quinta-feira, 22 de março de 2012

MEMÓRIAS Malhas que o Império tece



Os meus bisavós maternos (sentados) que emigraram da ilha da Madeira para o Lubango no cargueiro Índia, em 1885. Estão rodeados dos filhos, já todos nascidos em África, incluindo a mais velha, a minha avó, a jovem mulher de vestido escuro. Princípios do séc. XX.

Lembro-me de quando olhava para trás e todo esse passado era a minha infância. Depois, a criança que fui foi diminuindo, diminuindo, como se eu me afastasse num carro e ela ficasse no passeio a dizer-me adeus. A criança ficou para trás, numa pequena cidade do interior de Angola, perdida no grande continente africano. Aos onze anos essa infância foi guilhotinada. Desceu a Serra da Leba e subiu para um barco de carga que a levou a Luanda. Depois, atravessou a ponte aérea.
A ponte aérea. A ponte aérea era uma ponte por onde se podia transitar num único sentido. Uma única vez. Atravessada uma vez e desaparecia em fumo. A ponte começava em Luanda. Terminava em Lisboa. Alcançada Lisboa, olhava-se para trás: a ponte desaparecera para sempre, volátil arco-íris. Olhava-se o céu, já se não via.
Não havia regresso possível. Uma viagem de avião como um cordão umbilical cortado para sempre. A mãe pousou as malas no chão do aeroporto.
Não olhou para trás. Sabia que a ponte já lá não estava. Também não olhou em frente. Estava tudo em branco. Ficou ali. Parada entre a ponte desfeita e o nada. Com as malas largadas no chão. Ficaria ali durante muitos anos.


Eles desembarcaram em Moçâmedes no séc. XIX, atravessaram o deserto a pé e subiram a Leba em carros boer, pelo Bruco, até mais de 1 700 metros de altitude. Vieram por uma estrada, os primeiros brancos a estabelecerem-se no planalto. Depois vieram aqueles que se estabeleceram na margem do Caculuvar, no sítio que é hoje chamado Barracões. Eles trabalharam a terra. Procriaram. Criaram filhos brancos para o Lubango. Recriaram, no regaço da Serra da Chela, a capela que haviam deixado na ilha da Madeira. Depois esqueceram a sua ilha distante. Ganharam uma nova terra. E amaram-na. Os seus filhos amaram-na. Os filhos dos seus filhos amaram-na. Durante cem anos, houve brancos que viveram no Lubango e o amaram.

Lubango. Quando eu era criança chamava-se Sá da Bandeira. Cidade no planalto da Huíla, rodeada de montanhas. Montanhas protectoras. Paralisadoras. Por isso rasgaram uma brecha, a fuga para a liberdade, a estrada da Serra da Leba, em direcção a Moçâmedes, ao deserto e ao mar. Para haver uma saída. Para contornar a superprotecção asfixiante da Serra da Chela. Vivíamos tão protegidos do resto de Angola e do mundo em redor que estávamos sentados num barril de pólvora e sentíamo-nos num paraíso. Quando o barril de pólvora rebentou, tudo foi súbito, devastador, um tiro nas costas. O destino errado como uma corda ao pescoço. Lubango com seu encanto e seu recato, as suas ruas de grandes vivendas com jardins, as suas ruas direitas, os seus Largos largos. Enfeitada com flores, com espatódeas, com canteiros. Limpa e ordeira. Com carros modernos pelas estradas. Com seus passeios espaçosos, quadriculados, onde se caminhava à vontade. Rodeada de paisagens grandiosas, inexploradas, múltiplas e variadas. Num país ainda a desbravar.


O Casino e a Capelinha ao longe, na serra da Chela. Cidade de Sá da Bandeira (Lubango)
A Quinta da Liberdade, a quinta do meu avô, onde todos os meus tios cresceram, era especial, um marco: não ficava na cidade, nem na serra dos muílas. Ficava atrás do hospital. Quando vinham à cidade e havia administrador que os quisesse vestidos à moda dos brancos, e alguns havia que os perseguiam, os gentios era na quinta que se refugiavam. Ali trocavam de roupa para ir a cidade, ou despiam-na para voltar à serra. Era o esconderijo, uma fronteira.
A Quinta da Liberdade, a fazenda do meu avô no Calumbiro, Lubango. Está sentado, rodeado da mulher e de alguns dos filhos, além de dois empregaditos negros.

