sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Torga e a "descolonização

------------- Torga e a "descolonização" -------------

..."Retorno maciço dos portugueses do Ultramar. Na aflição da fuga, até de barco de pesca vieram muitos, a ponto de alguém dizer que fomos descobrir o mundo de caravela e regressámos dele de traineiras. A fanfarronice de uns, a incapacidade de outros e a irresponsabilidade de todos deu este resultado: o fim sem grandeza de uma aventura. Metade de Portugal a ser remorso da outra metade. Os judeus da diáspora ansiavam por regressar a Canaan. Povo messânico também mas de sentido exógeno, para nós o regresso é o exílio. A nossa Terra Prometida estava fora de Portugal.

--- MIGUEL TORGA, Diário XII, 3ª edição revista --- em : www.maulius.blogspot.com --
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terça-feira, 11 de novembro de 2008

Retornados (Aida


Um olhar à distância

Outono

Lobito

A hora da chegada

25 de Abril

Desaparecidos

Retornados

Luanda

Angola

RETORNADOS

Há momentos na vida em que tudo se depara negro e a esperança parece irremediavelmente perdida. Se em Angola não poderia continuar, por sua vez em Portugal, quem regressava de África era recebido do pior modo possível; com hostilidade, desdém e mesmo agressividade.

Analisando um pouco a situação logo se chegava à conclusão do motivo pelo qual a maioria dos que agora re­gressavam das ex-colónias, tinham ido lá parar. “Rapidamente e em força para Angola” foi a voz de comando do primeiro ministro português em mil novecentos e sessenta e um, quando ocorreram os fatídicos acontecimentos perpetrados no norte de Angola e extensivos à capital da província. Foi porém demasiado tardia esta ordem.

Se em lugar de ser dificultada a ida dos portugueses do continente para o ultramar como foi durante muitos anos com processos demorados, chegando ao cúmulo de ser necessária uma carta de chamada enviada por um familiar que lá residisse há um certo tempo para que outro membro da família se lhe pudesse juntar, tivessem sido criadas condições de incentivo à ida e fixação de muitos mais portu­gueses para aquelas paragens, talvez as coisas tivessem sucedido dum outro modo. A política ultramarina portuguesa pecou muito por omissão e falta de actualização.

Apesar de tudo a maior parte dos jovens militares que partiram convocados pelo governo da nação seguiu, uns mais receosos que outros, alguns mesmo com uma certa revolta mas a maioria porém, com a noção de que iriam defender uma parte integrante do território nacional, em auxílio dos compatriotas ali nascidos ou radicados cuja integridade física estava a ser ameaçada, enfim, cumprir um dever patriótico ao qual ninguém se deveria eximir. A noção de patriotismo e do cumprimento do dever acompanhou-os e fê-los lutar com valentia no momento da refrega, porém, o conhecimento daquele povo e daquelas terras aos quais, sem dar por isso, se vieram a afeiçoar e a estimar enfeitiçaram muitos deles a tal ponto de trocarem o seu torrão natal por aquelas paragens africanas, elegendo-as, para ali se radicarem e alguns até constituírem família.

Enquanto, até mil novecentos e sessenta e um, grande parte dos colonos que partiram para o ultramar eram gente ligada à terra, que dela viviam e nela trabalhavam, a partir desta data já não era bem assim; muitas pessoas formadas com cursos médios e superiores, quadros qualificados das mais diversas áreas, radicaram-se nos territórios portugueses ultramarinos, facto que deu origem a uma nova maneira de estar, novas formas de vida e um novo desenvolvimento sem precedentes na história daqueles povos.

Matilde chegou a Angola, chamada por seu marido, um dos muitos militares que se deixou enfeitiçar irremediavelmente por África logo após a sua convocatória para a guerra colonial, no ano de mil novecentos e sessenta e um. Ela partiu da metrópole, curiosamente no último voo feito pela TAP num dos antigos aviões de quatro motores a hélice com escala em Bissau, capital da Guiné portuguesa.

Nessa época era costume cantar-se, em todas as escolas de Angola antes do início das aulas pela manhã, o hino “Angola é Nossa”, muito divulgado através de todas as estações de rádio. Angola é nossa gritarei / é carne é sangue da nossa grei / para libertar, para defender, / para lutar até morrer...

Na história de Portugal ensinava-se que Angola bem como todas as outras províncias ultramarinas constituíam parte integrante do grande império português que nos fora legado pelos nossos corajosos e gloriosos antepassados que deram novos mundos ao mundo através dos descobrimentos e eram senhores de aquém e além mar.

A noção de patriotismo do cidadão português, pesava muito na formação dos jovens sendo, como é natural, mais arreigada nos militares, porém, o facto destes terem partido em defesa de um bem comum, começou a esbater-se ao longo dos anos bem como a ligação directa que estas circunstâncias tiveram com a deslocação maciça de muitas de suas famílias para o ultramar.

Os valores da nossa sociedade, com a revolução de vinte e cinco de Abril, estavam a mudar vertiginosamente e nem todos para melhor.

A dificuldade em transferir dinheiro de Angola para o Continente constituiu sempre um obstáculo difícil de contornar à maioria das pessoas que optaram fazer de Angola a sua terra.

A falta de liberdade na circulação de bens entre o ultra­mar e o continente embora fosse justificada, até determinada altura, com a intenção de reter o capital em solo africano para que aí fosse investido, a partir do momento em que se pensou na independência das províncias ultramarinas deveria ter sido de imediato modificada a fim de garantir os direitos dos cidadãos portugueses que lá residiam. Tal medida não tendo sido tomada, originou uma verdadeira catástrofe para quem foi forçado a abandonar África.

Nesta altura dos acontecimentos, dadas as circuns­tâncias das mudanças políticas ocorridas em Portugal, é de todo incompreensível que a transferência de capitais não tenha sido permitida. É intolerável que as pessoas que voluntária ou involuntariamente quisessem abandonar Angola, Moçambique, Guiné ou outra qualquer província não pudessem trazer livremente os seus haveres; dinheiro, carros ou quaisquer outros bens materiais. Prédios, terrenos urbanos ou rústicos, fazendas, fábricas, estabelecimentos, imóveis de qualquer índole, estavam sentenciados a ficar; é mais que evidente que os seus possuidores todos os pretendiam vender mas, em face da situação, não havia quem se interessasse pela sua aquisição.

A maior parte dos bens pertencentes aos cidadãos portugueses foi pura e simplesmente abandonada pelo facto de seus donos não terem outra opção. Chegou-se ao cúmulo de se trocarem carros quase novos por simples volumes de maços de tabaco ou por pequenas porções de determinados alimentos, entre eles o pão, que raramente se encontrava à venda.

Houve quem trocasse fazendas e casas por títulos de hipotéticas transferências bancárias para o continente as quais nunca chegaram às mãos dos seus destinatários. O depósito no banco nunca se concretizou e o paradeiro do burlão na maioria dos casos era desconhecido. Os lesados nunca pode­riam reclamar sob pena de incorrerem em crime punido por lei, sendo acusados de transferência ilegal e fraude, se persistissem na queixa.

No mercado negro os escudos angolanos que em tempos, em momentos de alta, chegaram a trocar-se por escudos portugueses na base dos trinta por cento, o que era escandaloso, estavam agora no mesmo mercado nos setenta, oitenta por cento e nem mesmo assim era fácil conseguir a troca. Para além de todas estas vicissitudes, terem de entregar mil e oitocentos escudos angolanos para receberem mil portugueses, não era fácil de aceitar a pessoas que viviam do seu trabalho.

O facto do Governo Português não acautelar ou, pior ainda, não autorizar a transferência dos bens dos portugueses na altura da descolonização foi uma das maiores injustiças, praticadas por quem mandava e a desgraça de tanta gente, que após longos anos de trabalho, caiu sem culpa nem pecado na mais odiosa das misérias, na pobreza extrema, no desespero, muitos na loucura e até na morte. Foi a situação mais injusta e catastrófica que imaginar se possa!

Dum momento para o outro perderem todos os seus haveres sem nada terem contribuído para essa perda. Serem forçados a abandonar o fruto do trabalho árduo no decorrei de longos anos, de canseiras, vigílias, economias feitas à custa de grandes sacrifícios. Deixarem empresas, fazendas, prédios, terrenos, carros, dinheiro, a própria casa com seu recheio, objectos pessoais, roupas, enfim... tudo, (houve pessoas que, se quiseram salvar a vida, regressaram apenas a roupa que traziam vestida).

Verem-se despojados de quanto haviam adquirido, custa muito a aceitar e, é impossível explicar por palavras a quem o não viveu.

Porém a desventura não se ficou pelo roubo de que foram vítimas.

Para quem espoliado de África, ao chegar a Portugal se encontrava sem nada, sem trabalho e sem dinheiro para fazer face às despesas mínimas, com filhos, dois, três, quatro, que necessitavam de alimentação, casa, roupa, cuidados de saúde, de educação e os demais inerentes à vida. Bater de porta em porta à procura de trabalho, de alojamento e ver as portas fecharem-se-lhe sistematicamente. Tentar junto das instâncias oficiais encontrar soluções para minimizar as causas da tragédia que sobre si se abatera e não conseguir resposta. Ver passarem-se dias, semanas, meses sem vislum­brar a mais ténue luz ao fundo do túnel era duro e de uma imensa crueldade.

O calvário destas gentes no entanto, não se deteve por aqui, continuou no acolhimento de que foram alvo, nos títulos de honra com que foram rotulados: fascistas, colonizadores, desalojados, retornados. Retornados foi ponto assente. No fim de algum tempo ficariam os famigerados retornados.

Foi com muita tristeza e enorme desespero que constataram a hostilidade com que os viam chegar em ava­lanche cada vez mais densa à medida que se ia aproximando a anunciada independência, melhor diria, a desgraça. Desgraça dos retornados, despojados de todos os seus haveres e reduzidos à pobreza, desgraça e condenação definitiva das gentes de Angola.

Para maior desgosto dos já destroçados retornados, muitas pessoas da nossa sociedade achando-se na posse do discernimento, da sabedoria, da justiça nem sequer se davam ao trabalho de camuflar os seus sentimentos de desagrado, passando muitas vezes de hostis a agressoras quer em palavras quer amiúde em actos rancorosos praticados contra irmãos, parentes, amigos, conterrâneos conhecidos ou desconhecidos que despojados de tudo regressavam de África.

Estes ouviam com frequência dizerem-lhes que vinham sem nada porque queriam, ninguém os forçara a ficar por lá. Fora a ganância que os lá retivera. Porque não continuavam lá, se era uma terra tão boa? Claro, porque os pretos os corriam porque estava na cara que os maltratavam, os exploravam, os tinham subjugados na miséria. Toda a gente sabia que fulano, sicrano e beltrano chicoteava os pretos, os roubava, os obrigava a trabalhar como escravos...

Queixavam-se de quê? Só tinham o que mereciam. Aquilo era deles, que queriam os brancos trazer? A África é dos pretos, os portugueses é que estavam lá a mais.

Ainda por cima agora queriam vir tirar o lugar aos que cá estavam, que nunca de cá saíram, porque não eram ambiciosos como eles. Quiseram tudo, tudo haviam perdido. Agora nada tinham que se lastimar.

Chegavam ao cúmulo de lhes dizerem que o que haviam ganhado lá tinha sido à custa dos pretos, portanto era justo que lá ficasse.

Agora virem para cá e querem que o estado (eles, que no fim de contas eram eles) os sustentassem à boa vida! Isso era o que mais faltava! Lá tinham vivido à custa dos pretos, cá queriam viver à custa dos brancos.

Cambada de usurpadores e parasitas, era o que eles eram, acrescentavam quando a discussão subia de tom.

Este clima de acolhimento que nunca esperaram encon­trar, deixava os retornados tristes e exasperados. No entanto, apesar de todo o infortúnio por que estavam a passar, alguns dos que chegavam, mais desprendidos ou com um espírito de humor mais apurado, constituindo uma honrosa excepção, ainda tinham ânimo que, por vezes, lhes permitia brincar com a situação.

Foi o caso duma interessante conversa que Matilde ouviu uma tarde ao entrar num pequeno bar duma vila do centro do país onde, como é habitual, um grupo de homens, costumava juntar-se em amena cavaqueira. No momento a conversa estava animada. Os temas, como as cerejas, iam-se encadeando uns nos outros passando, inexoravelmente na altura, pelos retornados.

Uns queixavam-se disto, outros acusavam-nos daquilo, sendo, porém, todos unânimes na ideia de que os regressados de África estavam a constituir uma praga, tal era o número dos que afluíam dia após dia ao Velho Continente.

— Na realidade, disse um dos presentes à laia de con­clusão, daqui a pouco, não se vê mais nada nesta terra senão retornados e cães!

— É verdade, é verdade...

— Você é que tem razão - aplaudiram quase em uníssono todos os presentes.

De repente, alguém reflectiu e, uma voz se levantou do meio do grupo:

— O senhor por acaso não é retornado? Ou é?

— Claro que sou, homem!

— Eu também, exclamou quem falara e, ambos desa­taram a rir com vontade perante o espanto dos demais que de repente não se haviam apercebido onde estava a piada.

Mas estes momentos eram raros. O discurso normal era o que vínhamos descrevendo.

Os retornados eram cada vez mais, queriam era vir tirar os lugares, os postos de trabalho, passar à frente, dos que cá estavam mas isso não iria acontecer porque eles não deixariam. Que pouca vergonha, andaram lá a ganhar muito mais do que os que cá estavam, a trabalhar muito menos, e o tempo a contar a dobrar!

Era com ditos desta estirpe que os mimoseavam.

Parece impossível, mas estas ideias andavam na cabeça de colegas, amigos e até familiares e eram apresentadas sem a menor deferência.

Tentar chamar à razão essas pessoas, que se insurgiam contra quem forçado regressava à sua terra, argumentando de mil maneiras, era tarefa vã. Dizer-lhes que afinal com a ida de muitas pessoas para o ultramar todos haviam ganhado, que as terras africanas foram alvo de um desenvolvimento sem precedentes na história, que as relações entre brancos e negros eram boas, que isso de tratar os negros como escravos, chicoteá-los, acontecera em tempos muito remotos e não na nossa geração (tempos nos quais os próprios brancos eram assim tratados, por outros brancos). Lembrar-lhes quantas mulheres na actualidade recebiam aqui maus tratos, quantas eram exploradas no seu trabalho, já não falando na prática corrente da exploração do trabalho das crianças, dos des­protegidos, dos humildes... de nada valia.

