sexta-feira, 31 de agosto de 2012

"Ainda hoje tenho pesadelos com este horror" - 27 de Maio de 1977 - Exclusivo com Dalila Mateus

"Ainda hoje tenho pesadelos com este horror" - 27 de Maio de 1977 - Exclusivo com Dalila Mateus
09 Maio 2012
Entrevistas

Alemanha - Há 35 anos, no dia 27 de maio de 1977, começou um dos períodos mais negros de Angola. Neste dia houve manifestações em Luanda a favor de Nito Alves. A seguir, milhares de angolanos são torturados e assassinados.

Fonte: DW

JES escapou porque se encontrava no Lubango

No dia 27 de maio de 1977 populares manifestaram-se em Luanda a favor de Nito Alves, na altura ministro da Administração Interna e membro do Comité Central do partido no governo MPLA. As manifestações das massas foram na altura classificadas pelo Presidente de Angola, Agostinho Neto, como uma tentativa de golpe de estado.

Nos dias e meses a seguir ao 27 de maio de 1977, os apoiantes de Nito Alves, o chamados "fraccionistas", são expulsos do MPLA. Dezenas de milhares são torturados e assassinados sem julgamento.

Falamos com a historiadora portuguesa Dalila Cabrita Mateus sobre este episódio da história angolana. Ela publicou com o seu marido Álvaro Mateus o livro “Purga em Angola”, lançado em 2007 (agora na sexta edição). Neste Contraste apresentamos a primeira parte da entrevista da pesquisadora à DW.

DW África: Qual foi o episódio que mais a marcou durante as pesquisas sobre os acontecimentos de maio de 1977?

Dalila Cabrita Mateus: As entrevistas a antigos presos políticos barbaramente torturados marcaram-me particularmente. Para a minha tese de doutoramento, já tinha ouvido presos angolanos, moçambicanos e guineenses, que me contaram as torturas infligidas pela PIDE. Depois, para o livro sobre o 27 de maio, ouvi presos angolanos narrar o que sofreram nas cadeias. Ainda hoje sonho, tenho pesadelos, com este horror.

Um dos últimos presos que ouvi, depois de narrar o que lhe tinham feito, encostou-se a uma porta e da sua boca saiu um suspiro enorme. Tinha desabafado. Disse-lhe: "O senhor conseguiu, enfim, desabafar." Mas eu, que ando há anos a ouvir o sofrimento de todos os presos políticos, com quem desabafo?

A gravação e a transcrição de todas estas entrevistas estão hoje depositadas na Torre do Tombo.

DW África: Consegue resumir num minuto o que aconteceu de facto no 27 de maio de 1977?

DM: Alguns pequenos grupos armados tomaram cadeias, com o propósito de libertar gente sua que estava presa. Por exemplo o Batalhão Feminino tomou a cadeia de São Paulo. Estavam presos dezenas de elementos do grupo de Nito Alves e José Van Dunem. Eles próprios, como se comprova pela gravação escutada das emissões da rádio em Angola e por alguns testemunhos, estavam detidos.

Um pequeno grupo tomou a Rádio, com o objectivo de apelar a uma manifestação em frente ao Palácio. Dos musseques [os bairros pobres de Luanda] afluíram centenas e centenas de manifestantes, que começaram por se dirigir ao Palácio. Tendo sido recebidos a tiro, começaram a concentrar-se em frente à Rádio. Não há, pois, qualquer golpe de Estado. O que há é uma manifestação e algumas acções militares para libertar presos e tomar a rádio. "Insurreição desarmada de massas", lhe chamou o historiador inglês David Birmingham.

O objectivo era provocar uma alteração radical da política, seguida de uma insurreição. Mas o meio era uma simples manifestação, e isso prova-se hoje através das imagens, na altura obtidas pela própria Televisão Popular de Angola.

DW África: Tomaram a Cadeia de São Paulo, a sede da polícia política DISA e a Rádio Nacional, mas não o Palácio Presidencial. Porquê uma estratégia tão mal concebida?

DM: Tomaram de facto a Cadeia de S. Paulo, mas nunca tomaram a sede da DISA. E não queriam tomar o Palácio Presidencial. "Plano louco e mal concebido", diz o historiador inglês Birmingham.