O meu avô era um republicano laico convicto que várias vezes conheceu a prisão. Nasceu na Beira Baixa, fez a tropa em Macau e também fez de si um homem culto; rumou então a Angola, onde se tornaria num funcionário da Câmara Municipal incorruptível e obsessivamente perfeccionista. O nome que dera à sua quinta era um desafio e um sintoma do seu talento para arranjar sarilhos.



O meu avô aos 20 anos, em Macau. 1904.
Sempre soube de Camões. Eu nunca vivi na Quinta da Liberdade. Vivia na Praça Luís de Camões, no Bairro da Laje. Quando tinha seis ou sete anos, inauguraram uma estátua do Poeta na sua praça. Juntou-se um grupinho de gente e alguém discursou sobre a sua vida e obra. Camões teve ali um reino breve. O seu busto seria destronizado poucos anos depois, tal como o de João de Almeida e demais heróis dos portugueses. Para lá da estátua, do passeio frente a minha casa, todos os dias avistava a Ponta do Lubango na Serra da Chela, com o seu Cristo-Rei de braços abertos.


O Bairro da Lage, com a Ponta da Serra ao longe e o seu Cristo-Rei. Sá da Bandeira, 1969.

Como criança de África, era fanática da brincadeira. Em África brincava-se até muito tarde. Brincava-se a valer quase até aos vinte anos. Adolescentes de quinze, dezasseis, dezassete anos, eram tão fanáticos quanto eu. A Bi era um génio da brincadeira e uma catástrofe escolar. Brincou ferozmente até vir para Portugal, dois anos após a independência. No pior tempo da guerra, entretinha-se a brincar às escondidas e ao "canho" (à apanhada) com jovens guerrilheiros do MPLA, na serra da Senhora do Monte, onde moravam. Guerrilheiros com farda militar e metralhadora G3 na mão. Uma das opulentas vivendas dos brancos do local havia sido transformada em quartel do MPLA e outra num da UNITA. A Bi e as irmãs, desaparecidos os tradicionais amigos brancos, divertiam-se inocentemente a brincar com os guerrilheiros, tão adeptos de infantilidades quanto elas. Aquilo é que eram correrias pela serra abaixo com as G3 saltitando no cotovelo! Um dia, a mãe delas espreitou pela janela e viu a cena toda, Bi e irmãs mais os guerrilheiros e as metralhadoras em pleno jogo da apanhada.
Decidiu que chegara a altura de se irem embora também.
Eu brinquei quase com desespero. Talvez pressentisse que aquele tempo mágico não duraria para sempre. Que me seria retirado cedo demais. Que eu estava programada, como criança de Angola, para brincar até muito tarde. Que talento danado para sermos crianças! Eu e a minha irmã, as minhas amigas matulonas - as três Bis e as três Gordas - e a minha sombra, o pequeno Henrique. Mas também a Sara, os irmãos Tó "Naldo" e João e o kambuta (pequenote) do Ruca, que andava no karaté.
Brincar! Nunca mais nada na vida será tão verdade quanto brincar. Brincar era saltar para o epicentro de um remoinho, uma vertigem onde as horas não existiam ou existiam sucessivas dentro de segundos. Onde o espaço se transmudava em pradarias e desfiladeiros. Onde éramos verdadeiramente nós, quero dizer, verdadeiramente eu, o índio Cavalo Forte. Nunca mais seremos tão verdade, de tal maneira que ainda hoje, no fundo de mim, sou, como não sou mais nada, o índio Cavalo Forte.


Brincar! É por brincarem que as crianças são sagradas, por terem tão fácil em si essa capacidade de se transportarem para um tempo mítico, um in illo tempore exterior aos constrangimentos da vida adulta. E a vida adulta, não é tantas vezes uma procura inglória dessa dimensão outra, do tempo sem tempo irrecuperável das brincadeiras? Que resta aos adultos senão as viagens, certos momentos, certos livros, certos filmes, a música, a escrita, a pintura, para lhes darem uma sensação semelhante, mas muito mais pálida e incerta?
A brincadeira era a única verdade, o resto era a maçada das refeições e de nos vestirmos para a escola. E quando a noite caía, e acendiam-se as luzes públicas para combater sem vitória o seu manto negro, eu ressentia fundamente a crueldade das horas cronológicas. Atingiam-me como punhais ao retirarem-me do tempo mítico. Ter de jantar. Ter de dormir. O que era isso, esse tempo que vinha de fora e só tinha o dom de tudo estragar? Chorava amargamente: "Eu não quero que seja noite!" Mas a minha vontade era impotente perante as rotações siderais. Nas brincadeiras não, nas brincadeiras noite e dia surgiam segundo as minhas próprias rotações. Nas brincadeiras, podíamos construir um mundo todo novo, todo à nossa própria medida. Pequenos deuses da brincadeira.
No dia seguinte, retomávamos a brincadeira exactamente no ponto em que a tínhamos deixado. Ficara à nossa espera, intocada, suspensa, até ao nosso regresso. Desenrolava-se então com uma fluência mágica até o tempo dos adultos - escravos da cronologia -, com as suas refeições e as suas horas de dormir, uma e outra vez, virem arrancar-nos, brutalmente, daquele outro mundo paralelo que só aqueles cujo coração é puro conseguem penetrar.