Pareciam desconhecer ou pretenderem ignorar que todas estas questões e procedimentos, embora incorrectos, eram fruto da época e aceites como normais pela sociedade então vigente. Em Angola não acontecera mais que o reflexo do que se passara cá e por esse mundo além, apenas com uma pequena mas significativa diferença; entre os portu­gueses e os nativos aconteceu o que não aconteceu com nenhum outro povo colonizador, a mestiçagem seguida ou antecedida de muitos casamentos entre brancos e negros; não era por acaso que se dizia que, Deus criara os brancos e os negros e os portugueses os mestiços.

Tentar afirmar que os portugueses na generalidade eram tolerantes amigos e respeitavam os africanos tal como os naturais do continente, pagando-lhes bem se trabalhavam bem, era tempo perdido pois tais argumentos pura e simplesmente não lhes interessavam. Era ponto assente:

quem não tinha ido ou ficado em África era honesto, quem lá permanecera era explorador.

No seu entender existiriam algumas excepções... talvez! Davam-lhes por vezes o beneficio da dúvida.

Tentar fazer com que reflectissem, lembrando-lhes que quase toda aquela gente havida perdido tudo sem culpa, pedindo-lhes que se colocassem no lugar de quem voltava de mãos vazias, tal como se um fogo ou uma catástrofe na­tural, um terramoto por exemplo, lhes destruísse todo o seu património, deixando-os dum momento para o outro sem nada, era tempo perdido pois recusavam-se a estabelecer semelhante comparação, por inverosímil.

Caricato seria perguntar-lhes se os emigrantes portugueses, na França, enriqueceram à custa de explorarem os franceses, os da Venezuela, os venezuelanos.., e se os negros não deveriam permanecer na Europa porque não é a sua terra, mas os retornados nunca poderiam colocar tais questões porque jamais pensariam desse modo.

Só passados muitos anos, grande parte dos membros da nossa sociedade viria a admitir que os retornados, na sua maioria, eram gente honesta e empreendedora. Muitos deles conseguiram refazer a sua vida em tempo recorde e, de uma forma exemplar, o que deixou admirados todos os que tiveram conhecimento do modo, talvez único, como se ajudaram mutuamente. O que por certo talvez nunca conseguirão avaliar é o sofrimento pelo qual passaram durante todo esse período de recuperação e as feridas que apesar de todos os esforços, não conseguiram jamais sanar.

Deveria, no mínimo, ter ocorrido, a seu tempo um processo de indemnização aos lesados, por parte do Governo Português, porém, até ao momento actual, por estranho e incrível que pareça, tal facto ainda não aconteceu, a justiça ainda não foi reposta.

A realidade do mau acolhimento de que estavam a ser vítimas todos os que retornavam a Portugal já Matilde a conhecia penosamente martelando-lhe o cérebro sem parar, e quanto doía! Porém era preferível enfrentar a hostilidade na sua terra, a permanecer em Angola onde a vida se havia transformado num enorme pesadelo.

Afinal ela era uma optimista nata e não perdera a es­perança de que, após ter a família reunida, iria conseguir contornar os obstáculos e vencer as dificuldades que se lhe deparassem, por maiores que fossem.
http://xirico.com/c_htm/tri/retornados.php

O PARTO DE ANGOLA

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A independência de Angola foi o processo mais difícil, doloroso, complexo e retardado entre as emancipações africanas ao soltarem-se da canga do colonialismo português. Por razões sobejamente conhecidas. Talvez não pudesse ser de outra forma a “perda” da “jóia da coroa”.

O que mais me espantou, entre muitos outros méritos, num livro recém lido de Emídio Fernando (*), foi a leveza, capacidade de síntese documental e testemunhal, mais o rigor distanciado, com que trata e documenta o drama da perda do “diamante colonial”. Sendo o autor um jornalista, nascido em Angola, é um fascínio a leveza não dramática, mas sinaleticamente pontuada, com as linhas de força cruzadas e entrelaçadas, com que Emídio Fernando desdramatiza o drama, e que drama, mais os traumas conexos, tornando-o perceptível como se um mero encadeado histórico se tratasse, apesar da sua complexidade dramática, e ele não fosse mais que a afirmação do inevitável, fórmula abrangente de desdramatizar, mesmo nos seus pontos de absurdo, perfídia e crueldade, pacificando dores e rancores, ao transformá-los, dando-lhes distância, em dados históricos e irreversíveis.

Siga-se o exemplo - para Angola e outras antigas colónias - e, então, podemos estar à beira da necessária e urgente catarse pós-colonial. Obrigado pois.

(*) – “O último adeus português”, Emídio Fernando, Editora Oficina do Livro.

Imagens: A de cima é famosa - um oficial fuzileiro português leva consigo, na retirada em 11 de Novembro de 1975, a bandeira nacional acabada de arrear como símbolo da extinta soberania portuguesa sobre Angola. A de baixo, é um instantâneo do regresso dos "retornados", tentando acarretar com eles, e em caixotes, o máximo dos seus pecúlios acumulados.

angola_2.JPG Posted by joao.tunes in Agualisa

A surpreendente integração dos RETORNADOS

Retornados de África, a imigração invisível e
a surpreendente integração...

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Entretanto o vocabulário português ganhava uma nova palavra - RETORNADO. Os cais começaram a encher-se de caixotes vindos de África e começou a aparecer gente nova, de certa maneira diferente, embora igual. Gente muita gente aparecia vindos de Angola, Moçambique, Guiné, Timor. Eram os Retornados que depressa se misturararam com a gente de cá e se distribuiram por todo o país. Regressavam para junto das suas famílias e das suas origens. Com eles regressavam também gente nova na idade, muito a pisar pela primeira vez o solo de Portugal continental.

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Os retornados de África demonstraram no momento da diáspora que lhes foi imposta e na dita «facilidade» com que decorreu a sua integração na sociedade portuguesa e não só, dois aspectos que deveriam ser estudados à exaustão e que acentam sobre dois pilares indubitáveis:

1. A sua índole pacífica e pacificadora
2. A sua capacidade e trabalho e organização


Neste Link: A surpreendente integração dos RETORNADOS

http://xirico.com/c_htm/tri/retornados.php


Os Retornados do ex-Ultramar na valorização da sociedade portuguesa
ANTÓNIO PIRES

Uma das ideias feitas que ainda hoje subsiste no nosso País, é a de que os «retornados do Ultramar» constituíam uma legião de indivíduos que vieram agravar de várias formas o já de si deplorável estado da sociedade portuguesa à data da Descolonização. Sociedade que estava sofrendo o inevitável depauperamento causado pela emigração maciça dos seus braços mais válidos em busca de melhores condições de vida, sangria que começara muito antes das chamadas «guerra colonial» e que esta veio inevitavelmente acentuar. Disse-se, escreveu-se, e ficou gravado no entendimento comum dos portugueses, que a maioria dos retornados era uma legião de pessoas rudes, na maioria já de idades avançadas, que tinham queimado as suas energias pelas terras de África, pouco produtivas para a tarefa da reconstrução nacional, e sobretudo escassamente preparados do ponto de vista profissional.

A ideia geral que se fazia — e intencionalmente se propalou!... acerca dos retornados do ex-Ultramar, era a de uma maioria de rudes capatazes agrícolas, broncos e violentos, de astutos comerciantes do mato, e de uns tantos «endinheirados» que exploravam negócios altamente chorudos! Acontece que os sucessivos contingentes que os aviões despejavam diariamente no Aeroporto de Lisboa, nos dois ou três meses que se seguiram ao êxodo maciço dos portugueses de Angola e de Moçambique, bem como as imagens fotográficas ou da Televisão, davam uma aparência de realidade a tão deploráveis e errados juízos. São hoje suficientemente conhecidas as deploráveis condições em que os retornados de Angola e Moçambique regressaram a Portugal - nove em cada dez, apenas com as roupas que tinham vestidas no momento do embarque, por não terem tido tempo nem possibilidade de voltar aos lares de onde tinham sido expulsos a ferro e fogo para salvar as vidas. Todavia, serenada a tempestade ou calamidade que se abateu sobre os retornados do Ultramar, acalmadas as inevitáveis paixões políticas e serenados os juízos precipitados — as estatísticas encarregaram-se de rectificar as asneiras insidiosas e intencionais, e de dar ao País um retrato real dos retornados, sob mais diversos aspectos. Paralelamente, as manipulações da opinião pública foram cessando, e estudiosos atentos e imparciais debruçaram-se sobre a realidade - e os retornados do ex-Ultramar surgem aos olhos da opinião pública e dos seus concidadãos em geral, como aquilo que na realidade são.

Para esboçar esse retrato do retornado socorremo-nos de um valioso e insuspeito estudo realizado por um grupo de universitários, prefaciado por uma brilhante Secretária de Estado de um dos Governos pós 25 de Abril, editado pelo Instituto de Estudos para o Desenvolvimento, para neste momento e neste local, traçarmos um RETRATO DE CORPO INTEIRO dos retornados, e da sua contribuição para a revitalização da sociedade portuguesa. * * * O apuramento realizado pelo Instituto Nacional de Estatística em 1978, citado pelo referido grupo de universitários no estudo que consultámos, referia a existência de 505.078 indivíduos entrados no País e inscritos como «retornados do Ultramar».

Em termos percentuais esses 505 mil retornados representavam pouco mais de 5% do total da população nacional. Este número é discutível e muitas fontes insistem em números mais elevados, entre 700 a 800 mil. Mas trata-se de números oficiais, registados pela estatística oficial, e é em presença deles que temos de raciocinar. Ora, segundo os números do Instituto Nacional de Estatística, daqueles 505.078 retornados, um pouco mais de metade - exactamente 298.968 - eram nascidos ou oriundos de Portugal, e portanto os restantes 206.110 eram portugueses já nascidos nas então províncias ultramarinas. Por enquanto trata-se apenas de distinguir entre portugueses oriundos de Portugal que regressavam ao país de origem, e portugueses nascidos noutras terras e aos quais, só por isso, parecia querer negar-se a qualidade de portugueses também... Porém, o que é realmente importante, e mostra insofismavelmente que os retornados vieram rejuvenescer a sociedade portuguesa, é a observação desses dados estatísticos quando entra na discriminação etária, cultural e profissional dos retornados. Assim, sob tais aspectos, verifica-se que: daqueles 505.078 retornados, 65,5% tinham menos de 40 anos e constituíam portanto uma parcela válida. Mas acima dos 40 e até aos 64 anos a percentagem de retornados era de 29,8% - todos sabem como no Ultramar os homens até aos 60 anos eram uma das parcelas mais válidas das populações, senão em energias físicas pelo menos em saber e experiência acumulada. Além disso, do total de retornados, 52,74% eram homens e apenas 47,26% mulheres — o que pressupõe uma maioria de braços válidos para o trabalho. Porém, um dos aspectos mais importantes desta notação estatística, é aquele que refere que a população retornada era em regra profissional e intelectualmente mais bem preparada do que a da metrópole, pois que do recenseamento efectuado, resultava que: 48,4% tinha instrução primária (numa época em que na metrópole havia mais de 20% de analfabetos); e dos restantes 51,6%, descontando apenas 6,5% de não-alfabetizados constituídos quase exclusivamente por crianças com menos de 10 anos de idade, havia 8,5% de possuidores de cursos superiores incluindo médicos, professores universitários, investigadores, advogados, etc., e mais de 30% possuíam cursos médios, secundários e profissionais.

Com a entrada dos retornados, a sociedade portuguesa foi subitamente enriquecida com mais de 5.000 mil engenheiros, arquitectos e técnicos dos mais elevados graus e ramos da engenharia civil e de minas, de industrias transformadoras e outras; cerca de 1.800 biólogos, agrónomos, investigadores dos ramos fisico-químicos e similares; quase 13.000 professores e outros docentes de todos os ramos do ensino, desde o primário ao universitário; 325 navegadores, pilotos e outro pessoal especializado da navegação aérea e marítima; cerca de 16.000 quadros de serviços administrativos e outros, desde estenógrafas a operadores de informática. No sector da produção, a força do trabalho metropolitana foi enriquecida com mais 13.000 mecânicos especializados; cerca de 7.000 serralheiros civis, montadores de estruturas metálicas, caldeireiros e profissões similares.

A construção civil, cuja maior força de trabalho tinha emigrado para os países da Europa, foi enriquecida com 13.000 pedreiros, carpinteiros e outros profissionais dos mais diversos ramos. As indústrias transformadoras foram enriquecidas com mais 12.000 operários especializados, desde os ramos têxtil ao da alimentação e bebidas, da mecânica fina ao mobiliário. O sector dos transportes viu-se repentinamente valorizado com a entrada de mais 13.000 condutores de veículos pesados e de transportes públicos. No sector agro-pecuário surgiram mais 16.000 capatazes e condutores de trabalhos agrícolas, de maneio e tratamento de gados ou de exploração florestal, em escalas que, em muitos casos, não eram conhecidas neste país. Mas vieram ainda cerca de dez mil trabalhadores dos ramos de hotelaria, restaurantes e similares, cozinheiros, ecónomos e outros. Porém, e talvez mais importante ainda que as suas especializações profissionais, os retornados trouxeram à força de trabalho do País a contribuição valiosíssima da disciplina, da produtividade, da assiduidade, que rapidamente os distinguiram (e não raro os tornaram detestados...) num ambiente em que apenas se falava de postos de trabalho... mas não se trabalhava; em que o absentismo ascendeu a taxas inconcebíveis, em que os locais de trabalho se transformaram em centros de organização de manifestações a propósito de tudo e de nada.

Cremos que estes números, extraídos de fontes absolutamente insuspeitas, serão suficientes para desfazer certas ideias que, infelizmente, ainda de tempos a tempos afloram em certos meios e em determinadas ocasiões, acerca dos Retornados do ex-Ultramar. Na realidade, e a despeito das desgraçadas condições em que se desenrolou o seu regresso à Pátria de origem ou de opção - o fluxo dos retornados constituiu na realidade um indiscutível e precioso factor de valorização da sociedade portuguesa, em praticamente todos os sectores da vida nacional.

