quarta-feira, 18 de abril de 2012

"Espoliados e Retornados" : histórias de outros tempos...

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Recordo, de Setembro de 2005, no site Bula-Bula, já desaparecido:
Olá Fernando Gil, bom dia,
Espero que o seu exemplo dê frutos e que mais opiniões sejam divulgadas neste espaço.  Polémicas, reclamações, indignações, venham elas. Aqui o limite é apenas o da lei.  Viva a liberdade de expressão e a democracia.
Obrigada por trazer a questão dos espoliados ao Bula-Bula.  Afinal todos passámos pela mesma experiência desagradável de ter que abalar sem malas feitas - embora alguns as tenham feito muito bem, melhor para eles.  Eu não tive hipóteses. Tinha 18 anos, estudava, a minha mãe não trabalhava e o meu pai era funcionário público, portanto eu ainda não tinha tido tempo de constituir património material.
Quero dizer-lhe que neste site não vai haver censura ou restrição de espécie alguma que não seja a do bom gosto dos nossos participantes, portanto é livre de trazer aqui as  questões que entender. Quem quiser que dê a sua opinião.  Como eu vou fazer agora, com gosto.
Tinha 18 anos quando saí de Lourenço Marques.  Não o fiz por gosto, fi-lo porque na altura estava na Universidade e um senhor comissário político acompanhado por outros senhores armados de kalashnikov (não sei se a grafia está correcta, nem quero saber não é palavra constante no meu vocabulário) foi à sala onde eu estava a ter aulas avisar que a partir daí todos os estudantes passariam a ter sessões especiais de "esclarecimento político" e aulas práticas "a sério". 
Não gostei da intervenção e escusam de me chamar racista porque o camarada comissário era branco.  Eu estava fascinada, não com a teoria política dele mas com as unhas dos pés devidamente bordejadas a negro que o individuo exibia.  Esse episódio foi tão marcante na minha jovem experiência política que a partir daí a associação de ideias que faço quando me falam em "esclarecimento político" é logo - pés sujos!  Acho que devia pedir uma indemnização por danos psicológicos!
Na altura comentei com os meus colegas a minha profunda impressão com as unhas dos pés do dito e fui logo contemplada com dois epítetos que me passaram a ser familiares a partir daí: fascista e colonialista.
A partir daí quando oiço as palavras fascista ou colonialista penso sempre em pés limpos e unhas aparadas.  - outro desvio perigoso e trauma que também me devia valer uma boa indemnização.
Em relação aos documentos que trouxe a este fórum, gostei imenso de os ler e se me permite vou comentar algumas ideias que lá encontrei expressas.  Por exemplo, admiro a coragem dos expoliados que formaram a associação.  Na minha modesta opinião já deviam ter apresentado queixa de Portugal ao tribunal dos direitos humanos por crimes contra a humanidade, a forma pela qual o processo de descolonização decorreu, foi uma autêntico crime que custou a vida a muitos dos que lá ficaram, estou a lembrar-me, por exemplo, do povo macua e de todos os que fizeram parte das forças armadas portuguesas, por exemplo. Se o fizerem eu alinho.
Não tenho a ideia romântica de que os Portugueses são uns gajos bestiais que se dedicaram aos Descobrimentos para "darem novos mundos ao mundo".  Na verdade acho que foi o lucro que nos moveu, mas não devíamos ser só nós, os descendentes desses descobridores de há 500 anos a pagar a factura.  Ninguém tem culpa de ter nascido num determinado lugar em vez de noutro.
Quanto ao direito que tinhamos de estar em Moçambique e de lá ter ficado, pois cada um é que sabe.  Eu não fiquei lá, entre outras razões porque quando me matriculei na Universidade para tirar o curso de Ciências Histórico Filosóficas fi-lo no pressuposto de que iria estudar essas ciências.  Quando a tal comissão política me comunicou que a partir daí (ano lectivo de 1974-75) o curriculum do curso iria sofrer profundas alterações e que as aulas práticas passariam a ser ocupadas por tarefas como: aprender a fazer machamba no jardim, pintar as paredes exteriores do edifício da Universidade e ir para o mato fazer campanhas de alfabetização, eu não gostei do novo curso.  Muito menos quando foi determinado que as cadeiras de história e filosofia que tinhamos no curriculo seriam substituídas por outras como:
ideologia da Frelimo, história africana até ao século XVI, cultura das sociedades africanas até ao século XVI, história de Moçambique até século XVI, etc.  Tudo até ao século XVI.  A partir dessa data não valia a pena estudar história porque tudo o que havia nos registos era propaganda fascista e colonialista.  Eu fiquei perplexa.  Desde logo porque nem sabia que o fascismo tinha começado no século XVI e depois porque não tinha mesmo vocação para a "pré-história" e que eu soubesse a história de Moçambique até ao século XVI estava toda por fazer, e sem completar primeiro o curso eu não sabia o que poderia estudar.  Achei que não poder estudar o que eu queria e ter que passar a estudar coisas que ainda estavam por fazer não era bem o que eu pensava ser a liberdade.  Fiz o que pensei ser melhor: fui para um país fascista e colonialista, a África do Sul, onde fui bem recebida.  E por acaso não gostei de viver no regime de apartheid, que achei muito restritivo no que diz respeito a direitos humanos.
Em relação ao artigo de jornal que transcreve, da autoria do senhor Francisco Junqueira, acho que está bem escrito e que tem a sua lógica, só não concordo com a opinião elevadissima que ele tem sobre os méritos dos navegadores e colonizadores portugueses.
Eu diria que não fomos melhores nem piores que os outros, fomos semelhantes.  É verdade que acabámos com a escravatura muito cedo, oficialmente, pelo menos, mas também é verdade que fomos especialistas no tráfico humano.  Claro que não a inventámos, ela já existia em África, só nunca tinha atingido um grau de especialização tão elevado como atingiu com os empreendedores comerciantes portugueses.
Adoro discutir estas ideias.  Acho que tudo o que se possa dizer sobre a matéria é sempre pouco.  Há tantas facetas para analisar nesta problemática. 
Por tudo isso, Fernando Gil, já sabe que é sempre bem vindo a este espaço de discussão livre, enfim, de bula-bula.
Beijo
São
NOTA:
-Quem seria este "branco" de "unhas dos pés bordejadas a negro? Será que ainda as usa assim?
Fernando Gil

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Já tinha ouvido falar alguns "brancos, com coração preto", mas não olhei para as unhas dos pés.

Sou retornado de Angola, talvez lá não houvesse desses "intelectuais".

Mas com coração preto e unhas pretas é que era o máximo!

Nunca me tinha lembrado dessa, vou divulgar, porque hoje ano 2 mil e tal, estas coisas dão mais para o humor do que para chorar.