Recordo, de Setembro de 2005, no site Bula-Bula, já desaparecido:
Olá Fernando Gil, bom dia,
Espero que o seu exemplo dê frutos e que mais opiniões sejam divulgadas neste espaço. Polémicas, reclamações, indignações, venham elas. Aqui o limite é apenas o da lei. Viva a liberdade de expressão e a democracia.
Obrigada por trazer a questão dos espoliados ao Bula-Bula. Afinal todos passámos pela mesma experiência desagradável de ter que abalar sem malas feitas - embora alguns as tenham feito muito bem, melhor para eles. Eu não tive hipóteses. Tinha 18 anos, estudava, a minha mãe não trabalhava e o meu pai era funcionário público, portanto eu ainda não tinha tido tempo de constituir património material.
Quero dizer-lhe que neste site não vai haver censura ou restrição de espécie alguma que não seja a do bom gosto dos nossos participantes, portanto é livre de trazer aqui as questões que entender. Quem quiser que dê a sua opinião. Como eu vou fazer agora, com gosto.
Tinha 18 anos quando saí de Lourenço Marques. Não o fiz por gosto, fi-lo porque na altura estava na Universidade e um senhor comissário político acompanhado por outros senhores armados de kalashnikov (não sei se a grafia está correcta, nem quero saber não é palavra constante no meu vocabulário) foi à sala onde eu estava a ter aulas avisar que a partir daí todos os estudantes passariam a ter sessões especiais de "esclarecimento político" e aulas práticas "a sério".
Não gostei da intervenção e escusam de me chamar racista porque o camarada comissário era branco. Eu estava fascinada, não com a teoria política dele mas com as unhas dos pés devidamente bordejadas a negro que o individuo exibia. Esse episódio foi tão marcante na minha jovem experiência política que a partir daí a associação de ideias que faço quando me falam em "esclarecimento político" é logo - pés sujos! Acho que devia pedir uma indemnização por danos psicológicos!
Na altura comentei com os meus colegas a minha profunda impressão com as unhas dos pés do dito e fui logo contemplada com dois epítetos que me passaram a ser familiares a partir daí: fascista e colonialista.
A partir daí quando oiço as palavras fascista ou colonialista penso sempre em pés limpos e unhas aparadas. - outro desvio perigoso e trauma que também me devia valer uma boa indemnização.
Em relação aos documentos que trouxe a este fórum, gostei imenso de os ler e se me permite vou comentar algumas ideias que lá encontrei expressas. Por exemplo, admiro a coragem dos expoliados que formaram a associação. Na minha modesta opinião já deviam ter apresentado queixa de Portugal ao tribunal dos direitos humanos por crimes contra a humanidade, a forma pela qual o processo de descolonização decorreu, foi uma autêntico crime que custou a vida a muitos dos que lá ficaram, estou a lembrar-me, por exemplo, do povo macua e de todos os que fizeram parte das forças armadas portuguesas, por exemplo. Se o fizerem eu alinho.
Não tenho a ideia romântica de que os Portugueses são uns gajos bestiais que se dedicaram aos Descobrimentos para "darem novos mundos ao mundo". Na verdade acho que foi o lucro que nos moveu, mas não devíamos ser só nós, os descendentes desses descobridores de há 500 anos a pagar a factura. Ninguém tem culpa de ter nascido num determinado lugar em vez de noutro.
Quanto ao direito que tinhamos de estar em Moçambique e de lá ter ficado, pois cada um é que sabe. Eu não fiquei lá, entre outras razões porque quando me matriculei na Universidade para tirar o curso de Ciências Histórico Filosóficas fi-lo no pressuposto de que iria estudar essas ciências. Quando a tal comissão política me comunicou que a partir daí (ano lectivo de 1974-75) o curriculum do curso iria sofrer profundas alterações e que as aulas práticas passariam a ser ocupadas por tarefas como: aprender a fazer machamba no jardim, pintar as paredes exteriores do edifício da Universidade e ir para o mato fazer campanhas de alfabetização, eu não gostei do novo curso. Muito menos quando foi determinado que as cadeiras de história e filosofia que tinhamos no curriculo seriam substituídas por outras como:
ideologia da Frelimo, história africana até ao século XVI, cultura das sociedades africanas até ao século XVI, história de Moçambique até século XVI, etc. Tudo até ao século XVI. A partir dessa data não valia a pena estudar história porque tudo o que havia nos registos era propaganda fascista e colonialista. Eu fiquei perplexa. Desde logo porque nem sabia que o fascismo tinha começado no século XVI e depois porque não tinha mesmo vocação para a "pré-história" e que eu soubesse a história de Moçambique até ao século XVI estava toda por fazer, e sem completar primeiro o curso eu não sabia o que poderia estudar. Achei que não poder estudar o que eu queria e ter que passar a estudar coisas que ainda estavam por fazer não era bem o que eu pensava ser a liberdade. Fiz o que pensei ser melhor: fui para um país fascista e colonialista, a África do Sul, onde fui bem recebida. E por acaso não gostei de viver no regime de apartheid, que achei muito restritivo no que diz respeito a direitos humanos.
Em relação ao artigo de jornal que transcreve, da autoria do senhor Francisco Junqueira, acho que está bem escrito e que tem a sua lógica, só não concordo com a opinião elevadissima que ele tem sobre os méritos dos navegadores e colonizadores portugueses.
Eu diria que não fomos melhores nem piores que os outros, fomos semelhantes. É verdade que acabámos com a escravatura muito cedo, oficialmente, pelo menos, mas também é verdade que fomos especialistas no tráfico humano. Claro que não a inventámos, ela já existia em África, só nunca tinha atingido um grau de especialização tão elevado como atingiu com os empreendedores comerciantes portugueses.
Adoro discutir estas ideias. Acho que tudo o que se possa dizer sobre a matéria é sempre pouco. Há tantas facetas para analisar nesta problemática.
Por tudo isso, Fernando Gil, já sabe que é sempre bem vindo a este espaço de discussão livre, enfim, de bula-bula.
Beijo
São
NOTA:
-Quem seria este "branco" de "unhas dos pés bordejadas a negro? Será que ainda as usa assim?
-Encontre o texto aqui referido em http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2005/08/marcelo_os_jude.html
Fernando Gil
1 comentário:
Já tinha ouvido falar alguns "brancos, com coração preto", mas não olhei para as unhas dos pés.
Sou retornado de Angola, talvez lá não houvesse desses "intelectuais".
Mas com coração preto e unhas pretas é que era o máximo!
Nunca me tinha lembrado dessa, vou divulgar, porque hoje ano 2 mil e tal, estas coisas dão mais para o humor do que para chorar.
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