BRAVOS RETORNADOS



DESCOLONIZAÇÃO EXEMPLAR
ou GAIVOTAS QUE VOAM [RETORNADOS DAS EX-COLÓNIAS]
E-BOOK - EDIGOMO

PRÓLOGO

É voz corrente que a integração dos chamados “Retornados/Refugiados” das ex-colónias portuguesas foi pacífica, e que Portugal até conseguiu superar a poderosa França nessa matéria! Há alguma verdade nessa afirmação, mas terá sido assim tão linear? O autor, na qualidade de funcionário-retornado, expulso de Timor, vai tentar pôr o leitor em contacto com pessoas, famílias e funcionários públicos que tiveram de recomeçar a vida em Portugal, debaixo de dificuldades mil e privações várias, após terem deixado para trás – TUDO - [quiçá, a própria alma), em nome de uma Descolonização a que chamaram, imagine-se, de “Exemplar”, e que, ainda hoje, em 1999, exibe as suas feridas crónicas - casos de Timor, Guiné e Angola - como é do conhecimento de todos. Pretendo, assim, com este modesto trabalho, prestar a minha justa homenagem a todos os “Retornados/Refugiados” que souberam engrandecer este Portugal, (nas artes, letras, ciências, ensino, funcionalismo público, construção civil,comércio, etc) na altura mais crítica das suas vidas e da sobrevivência deste país, recém saído do 25 de Abril de1974.

A FUGA
- Fujam, fujam... era a voz que se ouvia no cais de Lobito, naquela manhã de sol de 1975...
Ao longe, o matraquear das metralhadoras e o estoiro dos morteiros de sessenta milímetros. Era a guerra que chegara do mato e invadia a cidade. Malaquias tinha saído da casa para o seu emprego de contínuo no porto e só teve tempo para saltar para o bojo de uma traineira, ainda agarrada ao molhe por um cabo de aço, rangendo e pingando ferrugem amarelada. O motor foi ligado a todo o gás e a embarcação despreendera-se do cais, deixando um pedaço do cabo de aço ainda agarrado ao molhe. Malaquias, só com a roupa que levara no corpo para o serviço, um fato azul, gravata vermelha e camisa branca, foi atirado para o convés da traineira, ficando quase a lamber as tábuas cheirando a peixe seco e que forravam o castelo da proa. O mar estava grosso; as nuvens de fumo das morteiradas ainda toldavam a bela cidade de Lobito, com a restinga ao fundo, ladeada de coqueiros e de belas vivendas.
Malaquias teve medo de levantar a cabeça e olhar a sua cidade, através do buraco da âncora da traineira, por onde a água do mar entrava aos jorros...
Adeus Lobito, adeus minha terra de Angola!
Já recomposto do susto, o seu amigo Danny agarrado a uma boia com o nome da embarcação, o Bengo, ainda nem queria acreditar que estava a caminho de um porto mais seguro. A máquina fazia trepidar a estrutura da traineira, com a sua proa altaneira, cortando o oceano em direcção ao porto de Luanda, um pouco mais a Norte. O destino final seria Lisboa ou outro porto, depois de atestarem os depósitos para a longa viagem... A noite caíra e o Sol-posto manchava o mar com pinceladas alaranjadas e de um encarnado intenso. Algumas gaivotas seguiam a marcha do Bengo, à cata de restos da comida que não faltava a bordo. O rumo era Walwis Bay, na Namíbia, onde poderiam efectuar algumas reparações urgentes de que a traineira carecia. O Malaquias, ainda estupefacto, contemplava a costa angolana, pensando na família que ficara escondida no mato, esperando que a guerra acabasse, para se juntar a ele na cidade de Lobito. Relembrava-se de uma Angola em paz, com o porto cheio de barcos carregando ou descarregando mercadorias e traineiras despejando caixas de peixes apanhados ao largo de Moçâmedes e Baía dos Tigres. A traineira, já com a noite sobre o mar, após uma estadia breve em Walwis Bay, voltou a rumar para o Norte de Angola, passando por Novo Redondo e Porto Amboim...
Após alguns dias de mar, enfim, a cidade de São Paulo de Luanda, onde o Bengo iria fazer escala, para se reabastecer de combustível e víveres para uma longa viagem. Na memória do Malaquias, a saída inesperada da cidade de Lobito e o futuro incerto para a sua família. Deitando contas à vida com o seu amigo Danny, natural da bela cidade de Benguela, assim falava, perturbado pelo tantan do motor da traineira:
Espero chegar a Portugal e ver como vão as coisas por lá, após o 25 de Abril, e só depois mando ir a mulher e os meus dois filhos, ainda escondidos na mata em casa do meu sogro...
Danny, muito pensativo, limpando as unhas com um canivete e sentado sobre uma caixa de madeira ainda com as marcas da empresa de pesca (N & Silva), deitava contas à vida. Falou em voz alta:
É a guerra, amigo Malaquias? Enquanto Angola tiver esses malditos diamantes e o negro petróleo não vamos ter sossego...
A traineira branca de nome Bengo, após alguns dias de viagem, aportara Luanda para se reabastecer, não obstante o clima de guerra civil já aí reinante.
Numa tarde cinzenta, a traineira rumou mar alto, a caminho de S.Tomé a próxima escala - tendo na sua rota as ilhas de Cabo Verde, as Canárias, a Costa de Marrocos e, por fim, Portugal desejado. Bengo, donde vinham o Malaquias e Danny, chegou à costa portuguesa, mais precisamente ao porto de Lagos, no Algarve, após uma escala forçada em Las Palmas e em EL Jadida, em Marrocos. Pensavam ter encontrado a Terra Prometida Portugal - o país donde partiram os navegadores, séculos antes, à descoberta do Mundo.
(Não vou narrar a viagem, que só ela daria para mais cinco capítulos) mas, adiante:

-II-

A CHEGADA


Foi num 10 de Junho do ano de 1975 (Dia da Raça ou de Camões, como queiram), data em que pisaram, pela primeira vez, a terra portuguesa, ficando a traineira Bengo abandonada e triste, apodrecendo num cais de Lagos. A Capitania recolheu os refugiados. Foi então que ouviram a nova palavra Retornado, escrita numa guia, passada pelas autoridades, para se apresentarem em Lisboa no IARN [Instituto de Apoio aos Retornados Nacionais] recém-criado pelo governo português de então, para Apoio aos refugiados que chegavam, diariamente, das Ex-colónias portuguesas de África.
Danny chamaram-nos de Retornados?
Quem?
Aquele marinheiro da Capitania, o de boné sebento, barba por fazer e cravo encarnado no peito da farda!
Esse mesmo!
Sou refugiado e não Retornado dizia-lhe o Malaquias, bastante aborrecido! Nem sou de cá! Não nasci em Portugal! Sou de Angola, de Lobito! Refugiado e funcionário de Portugal, SIM...
Uma velha camioneta, estacionada debaixo de uma frondosa árvore, ia partir para Lisboa. Entraram. A viatura ainda tinha lugares vagos e iria parar, sucessivamente, na Vila do Bispo, Aljezur, Sines e Alcácer do Sal, antes de rumar para o IARN. Danny observava a cidade através da janela da velha camioneta, que largava para o ar uma densa fumarada negra. Todos os passageiros estavam calados e espantados com o que viam.
Passaram por uma das ruas de Lagos, onde decorria uma manifestação do PC, no meio de bandeiras encarnadas e cartazes:

Mais nenhum soldado mais para África,
Portugal para os portugueses,
África para os africanos

O Malaquias assim falou ao companheiro:
Isto está mau, caro amigo, penso que pior que Angola donde saímos, há já algumas semanas...
O motorista da fumegante e velha camioneta, rangendo os dentes, abrandou a marcha e viu-se engolido e forçado a parar junto a uma esplanada, para deixar avançar o desfile, cujos manifestantes entoavam, cedenciadamente, as tais palavras de ordem.: o povo unido jamais será vencido... Ao verem a camioneta com as letras do IARN, os manifestantes e os circunstantes tomaram mais ânimo e desataram aos berros:
Seus colonialistas vão mas é para as vossas terras! Correram connosco de lá e agora vêm tirar os poucos empregos que temos para os nossos filhos...
O motorista, de barba de vários dias, camisa bem suada nos sovacos e boné descaído sobre a testa, animado pelo ruído da rua, foi comentando, enquanto palitava os dentes ainda com bocados do pastel de bacalhau comido na tasca do tio Zé:
Pois é verdade! Já éramos poucos aqui e agora passo os dias a levar esses malandros dos retornados para o IARN, em Lisboa. Para os nossos filhos, os desta terra, nem uma camioneta para irem para as escolas, aqui a dois passos...
Malaquias, mesmo sem querer, entrou na conversa:
Olha, senhor motorista, se vocês tivessem feito uma descolonização “exemplar” e não um simples abandono das colónias ao bicho-homem, nós não estaríamos aqui, agora, entende!
O motorista desviou-se de um caixote de tomates, caído no pavimento, e não deu resposta ao seu interlocutor com a face queimada pelo mar, para bem de todos os passageiros já inquietos com o tom da conversa...
Entretanto, a manifestação política deixara a rua livre e concentrava-se, agora, na Praceta da Revolução, previamente preparada com altifalantes, tribuna de tábuas pregadas e bidons. A camioneta conseguiu seguir viagem pela marginal, com o mar à esquerda e as praias cheias de veraneantes, pois decorria o mês de Junho do ano de 1975.


***

Após um dia de viagem, sob o calor tórrido de um Alentejo despido e queimado de secura e breves paragens, a cidade de Lisboa estava à vista com o seu casario semeado pelas sete colinas, iluminadas pelo Sol-poente...
Cidade linda! confirmava Danny, contemplando os grossos cabos de aço, pintados a zarcão, sustentando a longa Ponte sobre o Tejo ponte a que o motorista chamou de 25 de Abril, esclarecendo aos passageiros que as gigantescas letras da Ponte Oliveira Salazar (o mandante da construção da mesma) foram arrancadas e jaziam misturadas com entulhos vários, na base dos pilares, lá em baixo, em Alcântara Terra.
A camioneta parou no meio de uma grande fumarada com cheiro a borracha queimada. Deixou os passageiros junto a um velho edifício pintadado a ocre pálido e paredes estaladas, cobertas de pinturas a spray vermelho local onde funcionava o tal IARN, Instituto que ia acolhê-los e eram muitos - a engrossar uma bicha de centenas de metros...
Era hora do jantar.
Um funcionário sonolento, e cara de vinho tinto, foi preenchendo as fichas e distribuindo os Retornados por hotéis ou pensões da capital e resto do país [sem turistas por causa da revolução], de acordo com a categoria social de cada, certamente avaliada pelo vestir ou modo de falar de cada refugiado.
Ao Danny deram-lhe pelas mãos uma guia para se apresentar numa instalação turística, há muito abandonada, por falta de turistas, lá para os lados da Serra da Estrela, a mais alta de Portugal, comentou o funcionário, em geito de chacota...
Quanto ao Malaquias, depois de bem examinado de alto a baixo e avaliado o seu caso por um funcionário com o ar de doutor, daqueles administrativos, donos do antigo Ministério do Ultramar (um porteiro, certamente), foi-lhe dito que teria de resolver o seu assunto no Quadro Geral de Adidos,[QGA] - Organismo de acolhimento para os funcionários públicos, recém-criado, a funcionar num velho palacete da Cova da Moura, também partilhado com o MFA das revoluções. Para as primeiras necessidades, podia recorrer-se à Cruz Vermelha Portuguesa com Sede em Algés, que fazia adiantamentos de vencimento, à razão de mil escudos por cabeça do agregado, importância a ser descontada futuramente pelo Estado... Nessa noite, por não ter para onde ir, Malaquias dormitou num alpendre de zinco do IARN, antiga garagem, esperando pelo amanhecer, que nunca mais chegava.
Assim que sentiu os eléctricos deslizarem pelos carris de aço brilhante, que até passavam mesmo ao lado do edifício, o pobre homem pôs-se a caminho de Algés, guiado por mais funcionários públicos, que tinham um estatuto diferente dos outros refugiados, mas ainda um longo calvário até uma integração plena no desorganizado e inoperante funcionalismo público da metrópole de então [1975]...