Quando andava na quarta classe deu-se a revolução do Vinte e Cinco de Abril. Fiz, pois, quase toda a instrução primária no tempo do Marcello Caetano. Nessa época, a Pátria Portuguesa era muito diferente da de hoje. Até aos dez anos a minha Pátria chamava-se Portugal, mas era um Portugal maiúsculo, imenso, espalhado pelo mundo, como se Deus tivesse lançado serpentinas verdes e vermelhas sobre o planeta. Uma grande família universal. Incluía brancos, pretos, indianos, chineses e timorenses. E eu imaginava-os a todos a falar português. Todos orgulhosamente unidos pela lusitana epopeia das Descobertas, a mais grandiosa e significativa das epopeias humanas. Aquela que revelara o planeta aos seus habitantes e os ligara por mar. Os portugueses eram universalmente reconhecidos e aclamados como um povo glorioso e heróico e eu tinha a sorte de fazer parte desse país tão grande quanto a Terra. Havia o velho Portugal metropolitano, aquela lasca de Europa pronta a soltar amarras e navegar. Havia o meu berço, Angola, a jóia da coroa, com seu petróleo e diamantes, catorze vezes maior do que a Metrópole. Na outra face de África estendia-se o grande território moçambicano, ambos os territórios como que empalando em português o velho continente; havia Guiné Bissau e Cabo Verde; São Tomé e Príncipe; o longínquo Timor; Macau, aquele ponto atrevido no mapa da esmagadora China; e, na Índia mágica, três pequenas pedras preciosas chamadas Goa, Diu e Damão. Sim, Goa, Diu e Damão. Goa, Diu e Damão, cuja independência fora conseguida anos antes de eu ter nascido, eram estudadas nos manuais escolares, duas décadas volvidas, como colónias portuguesas, até vésperas do Vinte e Cinco de Abril de setenta e quatro. África, Índia, China, Oceania, e ainda o vasto Brasil a falar português nas Américas - o velho império lusitano, verdadeiramente global, era a minha Pátria. A Pátria dos Heróis do Mar. Sem fronteiras, unindo as raças, lendo "Os Lusíadas". A Pátria cujos filhos descendiam da estirpe de um Egas Moniz, de um Dom Dinis, de uma padeira de Aljubarrota, de um Nuno Álvares Pereira, de um Vasco da Gama, de um Fernão de Magalhães, de um Gago Coutinho, de um Serpa Pinto. A História de Portugal era uma sucessão de heróis e feitos de glória. O Grande Portugal. Girava à volta da Terra. Conquistara os oceanos. Desvendara os segredos dos céus. Girava à volta da Terra. Eu sentia subtis mas inquebráveis fios de ligação com as crianças de Macau, com as crianças de Timor, com as crianças de Goa. Se nos encontrássemos, havíamos de nos reconhecer, falar com orgulho a mesma língua, começar a brincar logo ali. A minha Pátria era imensa, encontrava-se em todo o mundo. A pequena Metrópole europeia, no meio disso tudo, não tinha senão a importância do seu passado. Heróis do Mar. Na escola, cantávamos o hino em cada manhã. Éramos Valentes. Imortais. Esplendorosos. Brumosos e Antigos. E eu principiava o dia cheia dessas convicções.