Mas não queriam realizar de facto um golpe de Estado. Confiavam na superioridade de forças que tinham, entre os militares da 9ª Brigada e na população. E nunca terão imaginado que os cubanos fossem intervir com tanques para dispersar a manifestação e tomar o quartel da 9ª Brigada.

DW África: O levantamento dos apoiantes de Nito Alves e José Van Dúnem pode ser considerado um golpe de Estado?

DM: Num golpe de Estado ou numa insurreição, toda a gente o sabe que se tomam locais, com militares e civis armados; tomam-se a Presidência e os ministérios, a polícia política, os correios e as telecomunicações, os quartéis, o aeroporto, entre outros.

Se não havia um plano para tomar nada disso e a grande acção é uma manifestação de gente desarmada, como é que se pode falar dum golpe de Estado?

DW África: Qual foi o papel dos soldados cubanos na repressão do "golpe"?

DM: Os cubanos foram mandados intervir por Fidel Castro, depois de este ter falado com Agostinho Neto. Fortemente armados e utilizando tanques, acompanharam a polícia política DISA e ocuparam a rádio, dispersaram os manifestantes e, depois, tomaram o quartel da 9ª Brigada. Quem o declara é o general cubano Rafael Moracen. Depois, os cubanos ainda colaboraram nos interrogatórios de presos.

DW África: O que aconteceu com os detidos do movimento do 27 de maio?

DM: Os participantes no 27 de Maio foram presos e torturados. Muitos foram sumariamente fuzilados, sem qualquer tipo de julgamento. Outros foram mandados para campos de concentração e ali morreram. Os que podem ser considerados os mais felizes, são aqueles que acabam ser libertados ao fim de dois anos de tantas torturas e de terem passado tão mal. Mas nem só os participantes foram presos. Foi também detida muita gente que pouco tinha a ver com os acontecimentos. Uns, porque possuíam bens que eram cobiçados. Outros, porque eram amigos ou familiares dos chamados "fraccionistas". Ainda outros, porque tinham criticado ou manifestado o seu descontentamento com a forma como as coisas corriam. Outros porque tinham tido azar e estavam na rua. Finalmente outros porque eram intelectuais ou estudantes, grupos sociais particularmente visados.

DW África: Qual foi o destino de Nito Alves e José Van Dúnem?

DM: Foram presos e sumariamente fuzilados, sem que tivessem sido acusados e julgados.

DW África: Como funcionava a Comissão das Lágrimas?
DM: A Comissão, a que o povo chamou das Lágrimas, foi criada pela Direcção do MPLA, com o objectivo de selecionar depoimentos sobretudo de intelectuais presos no 27 de Maio. E por isso era constituída por elementos considerados "intelectuais". Essa Comissão interrogava, provocava e decidia se o preso devia ou não ser entregue aos militares e às polícias; isto é, se ia ou não para a tortura.

DW África: Qual foi o papel dos escritores angolanos Pepetela e Luandino Vieira nessa Comissão das Lágrimas?

DM: De facto, na Comissão estiveram Pepetela e Luandino Vieira, mas também Manuel Rui Monteiro, Henrique Abranches, Costa Andrade e muitos outros. Aos presos que ouvimos e que passaram por aquela Comissão ouvimos referências às perguntas provocatórias de Pepetela e de Costa Andrade.

DW África: Até que ponto foi usada a tortura?

DM: Todos os presos, sem excepção, foram barbaramente torturados. Não foram só os presos que ouvimos que se referiram às torturas. A própria Amnistia Internacional, num documento de Dezembro de 1981 sobre os acontecimentos, faz alusão às muitas torturas usadas. Espancamentos com martelos e barras de ferro, chicotadas, queimaduras com cigarros, choques eléctricos execuções simuladas, e ainda algumas originalidades tradicionais, tudo isso foi usado para torturar os presos.

DW África: Quantas pessoas perderam a vida no total?

DM: Há cálculos diversos. A Fundação 27 de Maio, formada por antigos presos de 27 de Maio, fala de 80.000 mortos. O jornal Folha 8 de 60.000. Adolfo Maria, militante da chamada "Revolta Activa" e o juiz angolano José Neves, que participou numa Comissão de Inquérito aos acontecimentos, apontam para 30.000 mortes. A Amnistia Internacional avançou com uma estimativa que vai de 20.000 a 40.000. Um elemento da polícia política DISA, entrevistado por mim, dizia terem sido apenas 15.000 mortos. Eu e meu marido, no livro que escrevemos, ficamos pelo número mais vezes referido. Seriam, pois, uns 30.000.