Eram seis da manhã, quando o grupo de funcionários desesperados conseguiu, finalmente, localizar a Delegação da Cruz Vermelha de Algés. Um edifício desbotado pelo sol e com plantas floridas pendentes de um telhado apodrecido pelo tempo. A bicha de funcionários qual serpente gigante do mato africano ia terminar do outro lado da viela de pedras pretas e polidas, cujos passeios estavam tomados de ervas daninhas e viçosas e abundante lixo, coisa muito vulgar na Lisboa pós-revolucionária do 25 de Abril [e ainda hoje, em 1999, diga-se em abono da verdade]. Reinava um silêncio impressionante, sepulcral mesmo, naquela manhã morna em que centenas de Malaquias aguardavam uma esmola daquela Instituição de Caridade [um adiantamento do seu vencimento] para mitigarem a fome a eles e às famílias. Viam-se funcionários humilhados e envergonhados, pois, em Angola, Cabo Verde, S. Tomé, Guiné, Moçambique ou Timor sempre viveram com dignidade, de cabeça levantada, coisa que a desastrosa descolonização exemplar lhes roubara. Na bicha havia um ex-administrador de concelho de Timor, que, por ter três filhos menores para sustentar, não encontrou outra saída que integrar-se na longa bicha da Cruz Vermelha, nesse ano de má memória de 1975. No local, os únicos seres que olhavam para nós, sem rancor, eram os pombos arrulhando do alto dos podres telhados das velhas e decadentes casas do alto de Algés. Havia na bicha funcionários de várias categorias, alguns escondendo as faces com jornais já lidos, para não serem reconhecidos pelos colegas, naquela triste serpente que mais parecia uma entrada para campo de concentração nazi...
Eram seres com as suas vidas desfeitas pela tal descolonização exemplar. Um deles tinha sido metido, na ilha do Sal, num avião, por militares revolucionários portugueses, e abandonado, horas depois, no aeroporto da Portela de Sacavém, com apenas vinte escudos nos bolsos e sem bagagem, pois não as tinha trazido, tal a pressa havida em despachá-lo para Portugal...
Contava-nos esse dito funcionário, com raiva e resignação:
Vi-me, de repente, em Lisboa, sem dinheiro nos bolsos, numa terra desconhecida, sem saber o que fazer da minha vida...
Entretanto, a bicha da Cruz Vermelha avançara mais alguns metros. O funcionário de Cabo Verde narrava a sua tragédia, com lágrimas nos olhos...
As andorinhas, indiferentes a todo aquele rebuliço, construiam nos beirais seus ninhos e defecavam sobre nós, funcionários que se mantinham firmes naquela interminável fila do desespero...Éramos condecorados com medalhas brancas nos ombros...Trágico, caro leitor...
O cabo-verdiano continuava a narrar a sua trágica odisseia, enquanto a bicha avançava a passos de caracol, mas avançava, diga-se. Assim falava o nosso interlocutor:
Cheguei à porta do Aeroporto de Lisboa, chamei um Táxi e sentei-me no banco de trás, após afastar um jornal que tapava o estofo estafado. O som de uma Emissora, misturando canções revolucionárias com insultos à dignidade dos refugiados, que o locutor vermelho pomposamente apelidava de Retornados chegados aos magotes, soava roufenho e intercortado por silvos. O motorista do Táxi, um homem de meia-idade, baixo, atarrancado, cheirando a bagaço e pastel de bacalhau com muito alho, disse ser natural de Vinhais, e fizera tropa na Índia de má memória, falou-me, após baixar o som da velha telefonia metálica, de botões quebrados e mostrador de plástico amarelado, queimado pelos cigarros:
Você é Retornado, não é?
Refugiado, expulsado com um pontapé no cu, sim, sei lá o que sou! Acabo de chegar de Cabo Verde, agora mesmo, donde os progressistas de meia-tigela me expulsaram, com o rótulo de colonialista e servidor do regime colonialista deposto e nomes mais...
Mas você é branco!? Não é como essa corja de pretos que vem chegando todos os dias ao Aeroporto! Para onde deseja ir? perguntou-me o motorista!
Sim, sou de Cabo Verde mas de ascendência madeirense...Sou de uma terra de muitas misturas...
Pois, pois respondeu-lhe o motorista! Conheço cabo-verdianos brancos, pretos e mestiços...Boa gente! É uma terra de misturas e da cachupa e nem parece África!...
A bicha da Cruz Vermelha avançara mais algumas jardas...
O funcionário continuava a narrar: ”eu, que de Lisboa só conhecia um nome Avenida de Roma indiquei-lhe essa morada”.
Mas, Avenida de Roma, para que número, caro amigo?
Aí fiquei atrapalhado e disse-lhe para me deixar à entrada da Avenida, pois tive vergonha, quando lhe entreguei os únicos vinte escudos que trazia, pois a carteira ficara em Cabo Verde e não tinha morada para lhe dar...
A bicha da Cruz Vermelha avançara mais alguns metros e os excrementos das andorinhas passaram a alvejar outros funcionários, os que não podiam perder os lugares disputados palmo-a-palmo, desde que a madrugada surgira no calmo Tejo, donde partiram as caravelas.
O funcionário de Cabo Verde continuava a sua narrativa:
Fiquei especado, à entrada da Avenida de Roma, com uma pequena bolsa sobre a calçada, sem os vinte escudos nos bolsos e sem saber o que fazer numa terra estranha. Os prédios altos, o movimento das pessoas nas ruas, os carros, enfim, tudo me fazia confusão, habituado ao sossego das ilhas de Cabo Verde. Entretanto, fui lendo os muitos cartazes vermelhos de propaganda política, afixados em tudo o que era local, dos sinais de trânsito às pontes e paredes de quase todos os edíficios de Lisboa. Caía a tarde. As luzes de néon foram acesas. A sorte quisera que eu me encontrasse, casualmente, com um professor do Liceu de Gil Eanes, de férias na metrópole e que, espantado, me perguntou:
Mas tu, na semana passada, não estavas em Cabo Verde? Contei-lhe toda a odisseia e ele pôs as suas mãos sobre os meus ombros e levou-me para a sua casa, dando-me alojamento, alimentação, algum dinheiro e o conforto moral de que tanto carecia....
Chegara a vez do Malaquias transpôr o portão de ferros grossos desengonçados e enferrujados, dos antigos, de acesso ao pátio, a pouca distância da porta principal, esta de madeira grossa e a tinta saltando às lascas pelo rigor dos invernos. Depois de uma espera de mais de meia hora, o Malaquias já pisava as longas tábuas de pinho de Espanha da secretaria, vendo ao fundo do corredor um balcão de mogno, onde cada Retornado era atendido por funcionários ocos, alheios ao sofrimento do seu semelhante...
Ouviu-se:
Tens aqui uma ficha para preencher...
Malaquias revolveu os bolsos à procura de uma esferográfica e viu uma, bem presa ao balcão por um cordel de barbante sujo pelo uso...
Nome, categoria, serviço de origem, elementos do agregado familiar e mais dados... As suas mãos tremiam-lhe. Um bebé, ao colo da mãe, berrava aos seus ouvidos, ouvindo-se o som em ecos distantes, pelos corredores sem fim...
Malquias puxou pelo cordel trazendo na ponta uma Bic azul e preencheu o impresso usando letras garrafais, como vinha explicado no rodapé do impresso amarelado. A funcionária fora atender o telefone, ouvindo-se parte do desajustado diálogo:

Então mamãe! Já tiraste as fraldinhas ao Zézinho? Cuidado com a papa que só pode ser desfeita em água...Não precisas de juntar-lhe leite... Ontem o teu netinho já disse pá...pá! No próximo fim de semana, há a ponte do 10 de Junho, conjugado com o feriado de S. António, e vamos passar uns dias convosco, na terra, altura em que traremos o Nézinho que, da outra vez, não coube no Mini, por causa das sacas de batatas...

Malaquias acabou de preencher o impresso. A bicha esteve parada durante os longos minutos em que durara a conversa da filha, em Algés, para a mãe, em Unhais-da-Serra, tudo à custa da Cruz Vermelha... A dita funcionária preenchera uma requisição, que esmagou raivosamente com um selo em branco em mau estado de conservação e indicou ao nervoso Malaquias o caminho da Tesouraria, “ao fundo de um corredor, à direita”. O funcionário que estava atrás avançou, enquanto Malaquias caminhava apressadamente para a bicha de pagamentos, onde um reformado, repescado da Função Pública, fazia os seus ganchos. Era uma homem que coxeava das pernas, fruto dos reumáticos apanhados em Sintra, onde vivia. O ambiente da Tesouraria era austero. Uma secretária metálica, uma máquina de calcular das antigas FACIT, ainda à manivela, uma cadeira rotativa de um preto já lascado, rangendo pelo parafusos enferrujados, um cofre preto monobloco, sobre o qual repousava um pesado selo em branco, de manípulo de madeira esbranquiçada, instrumento usado na autenticação da assinatura nos cheques. Havia também carimbos suspensos de suportes metálicos e almofadas de tintas azul e preta...
Malaquias preferiu receber em dinheiro 5.000$ um mês vezes cinco pessoas: ele, a mulher e três filhos menores].
Para lhe serem descontados no ordenado! não se esqueça recomendou-lhe o Tesoureiro, cumpridor dos seus deveres e grato por arrecadar mais oito contos além do ordenado de reformado de uma Câmara Municipal qualquer...
-III-

A SUBIDA AO CALVÁRIO
Agora era o longo calvário para entrar para o Quadro Geral de Adidos, a funcionar no Palacete da Cova da Moura, na Avenida Infante Santos, em Lisboa. Decorria o mês de Julho e as folhas das palmeiras, usadas para enfeitar os recantos, onde se festejavam os Santos Populares, já estavam murchas. A bicha para a entrega da papelada começava junto ao pesado e imponente portão de ferro do Palacete vinha pela viela abaixo, até à Avenida e esquina do Hospital. No pátio calcetado do Palacete, os contínuos do antigo Ministério do Ultramar vigiavam a parte civil do monumento. A tropa desmanzelada do pós-25 de Abril, de barbas por fazer e fardas sujas, controlava a ala onde funcionava uma Delegação do MFA. A confusão era geral. Havia encontros de amigos e conhecidos julgados mortos e palmadinhas nas costas. Cada um contava as suas aventuras recentes, em Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné e Timor [retalhos dilacerados desse Portugal espalhado pelo Mundo].
Malaquias, embora tivesse partido para a bicha às cinco da manhã, só perto do meio-dia conseguiu transpôr o antigo portão do Palacete e abrigar-se do impiedoso sol de um Julho quente, de rachar o cimento... Um administrador de concelho, recém-chegado de Timor com mulher e três filhos, vinha descendo pela escadaria, protestando, veementemente: “ há três meses, estou em casa de familiares, por especial favor, e poder receber um único tostão do meu ordenado, só pelo facto de Timor ainda não poder ser independente, como acontecera às outras colónias.
Imagine, caro leitor [ainda agora, ano de 1999, quando escrevo esta narrativa, o não é, mormente em 1975...] E se ele estivesse à espera dessa almejada independência de Timor, morria à fome?
Lá do fundo do corredor, surgiu um director de serviços (dos do pós-25 de Abril), sem gravata [enfeite banido pela revolução], muito barrigudo, oriundo do desmantelado, decadente e mofo Ministério do Ultramar. Pelos olhos, lançava chispas de raiva e desespero por perder o mando fáci e espumava de branco pelo canto da escancarada boca de dentes tisnados pelo tabaco, chamando, desesperadamente, por um dos soldados-sentinela do MFA, de guarda ao Palácio, ordenando-lhe:
Soldado Mateus, 2002, quero que ponhas cobro aos desacatos desse acalorado funcionário revolucionário esquerdista e que nem é desta terra!
O funcionário (era eu, autor destas crónicas não posso deixar deixá-lo em dúvidas, caro leitor amigo). Desci a escada de madeira de pinho apodrecido e manchado do Palacete da Cova da Moura, gritando raivosamente pelo caminho:
Tropa para me prender? Onde já se viu soldado prender oficial (um tenente miliciano), por simples ordens de um chefe de Serviços do desmantelado Ministério do Ultramar, bem desmantelados pela Revolução dos Cravos de Abril!...
Realmente, o desajeitado soldado, ouvindo-me, ficou estupefacto com tamanha ousadia de um Retornado, sem saber se devia, no momento, cagar ou dar corda ao relógio como dizia o meu amigo Aniceto dos Santos um tesoureiro da Câmara de Malange quando contava anedotas dos brancos em Angola, desesperados e em debandada generalizada, despedindo-se dos mainatos e das chorosas amantes com as quais enganavam as suas virtuosas esposas...

***

Malaquias, que prestara serviço militar em Angola, sob a administração portuguesa e era contínuo em Lobito, viu o seu processo de ingresso nos Adidos rejeitado pelo zeloso funcionário do balcão alegando “não ter o seu Bilhete de Identidade em ordem”, recitado de cor o Decreto-Lei nº 385/A/75 obrigava a todos os funcionários, que quisessem entrar para oQuadro Geral dos Adidos, à prova da nacionalidade portuguesa, mesmo tendo servido nas Forças Armadas Portuguesas, antes do 25 de Abril, caso do senhor Malaquias e de outros mais...
Essa prova era feita através da exibição da fotocópia do BI, e para se obter este documento precioso era necessário um registo na Conservatória dos Registos Centrais de Lisboa [Lei considerada racista], pois só os quem tivesse ascendência portuguesa, avós ou bisavós, podiam fazê-lo).
O Malaquias “albardou o burro à vontade do dono” como soe dizer-se. Arranjou duas testemunhas e foi aos Registos Centrais de Lisboa confirmar que os seus avós paternos tinham nascido em Amareleja... Houve quem tivesse mandado fotografar a pedra enegrecida do túmulo de um antepassado metropolitano, degredado do Reino para uma ex-Colónia, por ter cortado as mamas a uma mulhrer, para assim poder provar ser o que sempre foi, português... Após a Revolução do 25 de Abril e a Descolonização exemplar das ex-colónias era assim, caro leitor...

***


Os meses foram passando e o Malaquias a caminho da Cova da Moura, à espera do despacho de deferimento no seu processo, um entre muitas dezenas de milhares, amontados pelos soalhos apodrecidos, prateleiras desengonçadas e armazens bafientos... Malaquias soubera que o seu processo fora devolvido à procedência, “por falta de prova convincente da sua nacionalidade”. Foi-lhe dito que a fotografia do seu BI estava muito escura e para ser aceite com português, sugerira-lhe um amigo experiente, que teria de pedir ao fotógrafo que branqueasse um pouco mais a sua cara, pois, de outro modo, teria sérias dificuldades na obtenção do almejado despacho ministerial de deferimento, feito, por ironia do destino num Palacete situado no Jardim Zoológico de Lisboa, habitado por feras da sua terra...
Os serviços de atendimento dos Adidos funcionavam numa das antigas cavalariças do Palacete da Cova da Moura, com o chão em lajes, antigas prateleiras para os arreios das cavalgaduras e ferros de amarrar bem à vista de todos, não faltando alguns brazões antigos, ainda pintados nas paredes. No Inverno, trabalhava-se lá dentro [da cavalariça], caro leitor, de sobretudo e luvas. Entretanto, os Serviços dos Adidos foram sucessivamente transferidos para uma outra ala da Cova da Moura e, posteriormente, para as Laranjeiras e Avenida Duque de Ávila, no centro de Lisboa.