O meu tio Sereno Lusitano dando consultas a um grupo de muílas. Cerca de 1947.
Mas após o Vinte e Cinco de Abril, de repente, foi como se a Metrópole deixasse de ter qualquer interesse. Logo a seguir ao dia 25, os brancos do Lubango descobriram-se angolanos. Primeiro houve a vaga do Spínola, que parecia um grande herói. Spínola, Spínola, Spínola, e as "passagens à Spínola" na minha quarta classe. Todos os garotos passavam de ano. A era da igualdade chegara: descobriu-se que havia a teoria de que os pretos eram iguais aos brancos e daí inferiu-se que as notas dos cábulas também tinham de ser iguais às dos alunos brilhantes. Mas parece que só esta última teoria foi efectivamente passada à prática. Conheci um garoto preto da minha idade chamado Spínola em homenagem ao general, a quem nunca ninguém dera relevância até então. Por se chamar Spínola tornara-se especial, com um cheirinho a heroicidade. Depois houve a vaga Rosa Coutinho, sem já nada de exaltante. Nunca encontrei nenhum miúdo preto chamado Rosa Coutinho. Era odiado pelos brancos. Mas não pela minha mãe. Rosa Coutinho, muitos anos depois, moraria perto de mim. Quantas vezes tomaríamos em Lisboa o mesmo autocarro 44! Décadas volvidas e o ódio contra ele aceso, sempre aceso. Dentro do autocarro, havia sempre alguém que o reconhecia, pessoas a quem a vida "pregara uma partida" em África: "Olha quem ali vai! Aquele bandido do Rosa Coutinho! Esse é que é o culpado de tudo o que nos aconteceu! Comuna duma figa! Se estivesse aqui o meu marido havia de lhe dizer das boas!" - diziam, ora em voz alta ora num sussurro, conforme o estado geral do nível de cobardia.
Quem realmente importava, no entanto, era o Agostinho Neto e o Savimbi e o Holden Roberto, o MPLA, a UNITA, a FNLA. O que se passava na Metrópole, os seus PCP, PS e MRPP só vagamente chegava aos meus ouvidos e às minhas mãos, sob a forma de colecções de autocolantes de propaganda política que nos enviavam os tios da Metrópole. Na Metrópole tinha havido uma revolução com cravos, na qual um menino pobrezinho de caracóis louros enfiara um cravo na arma de um soldado (apareceu o poster na montra da livraria Lello, na Rua Pinheiro Chagas, e ficou lá imenso tempo), o Marcello e o Tomás fugiram para o Brasil e pronto, a Pátria de Minho a Timor deixou de importar com um simples estalo de dedos. Angola era como se já fosse independente. Só Angola importava. De vez em quando, lembrava-me de Macau e Timor, essas duas eram o meu orgulho maior, o que é que lhes estaria a acontecer? Mas os tempos eram tão excitantes em Angola, quase uma verdadeira aventura, finalmente acontecia alguma coisa de verdadeiramente interessante na minha vida. Até aí eu forjara as minhas aventuras. Mas agora não, agora a História movia-se por si, algo maior, muito maior do que eu se movia, a aventura chegava de fora, era mesmo de verdade. Sentia a História a entrar pela primeira vez na minha vida.



O famoso poster do 25 de Abril
Com uma mente de dez anos descobri que os pretos mais cultos e a maioria dos outros eram do MPLA, os brancos da Unita, os mulatos ninguém sabia de onde eram e os brancos radicais eram da UFA, um movimentozinho defensor dos seus privilégios e poder, que achava a África do Sul do apartheid um modelo a seguir. Não ficou para a História. Era o movimento das senhoras dodós, em Portugal chamadas "tias". Quando faziam manifestações não andavam por seu pé. Eram dodós, não saíam dos popós. E também nada gritavam. Limitavam-se a buzinar. As suas reivindicações deviam ser tão inconfessáveis que eram substituídas pelo som póóó. Popóóó, lá vinham elas nos seus Mercedes, nos seus BMW, das ruas da Baixa, contornavam a Praça Luís de Camões e seguiam para a Senhora do Monte. Os seus popós diziam tudo. Não era preciso mais nada.
Nós tínhamos um Volkswagen verde-folha em terceira mão e defendíamos o MPLA. Mas os pais da Sara, que tinham um Citroen ID, um Toyota Corolla amarelo torrado e um jeep Land-Rover - tudo em primeira mão - também defendiam o MPLA. O regente agrícola tinha uma carrinha Station e também defendia o MPLA. A minha mãe era qualquer coisa como uma traidora na óptica dos brancos, porque apoiava o MPLA. Tinha-se passado para o lado deles, dos pretos. Concordava que Angola devia ser governada por angolanos, fossem pretos ou brancos. Para os outros brancos, o MPLA queria Angola governada por pretos e ponto final. Quem teria razão? Éramos brancos raros. Sentíamo-nos Especiais e Esclarecidos, tão cheios de Razão que não havia espaço para mais nada. Fosse quem fosse que tentasse inculcar-nos qualquer ideia de fora, rebentava altercação e da forte. Era o grande tempo das grandes discussões. Muito se discutia! Discutia-se ferozmente, com muita emoção e pouca calma. Discutia-se inutilmente, mas em doses industriais. As pessoas, de repente, descobriram-se todas especialistas em alta política e de convicções inabaláveis. Era a Grande Época da Política. Política - foi esse o maior palavrão dos meus dez aos treze anos.