DW África: Quem eram os responsáveis pela violência?

DM: Autores materiais houve muitos, entre militares e elementos da DISA, a polícia política. Mas a própria DISA era dirigida por uma Comissão Nacional de Segurança, cujos responsáveis máximos eram Agostinho Neto, Lúcio Lara, Iko Carreira, Rodrigues João Lopes (Ludy) e Henrique Santos (Onambwé).

Os mandantes são, pois, facilmente identificáveis. Além de Agostinho Neto (ele mesmo ou através do seu chefe de gabinete), Iko Carreira, Lúcio Lara, João Luís Neto (Xietu) e Henrique Santos (Onambwé). Mas também tiveram os seus conselheiros, designadamente alguns embaixadores que não tiveram tento com a língua.

DW África: Então está a dizer que o principal responsável é o primeiro presidente da República de Angola, Agostinho Neto?

DM: É evidente. Nós afirmamos que as principais responsabilidades recaem por inteiro sobre Agostinho Neto, o presidente de Angola. Aqui cabe a lembrar o que pensaria ou faria Nelson Mandela, se estivesse na mesma situação. Referindo-se à governação de Creonte, na Antígona de Sófocles, sua peça preferida, Nelson Mandela dizia que "não se pode julgar um homem completamente, o seu carácter, os seus princípios, o seu sentido de justiça, até ter mostrado o que vale no governo do seu povo". Ora, Neto não se preocupou com o apuramento da verdade. É este o grande problema. Dispensou os tribunais, declarando publicamente que não iria perder tempo com julgamentos. Está na televisão, qualquer pessoa pode ver isto. Admitiu que fizessem justiça sumária pelas próprias mãos.

Ora, se compararmos de novo com Nelson Mandela: o ANC [African National Congress, o movimento de libertação da África do Sul] tinha 36 grupos e fracções. Mandela queria que vissem uma grande tenda que podia acolher muitos e variados pontos de vista. E sabia que não se podiam cortar os laços com a juventude, por muito excessiva e simplista que fosse, pois não se constrói o futuro sem aqueles que o irão viver. Imaginemos, então, por momentos, que, em vez de Mandela, a África do Sul teria tido por presidente Agostinho Neto. Em que banho de sangue não se teria mergulhado?

"O MPLA sempre tratou os dissidentes da pior forma" - 2ª parte da entrevista com Dalila Mateus

De acordo com Dalila Mateus, muito da história de Angola e sobre o 27 de maio de 1977 ainda estará por contar, porque falar destes acontecimentos tornou-se um tabu, pelo clima de medo que se instalou naquele país. Toda a documentação que tem recolhido está depositada na Torre do Tombo em Lisboa e Dalila Mateus tem esperanças que, a seu tempo, o Tribunal Penal Internacional possa debruçar-se sobre estes atos para que seja feita justiça em nome das vítimas e dos seus familiares.

DW África: Muitas vítimas eram militantes do MPLA, considerados "heróis" da luta contra os portugueses. Como se explica tanta violência dentro de um movimento de libertação?

Dalila Cabrita Mateus: O MPLA era, de facto, uma frente, agrupando gente de diferentes quadrantes políticos e sociais: comunistas pró-soviéticos, pró-chineses, pró-titistas, nacionalistas negros, terceiro-mundistas e muitos outros, que estão dentro do MPLA. Mas Neto trata esta frente como um partido leninista, construído sobre o princípio do chamado centralismo-democrático, mas com muito centralismo e pouca democracia. Ele é presidente, é o secretário-geral e é o tesoureiro. E quem não pensa como ele é dissidente ou "fraccionista".

E estes dissidentes são tratados sempre da pior forma. A Assembleia que elege Neto para presidente, elege para vice-presidente Matias Miguéis, também negro. Matias Miguéis era adepto de Viriato da Cruz. Em 1965, foi levado para Dolisie [hoje Loubomo, uma cidade da República do Congo] e morto. A partir daqui, a partir desta data, a execução dentro do MPLA passa a ser a forma de resolver o problema das dissidências.

DW África: Muitos protagonistas do levantamento do 27 de maio eram militares da chamada 1ª Região Militar, que lutaram contra o colonialismo português? Porquê?