-IV-
DEZEMBRO DE 1975
(Mês do Natal)


Malaquias vira, finalmente, no Diário da República a publicação da sua integração no Quadro Geral de Adidos. Os recebimentos dos vencimentos seriam agora feitos, mensalmente, por folhas enviadas ao Banco de Portugal, sito na Baixa Lisboeta. Outra vez a maldita bicha junto ao edifício de grades verdes dando quase uma volta ao quarteirão e sobrando para a Rua Augusta. As pessoas apressadas passavam com as suas compras do Natal debaixo dos braços e olhavam com pena ou desdém os retornados, castigados pela chuva miudinha, à espera de uma migalha e sem ter as pesadas roupas para um inverno rigoroso, coisa a que não estavam habituados em África. Os carros subiam a rua, salpicando a água e a lama dos infindos buracos das descuidadas calçadas de uma Lisboa abandonada para cima deles. Os pingos ficavam agarrados às roupas dos que, pacientemente, aguardavam a vez para receberem o magro subsídio do Natal. Era frequente ouvirem-se expressões como:
Filhos da puta, cabrões e outros mimos, saídos das entranhas daqueles desesperados, alinhados na bicha do Banco de Portugal...
Um dos funcionários presentes, trazia duas sandes no bolso de um sobrertudo, oferta de um amigo, pois sabia que iria passar todo o santo dia naquele Calvário, não podendo chegar à casa, na Amadora, sem um tostão nos bolsos para o bacalhau da consoada. Só que a multidão era tanta que o infeliz Malaquias nem conseguiu meter as mãos nos bolsos para retirar as sandes, espalmadas pelo peso dos que não queriam perder um centímetro do terreno conquistado com fadiga e tenacidade, desde a madrugada desse vinte e dois, de um mês de Dezembro, do ano de 1975.
Outros funcionários, hospedados por favor em casa de familiares, vinham a Lisboa obter um adiantamento dos seus vencimentos, enquanto aguardavam o despacho de ingresso nos Adidos. Nos Serviços, a funcionar na Avenida Duque de Ávila, chefiados por um antigo funcionário do extinto Ministério do Ultramar – um tal Blastro - eram emitidas as declarações para os Bancos adiantarem os vencimentos...
Malaquias segredava a um amigo, recém-chegado de Angola, de avião:
Sabes Gil, ontem assisti a uma cena de facadas nos Adidos da Duque de Ávila...
Como assim? Conta-me essa...
Um funcionário retornado, desvairado, hospedado em casa de familiares em Vinhais [fronteira com a Espanha], juntou as suas últimas economias e tomou uma camioneta para Lisboa, para solicitar nos Adidos uma declaração de adiantamento de vencimento, pagável na delegação do Banco da terra. Foi num sábado, lembro-me bem do caso... O chefe Castro negou-lhe o papel, alegando falta de documentos no processo de ingresso e tratou-o com maus modos. O funcionário retornado, desvairado, pois não tinha dinheiro para regressar a Vinhais, puxou de um canivete de ponta-e-mola e, com ele golpeou certeiro, o intransigente e zeloso chefe, valendo ao agredido o facto de ser inverno e trazer um casaco de grossa lã. Mesmo assim, o seu braço direito foi cozido com vários pontos no Hospital Particular, mesmo ao lado...
E o que aconteceu ao agressor?
Ainda mais desvairado, o agressor saiu pelo vidro da porta, que partiu e desapareceu pela Avenida Duque D’Ávila, antes de chegar um sonolento elemento da PSP do 25 de Abril...
-V-

INVERNO de 1976
O pombalino edifício do Banco de Portugal ainda estava fresco na memória do Malaquias, que se recordava do largo passeio de pedras escorregadias, das bichas infindáveis, das grossas grades de ferro, pintadas a verde escuro, do letreiro em bronze polido, os balcões frios, os números de chamada em néon, dos caixas protegidos por grossos vidros e funcionários de olhos bem atentos aos números das chapas.
Malaquias, nesse dia, recebera frescas notícias da família ainda em Lobito. A esposa Clarice e seus dois filhos, Romão e Roque estavam em Luanda, à espera do início da ponte aérea ou barco fretado para Portugal. Entretanto, continuavam a chegar aviões apinhados de refugiados, que largaram tudo para salvar a pele...
Malaquias recebera uma carta do amigo Danny - o tal companheiro da fuga na traineira Bengo, já relatada. Estava desterrado na Serra da Estrela [qual Sibéria Russa], a dois mil metros de altitude, com outros refugiados. Enquanto metia no bolso as poucas notas novas acabadas de receber do Banco de Portugal, abriu o sobrescrito para saber das notícias do amigo, lendo a carta missiva:

Serra da Estrela, 23 de Dezembro de 1975
Caro amigo Malaquias:

Deves ter estranhado esse meu silêncio, após mais de seis meses passados sobre a data da nossa separaçăo forçada, quando te mandaram para o Quadro Geral de Adidos e eu para a Sibéria Portuguesa -Serra da Estrela - para umas instalaçőes turísticas abandonadas por falta de clientes, coisa vulgar quando um País atravessa uma fase revolucionária, como a actual. Imagina, caro Malaquias amigo, o que é destacar um pescador da Baía de Moçamedes para uma Serra toda coberta por um manto de neve e com temperaturas abaixo do zero. Vou à janela e, quando o nevoeiro deixa, observo toda a serrania branca, com alguns povoados semeados pelas encostas, no meio de pinheiros e
araucárias espetadas para o céu. Nunca na minha vida pensei em vir habitar um lugar desses, mas que remédio tinha, diga-me lá meu irmão? Ouvi dizer que já estás nos Adidos e que no cais de Alcântara e por debaixo da ponte sobre o Tejo estăo milhares de caixotes apodrecendo com os poucos haveres que os nossos irmãos, pretos e brancos, conseguiram meter a bordo, por especial favor das autoridades marítimas angolanas. A noite passada, caiu na Serra um dos piores nevőes dos últimos anos e, de manhă, nem se conseguia abrir a janela do quarto. Os carros estavam totalmente cobertos por um manto branco de neve. Tenho saudades do calor das baías de Moçamedes e do porto de Lobito e espero um dia voltar a nossa terra. Diga-me quando chega a tua mulher e os teus dois filhos machos...

Votos de Feliz Natal...
Abraço amigo,

Dany
-VI-

ENFIM, UM LAR


Quando Malaquias esteve na bicha da Cova da Moura para entregar o seu processo nos Adidos, ouvira falar num Bairro de habitações económicas ainda em construção, lá para os lados de Carnaxide e destinado à Pide/DGS, a polícia política que o 25 de Abril acabou por desmantelar, no auge do seu poderio diabólico e sinistro. A notícia correu célere.
Um grupo de retornados dirigiu-se ao local para ver se era verdade e possivelmente ocupar as casas devolutas.[era assim no pós-25 de Abril, caro leitor]. Malaquias foi um deles e o primeiro a apanhar o eléctrico para Algés, fazendo o resto do percurso a pé, por carreiros de lama e mato. Foi num frio e chuvoso mês de Fevereiro, uma semana antes do Carnaval. A notícia tinha fundamento. Lá num alto, havia uma moderna urbanização com edificios de dez andares ainda por acabar, alguns com andaimes montados. Via-se no topo da colina altas torres, algumas sem janelas e portas colocadas e monta-cargas abandonadas.
Foi só chegar, escolher e ocupar no dizer do Malaquias, sorrindo-se da Sorte que tivera neste país.
Reservou para si um segundo andar, com vista para o Tejo, por sempre gostar de ver mar...Os outros companheiros distribuiram-se pelo prédio todo, embora os mais temerosos tivessem optado pelo regresso às instalações do IARN, receando represálias ou despejos futuros. Era a Revolução da Liberdade, do 25 de Abril, num clima de caos em que se vivia, nesse ano de 1975, neste jardim à beira-mar plantado –[Portugal]. Já com casa, só faltava ao Malaquias receber a mulher e os dois filhos prestes a chegar a Portela, na ponte aérea Lunada- Lisboa.

***
Para receber os retornados, alguns funcionários dos Adidos foram destacados para os velhos armazéns do Aeroporto de Lisboa, transformados em sala de recepção, com a missão de encaminhar os recém-chegados. Malaquias foi ao aeroporto. O avião fretado acabara de riscar a pista. O varandim estava apinhado de retornados, aguardando notícias dos seus familiares. Os refugiados recém-desembarcados eram conduzidos para os gélidos armazéns do aeroporto, lá para as bandas do Instituto de Metereologia, com a pouca bagagem trazida e filhos pequenos, facto que tornava ainda mais difícil o reagrupamento das famílias. As camionetas aguardavam os desembarcados para serem distribuidos pelos vários alojamentos que o IARN dispunha pelo País fora, pensões e instalações do INATEL e hotéis fechados por falta de turistas.
Gilberto, um escriturário da Câmara Municipal do Uíge, foi enviado para a aldeia de França, quase na fronteira com a Espanha, e alí intalou-se, escrevendo cartas destinadas aos emigrantes em França e Alemanha. As missivas amorosas eram as que mais saída tinham e só lhe exigia o trabalho de copiá-las de um manual antigo “Cartas de Encantar – Edição 1850- ” encontrado, por acaso, nas prateleiras de uma velha mansão abandonada aos ratos e teias de aranhas. Recebia em pagamento sacas de batatas, hortaliças, galinhas, patos, presuntos, cabritos e algum azeite ou vinho. Gostou da vida em França e por lá ficou a viver, até hoje (1999), não regressou.
Nas horas vagas, escrevia poemas, para o seu amigo Malaquias em Lisboa [uma velha mania que trouxera de Angola, aquando da sua janela contemplava as acácias rubras nas avenidas de Benguela]:
Lá vai uma, tirada ao acaso da gaveta:

RETORNADOS / REFUGIADOS

O avião pousou
na pista de negro alcatrão,
eu
numa terra distante,
refugiado em
Portugal.
Sem família,
sem dinheiro,
sem nada..
Chamaram-me
de retornado,
de refugiado,
de explorado
d colonialista
e nomes mais...
Sendo sempre português,
do exército de Portugal.
Na Conservatória
mentir,
me obrigaram,
para ser sempre
aquilo que sempre fui,
português...
português...
português,
três vezes, sim!
Contemplo
Graníticos montes
figuras humanas
desenhadas,
aldeias transmontanas
do meu degredo.
Neve branque ando
campos infindos.
Andorinhas
seus ninhos,
nos beirais fazendo...
Casas abandonadas...
E eu pensando nos
irmãos meus,
expulsos das suas,
sem alpendre
para se abrigar,
em nome de uma
descolonização,
a que chamamaram
de exemplar...
E nós?
Retornados?
Refugiados?
Desalojados?
ou, simplesmente,
de alma e Pátria despojados,
em troca
do NADA...


Aldeia de França,
Primavera de 1976


-VII-

AS GAIVOTAS JÁ NÃO VOAM

Vagas de refugiados e funcionários chegavam ao aeroporto da Portela e ao cais de Alcântara, em Lisboa. O Quadro Geral de Adidos, já a funcionar na Avenida Duque de Ávila, não dava vazão aos milhares de processos, recebidos diáriamente aos balcões ou pelos Correios. Os funcionários de serviço não tinham mãos a medir para aceitar todos os processos de ingresso; as pessoas ficavam na rua em intermináveis bichas, à espera do dia seguinte. O estado exaltado dos espíritos e a debilidade dos corpos geravam frequentes reacções violentas. Foram colocadas no interior das Repartições alguns policias para a segurança dos funcionários. Os desentendimentos surgiam entre os próprios funcionários do mesmo serviço, pois os colegas oriundos do extinto Ministério do Ultramar consideravam-se “casta superior” e com direito a mando sobre os funcionários recém-integrados nos Adidos. Houve sequestros do pessoal, até à meia-noite, nos locais de trabalho, com os retornados manifestando-se, ruidosamente, na Avenida Duque D’Ávila [e com razão, diga-se], devido à morosidade no atendimento e despacho dos processos, sem o qual não se podia recomeçar a vida. Mesmo após o ingresso no Quadro, a integração dos funcionários das ex-colónias nos Serviços do Estado ou das Autarquias Locais não foi tarefa fácil, pela oposição maldosa movida pelos invejosos e mal-preparados funcionários locais. Conta-se que um funcionário muito categorizado foi destacado para chefiar a Secretaria de uma Câmara Municipal e, logo à chegada, os funcionários residentes esconderam todos os impressos e carimbos existentes na Repartição, dificuldando a sua integração. A um outro foi-lhe dada a missão de chefiar o pessoal das limpezas das ruas e jardins de uma cidade qualquer [fora administrador em Timor e estivera preso num campo de concentração na Indonésia], mas acabou por alcançar um lugar do topo da chefia, pelo mérito demonstrado e forma estóica como soube suportar, por muitos anos, as afrontas, os vexames e os insultos dos ditos colegas. Infelizmente já faleceu, na data em que escrevo. Um piloto das linhas aéreas de Angola foi destacado para uma Escola C+S, nos arredores da capital, para distribuir leite às criancinhas, no recreio das dez, em vez de pilotar aviões, a única coisa que sabia fazer bem... A TAP não tinha lugar para retornados...
Um outro funcionário foi destacado para uma Câmara vermelha, nos arredores de Lisboa. Fizeram-lhe a vida tão negra que preferiu abandonar o posto, para servir de motorista numa Empresa de Transportes...
Podia dar mais uma carrada de exemplos, mas para quê?, caro leitor estarrecido...

-VIII-

ROMAGEM DE SAUDADE

Malaquias, à espera no aeroporto de Portela, chamou um Táxi e levou a esposa e os filhos para a casa que ocupara, dias antes, no alto de Carnaxide. Só que o aposento ainda não tinha portas nem janelas e o frio de um rigoroso inverno e o vento vasculhavam os corredores desprotegidos, subindo uma forte corrente de ar pela caixa destinada aos inexistentes elevadores, apanhando chuva. Outros colegas, que não encontraram casas ou as não quiseram ocupar por medo, tiveram de construir barracas de tábuas, latas, cartões e restos de madeiras das obras.
Malaquias sonhava um dia poder regressar ao calor de Lobito, mas quando? interrogava-se numa Angola cada vez mais mergulhada numa interminável guerra civil.
Certo dia, deslocou-se a Lagos com o fim de visitar alguns amigos que ficaram na zona como simples pescadores de sardinhas. Queria reviver os bons e maus momentos passados a bordo da traineira Bengo a sua tábua de salvação e a de muitos outros. Encontrou o antigo amigo Romeu, já mais velho e desiludido que o acompanhou ao cais, onde apodrecia aquilo que fora uma embarcação de pesca de mar alto – a saudosa traineira...
Está alí, o nosso barco, caro Malaquias...
O que ele via não era uma traineira mas sim o fantasma do que fora a embarcação - uma entre muitas - igualmente abandonadas no cais. Contaram-lhe que estavam à espera de serem queimadas ou desmanteladas por ordens da Capitania dos Portos. Malaquias subiu ao convés, pulando por entre tábuas podres e cavernames à mostra qual esqueleto de um animal moribundo a ser devorado pelos famintos abutres, no deserto de Moçâmedes. A âncora, as cordas podres e desfiadas ao vento assobiavam uma triste canção ao vento algarvio. Os ferros avermelhados pela ferrugem – qual sangue dos mártires - que a maré baixa deixava à vista. Um cata-ventos, lá no alto do desengonçado mastro, girava como louco, como a vida do pobre Malaquias o contínuo do próspero porto de Lobito agora palco de uma guerra sem tréguas, entre irmãos da mesma raça! O pobre e desolado homem sentou-se num caixote apodrecido, à proa da traineira, enquanto contemplava a cidade aos seus pés. Sentiu vontade de chorar: via os beliches com as enxergas podres onde as gaivotas nidificando; via cordas, redes e porões, outrora cheios de peixes, apanhados ao largo de Moçâmedes e de Lobito... Um Sol triste escondia-se num mar cinzento de chumbo. Malaquias antevia o seu amado Bengo a ser devorado pelas chamas; via o fumo espesso das madeiras queimadas subindo aos céus; as tábuas rangeriam, o vento assobiaria nos cordames e cabos ainda baloiçando do vergado mastro. O motor, há muito parado, ficara silencioso, para sempre. Malaquias, mesmo sem ser poeta, de lágrimas nos olhos, sentado à proa, escreveu um poema, numa folha de um caderno de linhas, esquecida sobre os podres beliches, ao som das gaivotas que voavam:

Poema

Ao Bengo.