Holden Roberto, Jombo Kenyata, Agostinho Neto e Jonas Savimbi
No ano escolar de 1974-75, o programa de História deu uma volta de 180º. Afonso Henriques foi substituído pela Rainha Ginga, o condado portucalense pelo Reino de N'Gola, os lusitanos pelos muílas, os mucubais, os cuanhamas, os mucancalas, os tchokué e quejandos. Ironicamente, na minha turma havia apenas duas miúdas pretas. A maioria das crianças negras nem à Escola Primária chegava. E os professores, claro, eram todos brancos.
Os pretos, de repente, tornaram-se muito interessantes. Obriguei a minha lavadeira a ensinar-me rudimentos de olunyaneka, ao qual eu, na minha branca ignorância, chamava quimbundo. Entrei no quartito dela, coisa que jamais me passara pela cabeça fazer até então e, papel e lápis em riste, ordenei, com os meus modos autocráticos de criança branca:
- Vamos estudar os verbos! "Vestir", por exemplo. Vá, diz-me lá em quimbundo a primeira pessoa do singular do verbo vestir!
A lavadeira teve um sorriso envergonhado. Claro que não percebera patavina da minha algaraviada escolar. Era tal o fosso entre nós.

Duas das nossas empregadas: a Regina e a Margarida.
Criados. Quem era a sua mãe? Quem era o seu pai? Ninguém parecia saber. Até então, ninguém queria saber isso dos pretos. "Elas não sentem como nós.", dizia-se das mães negras que perdiam os filhos. Os pretos nunca eram olhados como filhos amados de alguém. Nem sequer como filhos. Viam-nos convenientemente autónomos, sem raízes ou sentimentos de família. Quando se empregavam criados, quase sempre muito jovens, não se sentia qualquer curiosidade por eles. Como se cada preto fosse igual aos outros. Como se não tivessem passado e o futuro fosse o mesmo beco sem saída do presente. Mas agora não, descobria-se que eles podiam ser objectos de interesse! Por exemplo, tínhamos um criadito que tinha sido monangambé. Monangambé! Como na famosa canção de Rui Mingas! Monangambé, os contratados de São Tomé, na verdade uma forma de escravatura moderna! Fazia parte do nosso novo vocabulário, a palavra Monangambé, e afinal abrigávamos nos nossos próprios anexos um verdadeiro Monangambé! Que chique. Sobre um outro criadito, descobrimos que o pai dele tinha uma quantidade de cabeças de gado. Quer dizer, era o menino fino lá da tribo. O filho de um capitalista muíla. Que excitante.



Capa do single "Monangambé"

Começava a deixar de ter paciência para os discos da Carioca e as suas histórias infantis. Metralhava os ouvidos com os singles da Pandilha, com o "Sugar baby love", "If you need me", "Kung Fu Fighting", "El Bimbo", "Pop Corn", a música do filme do Trinitá. A rádio, que nunca se ligava em minha casa até ao 25 de Abril, passou a ser usada para saber as notícias dos últimos desenvolvimentos políticos. E eu apanhava de quando em vez músicas como "La Decadence" e a música do filme "O último tango em Paris". Na livraria Lello vendia-se o livro d’ "O último tango em Paris". A Bi é que me falava destas coisas. Contara-me o filme, sobretudo os pormenores escabrosos. A Bi tinha quinze anos. Eu tinha dez. Para tentar perceber o interesse e fazer-me curiosa, folheei o livro na Lello. Passei os olhos uns segundos e percebi que não era capaz de sentir a animação que ela sentia com aquilo. Outra bomba era "La grande Bouf". A Bi falou-me, mas sobretudo os adultos, falavam muito da "Grande Bouf", com um ar entre o nojo e o excitado. Percebi que era um filme onde havia uma festa em que os adultos só comiam e defecavam. Havia pessoas, diziam, que ficavam incapazes de comer durante dias após terem visto o filme. Os adultos eram seres muito estranhos. Tudo quanto tinha interesse maçava-os, tudo quanto não tinha ponta por onde se pegasse, subitamente animava-os. Andavam sempre a ralhar com as crianças para não se sujarem, mas havia alguém que gostasse mais de porcarias do que eles? Fingiam-se enojados, mas aquelas tretas enchiam-lhes as medidas. Enchiam-lhes as medidas que eu bem via. Livra, que gente, eu é que não queria ser como eles. Ainda bem que era criança. Isto era na cidade do Lubango, Angola, na época do pós-revolução. Os costumes haviam começado a mudar havia já alguns anos. Havia muitos "liambados", a juventude que fumava liamba, e a Bi contava-me das festas devassas do Lubango. Da troca de casais. Do jogo das almofadas. A juventude, sobretudo branca, entrara no mundo da droga mas, nisso, a História veio pôr um travão. Os aviões breve os levaram para longe e Angola ficou com a sua guerra de longos anos, onde nem os traficantes ousaram penetrar. A guerra travou a voragem da droga em Angola. Eu sentia um entusiasmo todo intelectual pelas drogas e a estética psicadélica dava-me volta ao miolo. O meu vocabulário enriquecera-se com palavras como "alucinogéneo" e "ácido lisérgico". Lera tudo isso num livro de análise sociológica sobre o fenómeno hippie. Aos dez anos, 1974, eu queria ser hippie. Ainda havia hippies retardados nos anos setenta. Queria ser hippie e também queria ser índio.


