Passámos a ser maltratados, havia perseguições. A minha mulher chegou a ir à pesca comigo, para o mar alto, só para não ficar sozinha em casa com as crianças. Não havia volta a dar-lhe: tínhamos de fugir dali. Os meus dois filhos mais novos, incluindo a rapariga nascida entretanto, voltaram logo em Abril com a tia, de avião. Eu, a minha mulher e o meu filho mais velho deveríamos embarcar no navio Uíge, que partia de Luanda no dia 24 de Agosto, carregado de retornados. Os bilhetes já estavam comprados.
Mas, poucos dias antes do embarque, mudei de ideias. Disse à minha mulher: ‘Vou no barco. Ou chegamos lá os dois ou não chega lá nada.’ O ‘Marlene’, como se chamava a embarcação, tinha só 10,4 metros, 85 cavalos de potência – e não tinha cozinha nem casa de banho. Mas eu já não voltava atrás. Fui comprar cartas marítimas à Marinha portuguesa e, depois, fui ter com o comandante do navio Uganda, da Sociedade Geral, que me desenhou os rumos e ainda me escreveu três folhas à máquina, com indicações. Eu leio mal, porque nunca fui à escola, mas o que tinha aprendido na tropa chegava para perceber aquilo. Deixei-lhe os meus dois cães, o Rover e a Boneca, dois pastores alemães. Gostava muito de reencontrar um dia esse comandante.
A minha mulher e o meu filho partiram no dia combinado. Nessa mesma tarde, os tipos do MPLA viram que eu tinha o barco cheio de gasóleo e começaram logo a fazer perguntas. Tive de sair para o mar imediatamente. Levei a bordo um africano que trabalhava há nove anos comigo na pesca, o Gabriel. Era da UNITA e também estava a ser perseguido. Veio até Portugal. Da última vez que o vi, estava a trabalhar numa casa dos Comandos, perto de Faro. Estava muito em baixo. Penso que estava num lar qualquer…



Estive dois ou três dias ao largo de Luanda, altura em que se juntaram a mim mais três homens, um cunhado e dois amigos algarvios, cada um no seu barco – e nenhum destes com mais de 13 metros. No dia 26, arrancámos. Só eu tinha as rotas – e era eu que vinha à frente. No mapa, o capitão do Uganda tinha desenhado um trajecto de 27 dias: onze dias até à Costa do Marfim, a direito, cortando o Golfo da Guiné; seis dias ao largo da costa até Dakar, no Senegal; quatro dias no sentido de Vila Cisneiros, no Sahara Espanhol; dois dias em direcção às Canárias; e, finalmente, quatro dias até ao Algarve.
Demorámos 31 dias, porque tivemos várias chatices e contratempos. Em frente à Serra Leoa, apanhámos um temporal tão grande que nos perdemos todos uns dos outros durante três dias e três noites. Um dos barcos avariou e teve de vir a reboque. Outro ficou sem luz. A partir de certa altura, vínhamos todos atados por cabos, em comboio. As três folhas dactilografadas pelo comandante comercial foram muito importantes: tinham rotas, localização de faróis e baixios perigosos, tempos limite para cada etapa e regiões onde encontraríamos outros pescadores. Havia imensas chamadas de atenção a vermelho, com desenhos dos maiores perigos pelo caminho.
Chegámos a pensar que não conseguíamos. Mas depois parámos no Cabo Branco, para abastecer, e encontrámos o grande navio de pesca Ilha de Santa Luzia. Fomos a bordo comer uma refeição quente, pois estávamos esfomeados. Mandámos telegramas às famílias, que suspiraram de alívio, porque já temiam o pior. E, de repente, o capitão do Santa Luzia condoeu-se de nós e decidiu abortar a sua missão de pesca para escoltar-nos até ao Algarve. Grande homem! A partir daí, estávamos salvos. Acabámos por chegar bem a Portugal. Magros, muito barbudos, mas nenhum doente.



Há dez anos, e beneficiando dos incentivos do Estado, abatemos o ‘Marlene’. Precisávamos de um barco maior, sobretudo por causa dos meus filhos, e mandámos construir um a que também chamámos ‘Marlene’: uma traineira com 14,6 metros, com um motor de 190 cavalos e já com cozinha, casa de banho e televisão. O problema era desmantelar o barco original. Custava-nos muito. E então, por milagre, dois pescadores de Setúbal ofereceram-se para comprá-lo. Um barco abatido com subsídios só podia ser vendido para o estrangeiro, mas era para o estrangeiro que eles o queriam. Precisamente para Angola, de onde o ‘Marlene’ vinha.
E, agora, imagine-se isto: esses dois homens de Setúbal chamavam-se Álvaro e Aurélio, que são exactamente os nomes dos meus dois filhos. Parecia incrível: o ‘Marlene’ voltava para Angola, ainda por cima com dois homens de nomes iguais a dois rapazes que se tinham feito homens nele. Vendemo-lo barato, mas até dado eles o levavam. Foi um alívio encontrá-los. Uma história quase inacreditável.
Hoje, infelizmente, a pesca já não dá nada. Não é rentável. Tenho seis netos e fico muito contente por estarem todos a estudar. O peixe é pouco, tirar uma cédula marítima é o cabo dos trabalhos, não há fábricas – isto não é vida para ninguém. Mas ainda tenho saudades do mar e, apesar de estar reformado, de vez em quando ainda lá dou um salto. Ajudo os meus filhos e, normalmente, fico no armazém a tratar das redes. Mas sempre com saudades.”

* Florindo Bota nasceu em Quarteira, tem 68 anos – e encerrou a bordo de um barco minúsculo a história de um império que nascera a bordo de navios pequeninos.

RECONSTITUIÇÃO ("V de Verdade"). FHM, Dezembro de 2008
In Joel neto.com