Bengo,
nome de uma traineira:
partimos do Lobito,
naquela manhã
de sobressaltos e guerra,
rumaste Luanda,
Las Palmas
e Lagos,
teu local da morte
e de sepultamento.
Salvaste nossas vidas...
É verdade!...
E agora?
Vejo-te
baloiçando,
velho,
alquebrado,
esperando a execução
da sentença de morte!
A tua proa
já não cruza
Lobito e Moçâmedes,
como as brancas gaivotas
que,
por ironia,
ainda voam,
procurando refúgio,
no seio dos teus
desventrados beliches.
Agora,
por capricho dos homens,
aguardas as chamas
que hão-de te devorar,
transformando-te
em cinza,
pó e nada...
É assim o teu.Destino,
de todos nós...
Adeus Bengo,
traineira da minha vida!...

Malaquias,
Algarve, ano 1976

-IX-

DEPOIS DO COICE, VEM A PANCADA, lá diz o povo...
Malaquias regressou a Carnaxide com a família. Quando podia, lá ia colocando mais uma porta ou mais uma janela na casa recém-ocupada e sem recheio.
Madrugada fria de um mês de Fevereiro:
O Bairro acordou cercado pelas forças da Polícia de Choque, munida de escudos, bastões, viseiras e de todo aquele aparato bélico conhecido por todos...
Até parecia que a guerra do mato de Angola tinha chegado a Portugal gracejava o sipaio Gilberto, natural de Novo Redondo.
De megafone cinzento em punho, e com a correia preta voando ao vento, do alto de uma viatura verde-azeitona, com os faróis piscando, um agente barrigudo, de cara encarniçada, berrava do fundo do peito:
Vão ter de abandonar essas instalações, agora mesmo!
Os vizinhos e residentes foram aparecendo, um a um, ensonados, espantados, tímidos, embrulhados em mantas e de roupões...
Mas como vai ser?
- Para onde vamos com as nossas coisas? era a voz da mulher do Malaquias, com os dois filhos agarrados à barra da saia mal atada à cintura, gritando do alto de uma janela sem caixilhos e vidros, apenas tapada por um plástico pardacento salpicado de pingos de chuva.
Essas casas são do Estado, não sabiam? Temos ordens do Tribunal para as despejar, a bem ou a mal vociferava um dos agentes da ordem! Os cães ladravam e mais janelas abriam-se...
Pois é! dizia uma vizinha por serem retornados pensam que tudo isto já é deles! Vão mas é para a vossa terra era a voz de uma mulher cigana - que, pela certa, sempre viveu saltitando de Nação para Nação, recebida também como refugiada. Os galos cantavam nas ramadas das acácias...
O altifalante de cor cinza, já com as pilhas gastas, berrava:
Dou-vos, apenas e só, mais meia-hora...Depois, depois...
O tempo escoava ao ritmo de uma ampulheta, enquanto os refugiados deitavam contas à vida.
A força de choque entrou em força e despejou as casas, uma a uma, ficando os parcos haveres dos retornados amontoados na praceta: colchões podres sobre os quais tamborilava as gotas dos beirais, num tum-tum cavo, sinistro, aterrador de almas e corações despedaçados, ruído que, até hoje, passadas várias décadas, guardo nos meus ouvidos. O lençóis esvoaçavam ao vento gelado da colina quais velas das antigas caravelas portuguesas partindo à descoberta de Novos Mundos, Dilatando a Fé, o Império... Novos Mundos e não sei do que mais – porra – gritava o Malaquias...
Os moradores rogavam pragas aos mentores da dita “descolonização exemplar”...
Lei é Lei! Nada mais podemos fazer balbuciava, comovidamente - e com a garganta apertada, um agente da ordem, de lágrimas na face, bem visíveis à luz de uma fogueira de tábuas de uma cama, ardendo a um canto!
Os refugiados, os mais fracos, contra os mais fortes, os da ordem, de armas, da DEMOCRACIA...
Malaquias chorava a um amigode peito:
- Se Cristo, com todo o seu poderio, foi levado ao Calvário e crucificado entre dois ladrões, sem nada poder fazer, que faremos nós, meu amigo, simples pecadores...Resignarmos...
Acenderam-se mais fogueiras na Praceta, ao lado dos parcos haveres das vítimas do Destino Cruel, do Fim da Aventura Colonial Portuguesa em África...Os rostos assustados das crianças, o Malaquias relembrando-se com saudades da traineira, que, àquela hora, estaria igualmente a ser devorada pelas chamas num molhe qualquer do Algarve, o desespero estampado no rosto de todos, a impotência perante a fatalidade do Destino eram marcas bem visíveis.
Algumas pessoas da vizinhança vieram consolar os refugiados oferecendo-lhes cobertores, bebida quente e pão da Padaria do Sr. Nunes. No meio do caos generalizado ainda havia espaço para actos de solidariedade e gente de bom coração afirmava o sr. Aparício de Benguela, encostado a uma árvore despida pelo inverno rigoroso que já queria dar lugar à Primavera...
Malaquias e a família foram morar para o Bairro das Fontaínhas, nas Portas de Benfica, lá para os lados da Venda Nova. Alugaram um casebre por mil escudos. Era de cartão prensado, zinco e tábuas das obras e pertencera a um operário cabo-verdiano, de nome Mateus vulgarmente conhecido pelo Tázinho um homem, que, comido pelas saudades, resolveu regressar à sua ilha natal de S. Nicolau ”para aí deixar os ossos...”
Nos anos sessenta vieram para as obras do Metropolitano, empreendimento que absorvia toda a mão de obra existente, nomeadamente carpinteiros de moldes e pedreiros de profissão. Ele e outros ajudaram a abrir túneis, montar andaimes e a encher as abóbadas com argamassa. Um dia teve a infelicidade de ser colhido por um desabamento de terras. No acidente morreram alguns colegas (Lela, Toi e Zeca) e ele só escapou da morte por não ter chegado ainda a sua hora. Enterraram-se os mortos. Os vivos continuaram a navegar num mar de dificuldades. Nem seguro, nada, nada... Mateus, aleijado de uma perna, resolveu abrir um botequim no seio do Bairro das Fontaínhas, local onde morava verdadeira colmeia de barracas de tábuas e latas - ao lado da esburacada Estrada Militar. O Bairro era habitado, e ainda o é [1999], 25 anos após, por cabo-verdianos que trabalham nas obras e pelas mulheres, que servem de criadas nas casas dos novos ricos de Lisboa ou então limpando os Centros Comerciais da zona de Benfica. Os filhos, esses ficavam [1975] a brincar no lodaçal cinzento dos esgotos abertos correndo pelas vielas de pedra e lama, misturados com os porcos, galinhas, pilões do milho para a cachupa e moedores de pedra para a farinhas das papas. A fedorenta água dos esgotos a céu aberto escorria para as sinuosas vielas e valetas, estas esmagadas pelo peso dos rodados dos gigantescos camiões, circulando pela estrada-militar. Malaquias descrevia o botequim do Tázinho, situado ao fundo da Rua da Sodade, uma das sinuosas vielas que cruzavam a colmeia de barracas de zinco, tábuas e lona, bem no início da cidade de Lisboa mais precisamente nas Portas de Benfica. A barraca do Tázinho estava bem pintada, exibindo um letreiro verde sobre o fundo branco de uma tábua de cofragem; as paredes eram caiadas a ocre encarnado, as janelas borradas de um verde escuro fazendo relembrar a Bandeira Portuguesa, a mesma que os traíra e fizera com que, por caprichos dos políticos ou do Destino, viessem parar a uma terra estranha - Portugal.
Era o fruto da descolonização exemplar do ex-ultramar português e das misérias de Cabo Verde abandonado...O botequim chamava-se MORABEZA. O chão de cimento encarnado - sobras da massa das betoneiras - e algumas pedras à mostra, já desgastado pelo passar dos pés dos frequentadores daquele lúgubre local de bebidas, de comidas e de mulheres prostitutas, não faltando o cheiro a peixe frito, misturado com o do vapor do grogue. Um balcão feito com tábuas de andaimes preenchia a parte dianteira das prateleiras de caixotes e caixas de plástico usados no transporte de cervejas e de gasosas. Empilhadas até ao tecto de zinco brilhante, viam-se garrafas de vinhos de várias marcas, maços de cigarros estrangeiros de contrabando, cordas de chouriços e peças de presuntos pendurados nas traves, escorrendo gordura para o tampo sujo do balcão. Uma fraca lâmpada fraca de vinte e cinco velas, pendente do tecto escurecido pelo sujo das moscas, baloiçava mansamente sobre uma pipa de vinho, com o preço escrito a giz branco. Uma saca com peixe seco, certamente vindada Boa Vista, completava o panorama... Nas paredes, os recortes de gravuras de Revistas e calendários de anos de 1965 a 1976...
Tázinho era tocador de violão e compositor, mas só entre amigos, pois não gostava de publicar as letras e músicas das suas mornas e coladeiras. Atrás de uma das portas, via-se uma folha de caderno de linhas, com a letra de uma morna que compôs aquando do desastre do túnel do Metro.
Intitulava-se
DESTINO DI HOME
(Destino do Homem).
Por entre a sujidade deixada pelas moscas durante vários anos, ainda se podia ler o seu texto:

(Em Lá-Menor)

Destino de homem,
destino triste,
destino de Deus
sempre buscando
caminho da Terra Longe.

Destino de homem,
trabalhar,
lombar nas obras,
para nada...
Para morrer
debaixo da terra longe..
Nossenhor,
se és amigo,
ajuda o teu filho
a morrer,
na sua terra,
terra escalavrada,
terra de mar fundo
sem fim,
terra de saudade,
terra de Morabeza,
nome deste
meu botequim...

Tenha dó, de mim, Nhor Deus,
deste teu filho Mateus...
Tázinho...
Que quer morrer
na terra de Cabo Verde...

Bairro das Fontaínhas, Junho de 1960
***
Os desacatos eram frequentes no botequim do Tázinho, principalmente aos fins de semana, quando os trabalhadores recebiam os salários, bebiam mais grogue e cerveja. A Polícia tinha medo de entrar no Bairro das Fontaínhas, um verdadeiro gueto, à entrada de Lisboa, caro leitor amigo...
Certa ocasião, houve necessidade de intervenção da Polícia Militar e o tiroteio ouvia-se como foguetes de S. João. Houve gritos e choros... Muitos, das suas janelas, aplaudiam a acção das forças policiais, gritando-lhes:
Acabem com essa corja de gente que devia estar nas suas terras...
Dê-lhe outro tiro porque ainda está vivo ouviu-se!...(*)
Os mortos e os feridos foram levados. A calma voltou ao Bairro, nesse dia do ano de 1976, em Lisboa, nas Portas de Benfica, mas o cheiro a pólvora ficou no ar, para sempre...

(*) N..A.
Embora possa parecer estranho o que aqui ralato, como testemunha ocular que fui, não podia silenciar-me voluntariamente perante a realidade histórica...

Foi este o local onde Malaquias encontrou a única barraca vaga para viver, chegando mesmo a desejar regressar a Angola, mesmo em guerra!
Mas como? Pensava ele! Sem o dinheiro para as passagens?! E os filhos na Escola Primária da Venda Nova, a algumas centenas de metros das instalações da então próspera CELCAT, uma fábrica de cabos eléctricos, hoje falida.
Na Escola, algumas crianças brancas das redondezas misturavam-se com a maioria de raça negra. Havia angolanos, cabo-verdeanos, timorenses e até um santo-mense. À hora do recreio, era vê-las de caneca nas mãos bebendo o leite de caridade que a Cantina lhes oferecia, embora algumas, por orgulho, preferiam ficar com a barriga roncando de fome a terem de receber o leite da Caridade. Os filhos do Malaquias andavam na primeira e quarta classes.
***
Certa madrugada, o Bairro fora acordado pelo grito de fogo nas casas.O fumo e as chamas depressa tomaram conta das barracas espalhadas pelas vielas do Bairro das Fontaínhas, ouvindo-se o estrondo das explosões das bilhas de gás. Os Bombeiros compareceram no local. Depois de extintas as chamas e feito o rescaldo do incêndio, meteram numa ambulância dois cadáveres de garotos da Escola da Venda Nova, retirados dos fumegantes escombros...Eram os filhos do desventurado Malaquias...Pouco depois, chegava o pai, que, desde manhã cedo, fora trabalhar. Lavado em lágrimas de desespero, já nem sabia o que havia de fazer à vida, sentindo vontade de atirar-se à linha dos comboios que passava mesmo ao lado. Amparado pelos amigos, recuperou a calma....
O funeral dos dois pequenos foi acompanhado ao Cemitério de Benfica por colegas da escola, de todas as raças. Ao lado das covas, choraram meninos brancos, pretos e mulatos, numa comovente cena de comunhão racial...
Chovia e havia nevoeiro!
Uma chuva que entrava pelos ossos regava as muitas flores que enfeitavam as sepulturas. Os dois garotos do Bairro das Fontaínhas, vindos de tão longe, de Angola, foram a enterrar no cemitério de Benfica!
Era a vida! murmurava o Malaquias, aos ombros da mulher e dos amigos...
Os esguios ciprestes verdes, agitados pela força do vento que soprava no alto, indicavam ao infeliz homem de Lobito que o caminho era em frente...
Retornados ou refugiados havemos de triunfar... DIZIA!