Os singles dos meus 10 anos.
Além das músicas pop, enveredara ainda pela música de intervenção, o último grito da moda. O "Monangambé" do Rui Mingas era o número um, mas também o "Minha mãe", poema de Agostinho Neto. E havia as canções sobre os heróis da praxe, o mártir guerrilheiro "Valódia", a representante do sexo feminino "Deolinda Rodrigues", e o representante das crianças, "Augusto Ngangula". Agostinho Neto era muito cantado, havia o "Presidente, presidente,/ nós fazemos-te uma prece" e aquela que começava assim: "Tatamukuchi Agostinho Neto,/ camarada iabátu Angolá/ oê, oê, Angolá liberté" - pelo menos era assim que eu percebia. "É o guerrilheiro,/ que passa o tempo lá na mata"... Em todas as viagens pelo Lubango fora no Volkswagen verde-folha, percorríamos incansavelmente o nosso imenso repertório musical político. Não nos coibíamos de alindar o ramalhete com canções das facções inimigas: "Savimbi é maravilhoso/ Savimbi é maravilhoso!/ Ele sabe lidar com o povo bem,/ Savimbi é maravilhoso!/ N’zau Puma é maravilhoso!/ N’zau Puma é maravilhoso…" Era só maravilhas.

Eu e a Sara até nos inscrevemos na OPA, a Organização dos Pioneiros de Angola! Cheguei à sede com o meu habitual arsenal bélico: fisga ao pescoço, canivete no bolso. Estive quase quase a levar a minha zagaia. O camarada guerrilheiro de guarda, abraçando a sua G3, proibiu-me de entrar com tanta arma, confiscou-me a fisga e o canivete e segui para a instrução militar completamente desarmada. Um punhado de miúdos negros rodeou-me. "Trouxeste calções brancos! Vão tornar-se pretos!", disse um deles. E desataram a rir. Só hoje percebo o quanto aquela frase era profética. Dali a pouco apareceu o instrutor. E começou um treino militar a sério. Marchámos à moda do MPLA, batendo resolutamente com os punhos no peito e lançando as pernas para a frente e rastejámos no chão enlameado. O instrutor arvorava uma expressão trocista e eu suspeitava levemente que aquilo tinha a ver com a presença daquelas duas notas dissonantes brancas no meio dos miúdos pretos. De algum modo, tal suspeita incentivava-me a empenhar-me ainda mais nos exercícios. Havia de o fazer engolir a troça. Na vez seguinte, porém, a troça foi mais ruidosa. Começou a chover copiosamente e o instrutor ordenou que repetíssemos as suas palavras: "Quem tem medo da chuva é filho de tuga!" Para ele perceber que eu não me considerava filha de tuga, repeti resolutamente as suas palavras. O instrutor delirou, morto de riso, tal qual como se soubesse que o meu pai era de Santarém, e repetiu uma e outra vez a mesma frase. E eu também repetia, muito séria, muito OPA. A coisa nunca mais parava, até que chegou um negro bem vestido, com óculos, ar de intelectual. Aproximou-se do instrutor e, numa voz desagradada, segredou-lhe: "Que é isso, camarada? Estás a gozar com as crianças brancas? Não queremos esse tipo de atitude no MPLA. Elas inscreveram-se na OPA, devem ser tratadas como as outras. Pára já com essa brincadeira." O instrutor, a custo travando o riso, lá se conteve. Eu continuei a empenhar-me nos exercícios, mas mais desconsolada. No entanto, tudo isto foi bruscamente travado. O tuga soube que eu andava na instrução da OPA e ficou furioso. Que não sabia onde me estava a meter, que era de uma total inconsciência, que era de loucos, que nunca mais havia de lá pôr o pé. Chorei amargamente, mas não tornei a ir. A razão foi apenas porque a atitude do instrutor arrefecera o meu entusiasmo inicial.