DM: De facto, perto da capital [Luanda], formou-se um grupo de guerrilha, cujos primeiros elementos foram participantes no 4 de Fevereiro de 1961. Praticamente não tinham ligações com o MPLA, que só uma vez, através de um destacamento comandado por Monstro Imortal [nome de guerra de Joãõ Jacob Caetano, comandante do MPLA], conseguiu chegar até eles, levando-lhes alguns alimentos e armas.

Quem são estes homens da 1ª Região Militar? Apoiavam-se nas redes clandestinas que se iam formando na cidade de Luanda. Resistiram13 anos aos ataques do exército português, da polícia política portuguesa, a PIDE, e até da FNLA [movimento de libertação concorrente]. E nunca foram aniquilados. No Congresso de Lusaka, foi o seu representante, Nito Alves, que salvou Agostinho Neto. O qual começou por lhe "pagar" promovendo-o. Mas, depois, expulsou-o, prendeu-o e, finalmente, mandou-o matar. Parece ter sido fuzilado. Depois, segundo as nossas informações, a sua cabeça andou decepada por Luanda, em cima duma carrinha. Finalmente, segundo dizem, terão atirado o corpo ao mar.

DW África: Muitos dos angolanos que estudaram na União Soviética foram chamados de volta e executados. Porquê tanto medo dos que tinham ligações com a União Soviética?

DM: Não só da União Soviética, mas de todos os países de Leste e mesmo de Cuba. E o problema não era o medo dos comunistas. Eram simples bolseiros que se formavam nas universidades. Na esmagadora maioria não eram comunistas, nem se interessavam pela política. O problema era outro.

Nas explicações oficiais sobre o 27 de Maio, uma das versões era que se tratava de um golpe dos comunistas, apoiado pela União Soviética e pelo PCP [Partido Comunista Português]. Essa versão destinava-se a facilitar o "namoro" aos Estados Unidos da América, que na altura apoiavam a FNLA e a UNITA [os dois movimentos angolanos de libertação concorrentes ao MPLA].

Ora como não havia comunistas suficientes para justificar esta atuação, então inventaram-nos. Mandaram, então, regressar os bolseiros nos países de Leste, que pensavam ir para o Congresso do MPLA. Estes homens são convencidos que vão a Luanda para participar no Congresso do MPLA. Mas, ao desembarcarem, foram presos. E, segundo um antigo dirigente do MPLA que eu entrevistei, acabaram por ser degolados. Da matança, só escapou o filho de Neto e um amigo que estudavam na Roménia.

DW África: José Eduardo dos Santos estudou na União Soviética, em Baku, licenciou-se em Engenharia de Petróleos. Mesmo assim escapou à repressão. Como explica isso?

DM: Quanto a Eduardo dos Santos, dirigente do MPLA, também esteve para ser preso. Mas não por ter estudado na União Soviética. Mas sim, pensamos nós, que correu este risco pelo facto de, sendo presidente de uma comissão de inquérito ao fraccionismo, ter assinado um relatório em que ele próprio que negava a existência desse fraccionismo. Pelo menos, na Cadeia de S. Paulo, um dos carrascos dizia muitas vezes que, para quem queria ouvir, só faltava prender Lopo de Nascimento (o primeiro-ministro) e o Eduardo dos Santos. Que só não foi preso, porque o governador do Lubango, onde se encontrava, não o deixou prender.

DW África: Qual era o modelo do "Poder Popular" que Nito Alves defendia?

DM: No nosso livro dizemos que Nito Alves padecia das limitações de quem vivera muitos anos isolado e acossado. Se pensamos como viveu esta gente na 1ª Região, eles estavam sistematicamente a ser acossados pelo exército português, pela PIDE e pela FNLA. Portanto, Nito Alves encontra um manual marxista e transforma este manual numa espécie duma nova Bíblia, onde ele encontra soluções para todos os problemas. Mas estas limitações vão levar a estas manifestações, que por vezes podem parecer – ou são – de radicalismo e de dogmatismo. As suas "Treze Teses" são de facto um texto insuportável, com dezenas de citações a propósito e, sobretudo, a despropósito. No entanto, quem aparecia a defender soluções radicais eram Neto e alguns dos seus homens, que, de vez em quando, falavam da "revolução proletária".

Não ouvimos isto de Nito Alves. Ele e os elementos mais esclarecidos do seu grupo retorquiam que era um disparate, pois em Angola não existia uma classe operária capaz de realizar tal revolução. E preferiam falar de uma democracia popular.