-X-
MALAQUIAS ESCREVE CRÓNICAS
Anos depois, acidentalmente, encontrei-me com o Malaquias. Estava mais velho. Foi num dos bancos de madeira da Avenida da Liberdade, em Lisboa. Nas mãos, trazia folhas de um caderno onde escrevera os poemas dedicados ao Bengo, a sua tábua de salvação, que não lhe saía da memória. Disse-me estar a rabiscar umas crónicas do quotidiano de Lisboa, a cidade que mais amava, a seguir a Lobito, mostrou-me alguns rascunhos feitos num caderno gorduroso:

Tarde de Junho de 1987,
[Rua 1º de Dezembro,
Lisboa]

Centenas de transeuntes apressados, transportando nas mãos os mais diversos objectos: sacos de plástico, bolsas ou pastas de napa, sobem a rua, a caminho da Estação do Rossio. Cruzam, acotovelam, tropeçam de encontro aos carros mal estacionados sobre os passeios de pedra, praguejam, resmungam, cospem para o chão, gritam, berram e seguem apressadas sem rumo, ou aliás com rumo certo para a casa, após um árduo dia de luta pela vida. Detive-me em frente a uma montra, onde se exibiam quartos de borregos com o carimbo azul de Nova Zelândia. Depois desviei o meu olhar para um pequeno grupo de turistas curiosos, em redor de um ancião, sentado no chão. Numa das mãos, segurava um copo cheio do bom carrascão que manchava as bordas do plástico. Ele dançava e cantava, ao sabor de uma música de um estafado leitor de cassetes.
Ao seu lado, estendido ao sol de Junho, que espreitava por entre os altos telhados da Baixa Pombalina e sufocava as ruas, um cão ainda novo, dois gatinhos um preto e um ranco, três ratinhos,
um pombo sem cor, empoleirado numa vara espetada numa caixa de cartão desbotado pela inclemência do tempo e com os dizeres de”Made in Indonésia” visíveis. Sobre a caixa de cartão, um letreiro a giz branco:

“ SE ELES SE DÃO BEM POR QUE,
NÃO FAZEMOS O MESMO?”

O movimento de transeuntes na Rua 1º de Dezembro era intenso, nesse dia de Verão, do ano de 1987..
É doido dizia o carteiro!
Saiu do Júlio de Matos opinava um vendedor de jornais...
Está a curtir a bebedeira da noite de S. António alvitrou uma empregada de balcão.
Todos criticavam o ancião..
Os anos passaram...
Os meus cabelos já estão brancos, mas quando passo pela Rua, relembro-me do humilde ancião e lamento os que não souberam captar a sua singela mensagem, escrita a giz branco num pedaço de cartão já desbotado pelo sol...
Malaquias comentava comigo:
E eles, os homens, que deviam ser civilizados, a matarem os nossos irmãos em Angola, Moçambique e Timor... Basta, bas-ta, por amor de Deus...
Quando eu me preparava para ir embora, ele puxou-me pelos braços, insistindo que acabasse de ver os apontamentos que enchiam o seu caderno de linhas largas:

CHOQUE DE MENTALIDADES
(Junho de 1987)

O final de Junho estava quente e as esplanadas viam-se cheias e as ruas atravancadas de automóveis, alguns com matrículas estrangeiras. Vários turistas observavam e fotografavam tudo o que passa despercebido aos lisboetas, sempre apressados. Um casal de japoneses com duas crianças abeira-se de uma das mesas brancas de plástico e senta-se à sombra dos plátanos de uma acolhedora esplanada, à entrada da Avenida da Liberdade. O empregado de mesa, com ar de enfado [característica do português que serve os outros] abeira-se do casal e, com um pano branco pouco limpo, transportado por debaixo do braço esquerdo, retira as poeiras e algumas folhas secas, que o plátano espalhara, quando o vento soprara com mais força.
Duas Colas e dois pães falou-lhe o japonês, usando o inglês!
O empregado ronceiro anotou o pedido num bloco feito com boletins de Totobola já fora de uso e, de repente, coçou a cabeça voltando a confirmar o pedido:
Pães, ou antes, sandes com fiambre ou...
O japonês com aquele sorriso peculiar da raça voltou a interpelar o empregado:
Cola and bread, only...
O jovem empregado coçou a cabeça e voltou à carga:
Mas o senhor não quer nada para pôr no pão? fazendo-se entender por gestos...
No, no! Only bread
Momentos volvidos, o empregado regressa com uma bandeja de inox, trazendo as duas Colas, um pires e mais duas carcaças, por sinal, muito queimadas. O japonês, vendo que o empregado estava atónito quanto ao destino dos pães, disse-lhe:
“Pão pala dois galotos dale aos pombos”...
Os dois garotos saltaram para o canteiro vizinho, coberto de relva fresca e numa divertida brincadeira foram distribuido as migalhas aos pombos, vindos das ramadas dos plátanos da Avenida. Um bocadinho aqui, outro acolá e a brincadeira continuava, enquanto os pais observavam o anárquico movimento dos automóveis circulando pela Avenida, àquela hora do dia. Das bebidas só restavam duas garrafas vazias e dois copos sobrevoados por uma impertinente mosca varejeira. Os pombos, de repente, ficaram assustados. Era a chegada dos “capitães de areia” da zona: dois garotos da idade dos pequenos japoneses. Vinham do Cinema Odeon, trazendo as fraldas das camisas de fora dos calções rotos, sujos e com, a testa arranhada. Nas mãos traziam dois guarda-chuva de tecido preto, já com as varetas de fora do pano. Pararam junto às crianças japonesas. Os pombos, assustados, espreitavam lá do alto das ramadas dos plátanos. Um pombo mais afoito ousou empoleirar-se à borda do lago, procurando alcançar um bocado de pão, que largara momentos antes da invasão da relva. Das mãos dos capitães de areia partiu um guarda-chuva, cortando o ar que nem uma seta de índios e sibiliando em direcção a um ousado pombo cinzento. Na confusão, a ave resolvera largar o pão para não ficar embrulhado naquela mortalha preta que cobria as varetas de aço brilhante. Postos a salvo, os pombos espreitavam as crianças, lá do cimo das ramadas. Os garotos japoneses, agora sentados e quietos ao lado dos pais, aguardavam, ingenuamente, que as aves viessem brincar com eles, mas debalde. O bando dos “capitães de areia”, os donos da cidade, cheirando sacos de plástico com cola, caminharam avenida abaixo, rindo
desalmadamente, numa tarde de um Junho quente, do ano de 1987, na cidade de Lisboa...

***


Malaquias quis mostrar-me outras folhas do seu caderno de apontamentos rabiscados a lápis:

MELHOR QUE EU MEREÇO
(Julho de 1987)
O dia estava quente. Soprava um vento morno, varrendo das ruas as primeiras folhas caídas dos plátanos da avenida. Extensas filas de carros esperavam impacientemente a vez para descerem a Avenida ou arranjar uma nesga de asfalto ou passeio livres. Abeirei-me de uma mesa vaga na esplanada e, como nada tinha para fazer, fiquei a saborear uma caneca de fresca cerveja vendo os cisnes nadando no lago de nenúfares floridos de amarelo e os pombos voando nas ramadas da árvores. Dois policias, em motoretas azuis, encostaram as suas “maquinas” à sombra de um plátano e postaram-se junto a um sinal de estacionamento, de caderneta das multas nas
mãos. Dois garotos, com os calções pingando água, saltaram do interior do lago dos cisnes, mas logo regressaram ao refrescante
banho quando se aperceberam que os policias não estavam lá para os vigiar, mas sim para caçar multas. Um automobilista trava, engata a marcha-à-trás e faz-se a um espaço vazio, para aí estacionar a sua viatura, manobra que executou com a máxima destreza, familiarizado que estava com a complicada cidade de Lisboa. Fechou as portas com estrondo, endireitou o nó da garrida gravatas, segurando uma pasta de couro nas mãos. Zás! Apareceu o diligente polícia com um talão. O infeliz lisboeta barafusta, gesticula, protesta, mas debalde..
Deixei a Avenida e os cisnes escondidos no caniço, enquanto os dois garotos brincavam no lago de nenúfares e entrei num “snack”, nos Restauradores.
Era a hora do almoço. Via-se um balcão corrido em aço inox brilhante e as prateleiras atestadas das mais variadas bebidas nacionais e estrangeiras. Suspenso de um cordel, muitas bandeirinhas de vários países do Mundo, ao lado do seu, certamente oferecidas por turistas. Alguém aproximou-se do balcão, brilhando como espelho, e cumprimentou efusivamente o patrão:
Bom dia! Como vai a vida, amigo?
- O patrão, muito folgazão, risonho mesmo, e com um sotaque a brasileiro, respondeu-lhe:
BEM, CARO AMIGO, MELHOR QUE EU MEREÇO!
***
As folhas amareladas dos plátanos iam caindo sobre as nossas cabeças, prelúdio de um Outono antecipado, Malaquias, o Retornado ou Refugiado do Lobito, fez questão de ler mais um dos seus apontamentos. Intitulava-se, salvo erro:

31 DE MAIO DE 1991
Praça do Rossio em Lisboa

Após um invulgar Maio quente, a frescura regressara às ruas da cidade de Lisboa. Os plátanos da Avenida da Liberdade já estavam cobertos de um verde novo e os pardais chilreavam, ao desafio, nas suas altas copas. Os pombos juntamente com as gaivotas comiam o milho, que uma benfeitora lançara sobre as lajes da Praça. Os engarrafamentos, àquela hora da manhã, os normais. Um camião “TIR” rebocava um atrelado e um iate, com o seu hirto mastro, rumando a zona ribeirinha, quebrando a monotonia da paisagem. Era o dia da assinatura dos Acordos de Bicesse entre MPLA e UNITA. No Rossio, uma multidão aglomerava-se junto a uma improvisada tribuna, onde os potentes amplificadores despejavam muitos quilovátios de som. Na Praça, brancos, mestiços, negros e até alguns chineses ouviam os oradores de ocasião e as músicas africanas. Pela tribuna, passavam pessoas de destaque: Alice Cruz, Rui Romano, Raul e outras.figuras de destaque no meio.. Era a hora para a assinatura do almejado acordo. A multidão explode de contentamento. Há vivas, dão-se abraços e as lágrimas rolam dos rostos; baila-se no asfalto e nas pedras das calçadas da Praça do Rossio.
Os pardais param de cantar. O Hino é outro o do Contentamento, da Conciliação e da Fraternidade entre irmãos africanos desavindos. Os turistas param, escutam, filmam e partem estupefactos, sem compreenderem muito bem o súbito Milagre. O astro rei iluminava os rostos com pinceladas de um amarelado dos fins das tardes. Era a madrugada da Esperança, numa sexta-feira, dia 31 de Maio de 1991, às sete da tarde, no Rossio, em Lisboa. Uma nova era para Portugal e Angola?
Eu, Malaquias, estive lá...


-X-

PASSAS ENCOMENDADAS


Malaquias queria regressar a Lobito, ”para aí deixar os ossos” como afirmava com saudades após ter sofrido a vida em Portugal, por longos anos. Contou-me um caso de um amigo, que também quis encontrar um lugar ao Sol em Portugal. Chegado da longínquo Timor, na Oceania, onde foi administrativo. Acabou por ser integrado na Administração Pública portuguesa, finda a descolonização exemplar. Disse que iria chamá-lo de Silveira, por comodidade, pois ainda estava vivo. O dito Silveira foi colocado num Organismo do Estado, na zona de Oeiras. Foi mal recebido, claro está, norma em uso nessa ápoca [1976], não só por ser Retornado como por ser de cor escura - coisa que, nessa ápoca, ainda era relevante, caro leitor.
Lembrem-se de vos ter falado das tais fotografias para os BI, de que os funcionários africanos pediam encarecidamente aos fotógrafos que ficassem mais esbranquiçadas, condição sine qua non para não verem os seus processos de ingresso rejeitados?!
Incrível, mas verdadeiro!...Era assim, em Portugal...
Ao administrador Silveira foi-lhe dada a tarefa de chefiar uma secção nesse tal Organismo, ainda em fase de instalação. Até à sua chegada, era um jardineiro Martinho [um protegido do director] quem cuidava das plantas e de todas as aquisições, utilizando os armazéns do Estado como quinta sua. Claro que o Silveira, novo responsável, acabou com as negociatas havidas, impedindo assim qualquer descaminho de bens e mercadorias do Estado e, nessa altura, [1976] a palavra corrupção ainda não era balbuciada. As coisas foram correndo de mal a pior para o desgraçado do incorruptível Silveira.que despachou o jardineiro para os jardins e assumiu a plena chefia das compras, consultas e concursos, mesmo sabendo que tal procedimento iria acarretar-lhe problemas com a Direcção. Certa vez, o Silveira não sancionou a compra de material informático destinado à Instituição, fora de concurso público e foi alvo de um processo disciplinar por desobediência e mandado apresentar-se no Quadro Geral de Adidos, como persona non grata. Claro que o Silveira não aceitou a guia e participou o facto às autoridades competentes. O instrutor do processo foi um Delegado do Procurador da República – um funcionário que por estar de licença ilimitada não podia, legalmente, trabalhar para o Estado. Entretanto, exercia, como tarefeiro, as funções de assessor nesse Organismo, pois a azáfama para que Portugal entrasse na CEE era prioritária. O dito assessor (um jurista - pasme-se, caro leitor) chamou o Silveira ao seu confortável gabinete, que dava para um frondoso jardim e, da sua cadeira de couro, falou ao funcionário incorrupto, mais ou menos do seguinte modo:
Saiba, senhor Silveira, que recebi instruções do senhor Presidente para lhe dar uma passa...
Claro que o senhor Silveira, funcionário honesto que nunca dava cobertura a ilegalidades, alvo de perseguições, respondeu ao instrutor que ”mais valia deixar à solta um criminoso do que condenar um inocente e se o fizesse ele era um homem morto...”
O instrutor, acagaçado, interrogou o dito funcionário, quase a tremer:
Quanto ganha?
Oito contos respondeu-lhe o Silveira...
É casado?
Sim. Tenho mulher e três filhos...
Paga renda de casa...
Sim.
Quanto?
Dois contos...
O instrutor, de lápis e papel sobre a secretária, fazia as suas contas, chegando à conclusão que ainda sobrava dinheiro suficiente para o senhor Silveira sobreviver, com uma família constituida por mulher e três filhos menores...O inexperiente executor judicial coçou a barba e, em tom de chacota, falou ao Silveira:
Então vou propôr para si apenas uma aposentação compulsiva...
O instrutor e o Silveira olharam-se de frente, como dois galos preparados para um combate de morte.
O Silveira foi o primeiro a falar:
Se me condenar, senhor dr. Ximenes, você é um homem morto...
O instrutor olhou com espanto para o Silveira, que até falava a sério pois já nada tinha a perder após a descolonização exemplar que o deixara preparado para todas as rasteiras da vida! O jurista, visivelmente assustado, retirou um lenço do bolso das calças e com ele limpou as lentes embaciadas. De braços apoiados sobre o espaldar da cadeira giratória, mirou a copa de uma frondosa árvore florida, no centro do jardim e ficou mudo...Posteriormente, o Silveira viria a contar ao Zacarias que o dito processo disciplinar fora mandado arquivar por improcedente...
Quem não deve não t(r)eme dizia o Silveira, com orgulho...