Pioneiro do MPLA, com arma de madeira.
Às 4 da manhã acordei com um grito de homem vindo da rua. Começara o tiroteio. Já estávamos à espera dele. Andava a descer de Luanda e algum dia teria de chegar ali. Eu tinha ouvido tiroteios em Luanda, mas longínquos - os piores tinham passado ou estavam por vir. Só um acontecera bem perto, numa avenida espaçosa, com a minha prima Magui. Desatámos a correr por ela fora até o deixarmos de ouvir. Mas no Lubango foi naquela madrugada. A minha casa encheu-se de gente. A família das Bis e a família do Tó "Naldo" e do João, que viviam na Humpata, tinham vindo refugiar-se na Praça Luís de Camões. Asneira. O tiroteio começou precisamente ali. Acampávamos no corredor, receando os tiros que pudessem atravessar as janelas. Na parede exterior da minha casa surgiram dois buracos de bala. Ena pá, o orgulho que aquilo me deu!


A mãe da Sara apareceu na minha casa com um farnel para os guerrilheiros do MPLA. Que, coitados, deviam estar cheios de fome! E de cansaço! Vinha recrutar-nos a nós, crianças, para irmos com ela naquela piedosa romaria. Subimos a Serra no Toyota Corolla amarelo torrado até ao miradouro. Estava lá estacionado um carro blindado. Com um jovem guerrilheiro do MPLA. A mãe da Sara procedeu à sua oferenda de sandes de queijo e fiambre, acompanhadas de sumo de laranja natural. O rapaz recuou. Ela então bebeu um pouco de modo a provar-lhe que não estava envenenado. Uma senhora tão fina preocupada com guerrilheiros! Arregalava os olhos. Encontrámos ainda outro guerrilheiro e repetiu-se a dose. Igualmente atrapalhado, mas com um sorriso trocista, pelo que regressámos aos nossos lares, a mãe da Sara bem feliz por haver alimentado dois guerrilheiros do MPLA para terem mais força para dar tiros aos da UNITA.


Com tiroteio à porta, guerra no país, famílias acampadas no corredor de casa, a minha avó teve uma trombose. A debandada geral começara. Todo o branco se ocupava a encaixotar os seus bens terrenos. "Não lhes hei-de deixar nada!" - ouvia-se a cada dia. Nós deixámos quase tudo aos nossos criados e a maior parte da biblioteca foi doada ao MPLA. Como à minha irmã não podia faltar determinada medicação, a minha mãe resolveu seguir a turba na travessia da ponte aérea.
Pouco antes da partida, avistara de carro uma colega de escola, uma repetente crónica que já tinha 16 anos. Era uma mulata enorme, alta e forte, que gostava de se entreter a aterrorizar os colegas mais miúdos. Naquele dia, vestia uma farda das FAPLA. Estava encostada a uma viatura militar, conversando com os seus novos colegas. Embora tivéssemos acabado de frequentar a mesma escola, percebi que os nossos destinos iriam irremediavelmente divergir.