DW África: Era um modelo democrático ou comunista, inspirado na União Soviética?

DM: O modelo soviético não tinha qualquer sentido em Angola, até porque a maioria dos operários e técnicos qualificados eram portugueses. E é um erro pensar que eram ideológicos os problemas que preocupavam Neto e os seus próximos. O que os preocupava era, em primeiro lugar, a denuncia que os nitistas faziam da corrupção, que estava a acontecer. E davam exemplos concretos dessa corrupção.

Preocupava-os, em segundo lugar, a influência dos nitistas nas organizações populares eleitas nos musseques [os bairros pobres de Luanda]. Eram eleitas as organizações populares e essas organizações tinham um papel fundamental. E preocupava-os, em terceiro lugar e principalmente, a possibilidade real de os "nitistas" virem a conquistar a maioria dos delegados no próximo Congresso [do MPLA].

DW África: Além de fraccionismo, Nito Alves foi também acusado de racismo. Com razão?

DM: De facto, Nito Alves foi acusado de racismo por ter afirmado que "no dia em que, em Angola os cidadãos varredores de ruas forem não só negros, mas mestiços e brancos também, o racismo desaparecerá". Aí estava o "racismo das lagartixas", acusava o Jornal de Angola. Só que a citação estava incompleta. Nito Alves dissera também que o racismo teria desaparecido no dia em que "os camaradas angolanos de origem europeia" puderem ascender "aos mais altos órgãos do MPLA e às responsabilidades administrativas e outras no aparelho de Estado".

Admitir que brancos e mestiços, considerados "angolanos de facto e de direito", pudessem ocupar cargos de topo no MPLA ou no Estado não é uma posição racista.

DW África: Algumas vítimas do 27 de maio tinham tido ligações estreitas ao Partido Comunista Português (PCP), que, por sua vez, era um aliado do MPLA na luta anticolonial. Que papel teve o PCP nos acontecimentos?

DM: A única pessoa que foi directamente acusada pelo MPLA de ser do PCP era Sita Valles, que fora dirigente da UEC – União dos Estudantes Comunistas. Mas Sita Valles já não era membro do PCP. Um mês depois do 27 de Maio, Sérgio Vilarigues, membro do Secretariado e da Comissão Política do PCP vai a Luanda e dá uma entrevista ao oficioso Jornal de Angola. Em setembro, a editora comunista publica a versão dos dirigentes do MPLA sobre os acontecimentos. E nesse mesmo mês de setembro, o vice-director da DISA, ainda hoje conhecido em Angola pelo "assassino", encabeça uma delegação do MPLA presente na Festa do jornal comunista Avante! Assim, se houve participação do PCP foi ao lado do Presidente de Angola [Agostinho Neto] e dos "vencedores" do 27 de Maio.

DW África: Como se explica o facto de, fora de Angola, poucos conhecerem a repressão do 27 de maio quando, ao mesmo tempo, todo o mundo conhece as atrocidades cometidas pelo ditador chileno Augusto Pinochet, mais ou menos na mesma época, mas que "apenas" causaram a morte de aproximadamente 3.000 pessoas?

DM: Difícil seria que fosse doutro modo.Primeiro porque, mesmo em Portugal, o caso foi silenciado. Na imprensa portuguesa era surpreendente a ausência duma posição activa de denúncia das violações flagrantes dos mais elementares direitos do homem. Segundo, porque em regra e em relação à África, só quando as barbaridades atingem enormes proporções é que elas são notícia.Terceiro, porque a diplomacia dos interesses continua a ter muita força.

DW África: Será preciso uma Comissão da Verdade do 27 de maio de 1977 para chegar a uma verdadeira reconciliação em Angola?

DM: Tenho muitas dúvidas que assim possa acontecer 35 anos depois dos acontecimentos, quando muitos dos principais actores já faleceram ou abandonaram a vida política, uma tal comissão não me parece ser possível, nem importante. Nesta altura, afigura-se mais sensata e oportuna uma acção que envolva dois aspectos: Primeiro: o esclarecimento e o assumir de responsabilidades pelo próprio MPLA. Segundo e principalmente: que se faça uma busca e a entrega das ossadas dos mortos para que as famílias possam fazer o luto da sua dor.  ORIGEM