Palácio antigo

Olhei-te,
palácio antigo,
de marquês ditador,
de mármores,
de pedras,
de tijolo feito...
Vi teus pátios
teus jardins floridos,
ouvi
sonoras cascatas
ecoando...
Convivi,
com os que,
um lugar ao Sol,
necessitavam...
Depois,
Deixaram
de me acompanhar...
Tinham medo...
do prepotente
do ditador
de um Presidente...
De um POMBAL...

Como não há
regras sem excepção,
houve, quem,,
pondo
em risco
o emprego,
ao meu lado
ficou.


Naquele Palácio
Do Marquês de má memória,
contempando
o frio mármore
do altar
da capela-mor,
pragas mil
roguei.
Entendi
o sentido
da palavra Amizade,
e o eco do
falar só
no pátio...

Malaquias
1976
-XII-


NATAL de 1976

Silveira [o tal perseguido por ser honesto], até então a viver em Oeiras, numa casa arrendada a uma tia, por três mil e quinhentos escudos ao mês, mudou para Venda Nova, localidade onde um compadre lhe emprestara uma casa recém-comprada e que, por estar devoluta, podia ser ocupada a qualquer momento hábito numa Lisboa revolucionária de 1976, como atrás já relatei. A mulher do Silveira, que exercera as funções de professora numa escola primária em Timor, não conseguira a sua integração nos Adidos, por ser considerada eventual. O vencimento do marido (oito contos) os que o instrutor do processo disciplinar lhe queria retirar não chegavam para os longos meses. Patrícia, assim se chamava, ia levantar calças de ganga cortadas num fábrica, e, depois de cozidas e acabadas, eram as mesmas devolvidas, semanalmente, à Fábrica sita em Campolide, a troco de umas centenas de escudos. O Silveira (chefe de secção) também ajudava a mulher na aborrecida tarefa de retirar os alinhavos das grossas calças de ganga antes de as entregar à fábrica.
A vida em Portugal, para os retornados, nos anos subsequentes ao vinte e cinco de Abril era assim, muito dura, caro leitor amigo. Fica rergistada a informação para os mais novos, os que nasceram ou cresceram após essa data [25 de Abril de 1974], pensarem nos sacrifícios dos pais para que, hoje, (trinta anos depois) pudessem ter uma vida melhor, frequentar Liceus e Universidades... A inflacção era galopante e os preços dos géneros da primeira necessidade exorbitantes, motivo da existência de um Cabaz de Compras (onde os preços não podiam ser alterados durante um ano). Os mais novos, certamente, desconhecem o facto, se alguém não-lhos contar. É esse um dos objectivos desta minha narrativa!
A esposa do Silveira, para vestir, alimentar e manter os seus filhos na escola fazia travessas de rissóis e punha no frigorífico para a semana toda. Quando chegava o dia dezoito de cada mês, já não sobrava dinheiro e recorria-se aos cofres dos filhos ou a empréstimos dos familiares, também em situação difícil. O almejado dia vinte e cinco de cada mês nunca mais chegava e, para se receber o magro ordenado era necessário postar-se à entrada do Banco de Portugal, em longas bichas, horas a fio, como atrás já relatei. Entretanto, as Cervejarias da Outra Banda e da Grande Lisboa estavam sempre apinhadas de trabalhadores [sim, na altura, só os operários eram trabalhadores] ou outros não, parasitas na óptica dos comunistas...

Chegara a época natalícia do ano de 1976: Na escola primária de Venda Nova a professora pedira aos alunos que fizessem uma redacção alusiva à época.
Clóvis, um dos filhos do Silveira, companheiro de carteira de um vizinho da mesma idade, filho de um médico brasileiro vivendo desafogadamente, fez a sua redacção e trouxe-a para a casa ser lida:

O NATAL DE 1976


O Natal é a época em que as pessoas dão prendas aos meninos. Na minha casa, neste ano de 1976, não há árvore de Natal. Minha mãe trabalha muito e o dinheiro que ganha é pouco e só chega para comprar comida e não para dar prendas. Ela passa a vida a fazer rissóis, que são mais baratos, para a gente comer durante a semana toda...

Venda Nova,
18 de Dezembro de 1977
Clóvis

-XIII-
BATER DE ASAS
(1977)
Malaquias, nos seus longos passeios por Lisboa, ia rabiscando alguns apontamentos para as suas Crónicas do Quotidiano que pretendia publicar, em Angola, quando lá chegasse. O apontamento que me mostrou intitulava-se:

O BATER DE ASAS

O dragão de ferro pintado a verde, mesmo no centro do lago, nos Restauradores, jorrava água, agitando a calmaria da sua superfície. Do Tejo soprava um vento fresco e, na Avenida, os carros passavam espalhando a poluição sonora e atmosférica. Na calmaria da esplanada, algumas mesas e cadeiras de plástico branco, onde os turistas [coisa rara na época pós-revolucionária] descansavam à sombra dos altos plátanos, que tiveram a sorte de não serem mutilados pelos podadores da Câmara.
Sentei-me na referida esplanada e pedi uma bebida fresca. Enquanto saboreava o amarelado e borbulhante líquido refrescante, contemplava o lago e os dois dragões de ferro fundido vomitando jorros de água. Um pombo muito assustado tentava matar a sede no tanque, fazendo equilibrismo para não caír. De vez em quando, levantava a cabeça e sacudia as brilhantes penas molhadas do pescoço e das asas. Um pardal, ou melhor dizendo, um pardalito, tentava debicar os restos de uma batata, caída do prato de um turista. O pombo, assustado com o barulho repentino da bandeja, levantou voo e foi pousar num candeeiro da Avenida. O pardalito, com dificuldade, mal conseguiu atingir os ramos mais baixos da árvore e tombou para o lago. Um garoto, dos que nadam no lago fugindo à Polícia, saltou para a água e salvou o passarinho Todos assistimos a este belo gesto de solidariedade, mas ficamos sentados nas nossas cadeiras, como espectadores passivos...
Malaquias
Rossio, 1977

Malaquias foi mostrando-me mais alguns apontamentos, esfregando as mãos castigadas pelo frio chegado antes da época e já com as folhas caindo das ramadas dos plátanos da Avenida:

VENDEDOR DE CASTANHAS
(1976)

Do Tejo soprava um vento gelado do começo de um Outono qualquer. As folhas amareladas dos plátanos, misturadas com pedaços de jornais, rolavam num redemoínho, acumulando-se aos pés dos bancos de ferro pintado de verde e tábuas partidas. Não chovia. Um céu cinzento fazia a noite descer mais cedo sobre a cidade; as luzes de néon começavam a faiscar, intermitentemente, sobre as calçadas de pedras brancas baloiçavam querendo sacudir as últimas folhas amareladas, as mais persistentes. Um plátano, que não sobrevivera ao longo e seco Verão, morrera de pé. Afinal as árvores não morrem de pé? Alguns lisboetas caminhavam apressadamente, de chapéus de chuva em punho, resguardando-se de uma chuva miuda, que tornava os passeios ainda mais escorregadios. Os pardais, empoleirados nas altas ramagens reflectidas nos vidros espelhados dos prédios vizinhos, chilreavam, ruídosamente, quase que abafando o barulho ensurdecedor dos carros, desfilando pela avenida. Um fumo branco subia em espiral no ar pardacento, até se misturar com um mais negro, o do fuel do aquecimento, jorrando do alto da chaminé de um Hotel, nos Restauradores. O vendedor esfrega as mãos, enquanto atira, com peso e medida, um punhado de sal branco para dentro de um pote de barro encarniçado pelo fogo e esbranquiçado pelo calor do carvão de pedra. A chama fica mais viva e ilumina o rosto sereno do vendedor de castanhas, já coberto de barba branca de muitos dias e tisnado pela fuligem do carvão.de pedra. As castanhas são embrulhadas em canudos de papel, das Páginas Amarelas fora de uso. Os lisboetas passam apressados, tristes, pensativos, carregando os chapéus-de-chuva, correndo, correndo sempre. Foi em Lisboa, numa cinzenta e triste tarde, de um mês de Dezembro, na despida do ano de 1977.

A CHAMADA

Malaquias, no Rossio, mais precisamente, junto ao conhecido Café Piquenique, ao lado do BNU, local onde os Retornados outrora se reuniam, para alguns dedos de conversa sobre vidas passadas e dificuldades presentes, contando cada um o seu drama que daria para vários romances.
Quase todos os regressados das ex-colónias singraram neste país, começando pelos degraus mais baixos das carreiras profissionais, caso da mulher do Silveira, professora eventual habilitada com o antigo sétimo ano dos liceus que foi integrada como dactilógrafa da letra”U” [a última letra do alfabeto dos funcionários a dos contínuos, sem desprimor para a classe, para a qual era apenas exigida a quarta classe].
Um administrador foi reclassificado como chefe de secção e, para atingir o lugar de chefe de repartição, a que já teria direito aquando da Revolução de Abril, teve de concorrer treze vezes, e, finalmente, venceu os vinte e muitos candidatos para uma vaga posta a concurso.
Mas como vos ia contando, encontrei o Malaquias, anos depois, na zona do Rossio, transfigurada com as obras do Metro e com a população dos Retornados transferida para a Praça da Figueira, local onde se viam mais africanos que metropolitanos.
A minha pergunta, depois de lhe dar um forte abraço de morabeza, foi no sentido de saber da esposa e se ainda tinha a veia para a prosa. Malaquias, olhando a esplanada do Piquenique, de lágrimas nos olhos, foi fazendo uma surda chamada:
- O Silveira de Lobito?
Aquele funcionário da Fazenda de Timor?
Inácio Pereira, o secretário da Câmara Municipal?
Um que era de Cabo Verde, de nome Virgílio, grande poeta e que escrevia bons contos e belos poemas?
Silêncio. Os pardais chilreavam nas despidas árvores da Praça...
As lágrimas vieram aos olhos dos presentes...
Faleceram todos..., morreram todos! Estão, para sempre, nos cemitérios de Benfica e no Alto de S. João...
Gaivotas que voam ouviu-se da boca do poeta Andrade, quebrando o silêncio da nostalgia!

Ardeu o Chiado
Enquanto as folhas dos plátanos iam tombando, uma a uma para as calçadas e bancos da Avenida da Liberdade, anunciando a chegada do Outono, o frio chegava do Tejo, ouvindo-se, ao longe, o caír da água para os lagos e os pombos saltitando nos ramos desnudados das árvores tristes e solitárias. O velho amigo Zacarias,
de blusão de couro e lã ao pescoço, falava-me, com saudades, da sua Angola...
Nesse quente dia de Agosto, até os pombos cinzentos debandonaram os altos telhados dos prédios do Chiado. Alguns desciam, ainda que timidamente, para procurarem comida nas calçadas da Praça. O relógio marcava as duas horas da tarde; os autocarros não circulavam pelas artérias da Baixa Pombalina; dando uma volta pelos Restauradores e subindo a Avenida da Liberdade. No ar aquele cheiro a queimado que ficava entranhado nas roupas e nos cabelos e nuvens de fumo espesso cobrindo o Chiado. Era a hora do almoço; na Praça
reinava um silêncio pouco habitual...
- Como foi possível?
Aquele malandro que pegou fogo ao nosso Chiado devia ser queimado vivo...! O culpado foi Otelo que já os devia ter mandado fuzilar no Campo Pequeno...!
Coitado! Ele está na prisão e os outros cá fora ouviu-se da boca de um passante...
Por mim pode arder tudo! Nada lá é meu. Aquilo é obra dos capitalistas, para ficarem com os terrenos para novas construções mais modernas, mais caras opinava um cobrador de dívidas, de pasta de cabedal preto nas mãos...
Alguns policias vedaram a zona. Pelas rua laterais podiam-se ver as frontarias do Chiado e do Grandela, de janelas chamuscadas pelo incêndio. Na Rua da Prata, uma máquina abria buracos no rijo asfalto negro, ao som cadenciado das brocas de aço, na ponta de uma compressora. Ao lado, alguns calceteiros cabo-verdianos, como se nada lhes dissesse, refazem desenhos geométricos dos passeios. Os Bancos, nesse dia, só atendem clientes com contas locais; os restaurantes servem as suas refeições à luz de velas, pois a electricidade e o gás, por precaução, foram cortados. Algumas senhoras da CV, vestidas de um branco imaculado e braçadeiras encarnadas nos braços, distribuem sandes e água aos incansáveis bombeiros, de rostos alagados pelo suor de um quente mês de Agosto...
- Quer água de Luso ou da Serra da Estrela? era a voz de uma das fardadas de branco...
- Pergunta desnecessária...! achei eu.
- O infatigável soldado da paz, diz, simplesmente, água...água...
-Nesse dia vinte e cinco do mês de Agosto do ano de l988, o Rossio ficara mais calmo. Pareceu-me ser um daqueles silêncios sentidos nas horas mortas das selvas...

Malaquias despediu-se de mim, em Janeiro de 1997.
Embarcou num avião da TAP com destino a Luanda, à sua amada terra de Angola, prometendo-me, um dia, enviar, em versos, o resto de apontamentos colhidos em Lisboa. Ia satisfeito por poder ir deixar os ossos na sua terra de Angola.

Se ainda vive, não sei, oxalá que sim...

-F I M -
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N.A.
Em data recente, 31.12.1998, recebi uma carta do Malaquias, informando-me, que, passados vinte e cinco anos, os seus irmãos angolanos andam a matar uns aos outros, na terceira guerra civil, por causa do maldito diamante e do fedorento petróleo vindo das profundezas do Inferno...Que pena!...

ÍNDICE

1 - A fuga.........................................................4
2 – A Chegada..................................................8
3 – A Subida ao calvário.................................22
4 – Dezembro de 1975.....................................28
5 – Inverno de 1976.........................................32
6 – Enfim, um lar.............................................36
7 – As Gaivotas já não Vooam.........................42
8 – Romagem de saudades...............................46
9 – Depois do Coice a pancada........................50
10 – Malaquias escreve crónicas......................62
11 – Passas Encomendadas..............................72
12 - Natal 1976.................................................78
13 –Bater das Asas............................................82
14 – A chamada................................................86
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Ficha técnica
Título:Descolonização exemplar, ou GAIVOTAS QUE VOAM
Gaivotas.doc
F. Casa 17-01-1999
adriano.gominho@sapo.pt
Revisão para NET

Lisboa, 23 de Março 2006
15 de AGOSTO DE 2006 [3ª]
E-BOOK


ADRIANO DE ALMEIDA
GOMINHO
[narrativa 1975-2005]
Jubilado da Aviação Civil, em Portugal
Ex-administrador em Timor,
Estudante do IV ano de Direito, em Lisboa.

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In http://retornados.home.sapo.pt/