Pouco tempo faltava para partirmos e eu encarava tudo como uma grande aventura. Mas olhei para a espatódea no passeio frente a minha casa. Quantas vezes eu subira aquela árvore! Agora tinha de dizer-lhe adeus. Trepei uma última vez, sentei-me num dos seus robustos ramos. O conforto peculiar de estar empoleirada numa árvore. Não é um conforto físico, é mais um aconchego, um abrigo verde. Aqui e ali, flores cor de laranja, como labaredas a desafiar a verdura. Pensei na minha partida, pensei que tinha onze anos, que aos onze anos da minha vida iria para Portugal. Que preferia ter dez. Mas que, mesmo assim, era ainda criança. Eu não queria crescer. Ser grande, essa meta tão almejada pela maioria dos miúdos, a mim repugnava-me. Ser grande, para mim, era conviver com a morte. Era ter de ir ao cemitério. Os adultos tinham sempre tantos mortos! A minha mãe não nos deixava entrar no cemitério do Lubango. Ficávamos de fora, a olhar os altos muros, o enorme portão de ferro trabalhado para lá do qual os mortos descansavam. Eu não sentia curiosidade. Preferia ser criança e não ter de ver. Os adultos morriam com doenças estranhas. Nós, as crianças, nós não morríamos. Mas então pensei num miúdo amigo meu que morrera havia pouco, com uma doença lenta e terrível. Houve missa na igreja do meu largo, o Largo de Camões. A minha mãe participou na cerimónia, nós não. Éramos protegidas da morte. Fui tomada então por um súbito pavor. "Mas é raro! Mas é raro!", tentava eu descansar-me. Caía em pavores, da morte, das "almas do outro mundo" sobre as quais tanto falava uma vizinha nossa, dos feitiços, kazumbis dos kimbandas, do incontrolável, das forças maiores do que nós, das forças invisíveis. A presença do invisível sempre me pareceu óbvia.
Apesar dos seus percalços, a infância ainda assim me parecia um refúgio contra a morte. Além da associação entre o estado adulto e a morte, havia ainda o vago desprezo que eu nutria pela gente grande. Já não conseguiam brincar. Poderia haver maior condenação? Só sabiam falar. Andavam sempre a falar. A maior parte deles levava vidas desinteressantes. Nunca lhes acontecia nada. Nunca eram raptados por índios. Ficavam nos cafés a parlapatar como parvos em vez de irem subir às árvores como eu. E eram realmente grandes e desajeitados. Não cabiam em sítio nenhum e perdiam toda a graciosidade. As crianças a correr eram leves e rápidas; os adultos eram sempre pesadões e as mulheres uma desgraça, com as pernas travadas pelas saias, os saltos altos a impedi-las de avançar e as mamas a dar a dar. A queda de um adulto era embaraçosa. O chão estremecia com o estrondo do peso. Eles próprios sentiam um embaraço que se lhes via na cara. Mas as crianças até a cair tinham agilidade e graça. Os adultos, nem sequer dormir sozinhos conseguiam. Em suma, eram uma tribo ridícula.
Ainda assim, os homens tinham certas vantagens. Sabiam correr bem melhor do que as mulheres e alguns, como o pai da Sara, punham as mãos atrás das costas quando caminhavam. Eu achava que aquilo "dava estilo". Alguns homens até eram caçadores, como o Martins. As mulheres não. Pintavam-se muito. Pareciam palhaços tristes. Usavam penteados altos e armados como morros de salalé. Subiam as escadas em bicos de pés, as pernas ânforas gregas enfiadas em saltos muito altos. Tudo nelas falava de artifício e desconforto. Não pareciam muito humanas. Também os apertos de mão dos homens tinham muito mais estilo que as mulheres e os seus beijinhos sociais. Eu gostava de dar apertos de mão. O Mário C., com as famosas sobrancelhas farfalhudas, um dia deu-me um aperto de mão - e comentou que eu tinha "muita força". A mim, que tinha o culto da força. Olhei, fascinada, para ele e ganhei o dia.



Espatódea
A minha vida de princesa africana ia acabar. Ia principiar a minha vida de cigana lusa. Aos onze anos desci de carro as laçadas da Serra da Leba, atravessámos o deserto do Namibe, dormimos uma noite no Colégio das Doroteias. Acordámos cedinho, o tempo fresco de Moçâmedes, a areia do Colégio era como a da praia e havia baloiços e balancés frente ao nosso quarto. Contempleio-os com melancolia, como se pressentisse que a minha infância estava prestes a terminar. Não naturalmente, mas por imperativos históricos, muito maiores do que eu. Adeus balancés. Eu seguia por um barco de carga para Luanda, o meu pai ficaria provisoriamente, regressou ao Lubango, a mãe deu-lhe da amurada um saco. E depois descobrimos que se enganara, entregara-lhe as nossas provisões para a viagem em troca de um saco cheio de cascas de fruta. A minha mãe no seu mais típico. Ficámos sem nada para comer.
O barco estava pejado de futuros "retornados". As pessoas acomodavam-se em qualquer sítio. O barco era só metal, ferrugem desagradável ao tacto, um pouco sujo. Eu nunca andara de barco, excepto a travessia do Tejo no ano anterior, durante a "licença graciosa" da minha mãe. Mas este era muito maior, um barco de carga. Havia uns poucos camarotes, disseram-nos que eram do capitão e demais tripulação. E que havia o porão. Fomos ao porão. Descemos para um buraco por umas escadinhas de ferro e não havia lugar para pormos um pé. O porão era um amontoado de gente. Gente que se barricava na sua bagagem, tentando um mínimo de privacidade para a sua família. Gente com bom aspecto, bem vestida, homens fortes de olhar triste, havia pouco tão alegres nas ruas e nas casas que deixavam para trás. Eram como os homens que eu costumava ver no Lubango, na pastelaria Flórida, no Combinado, na livraria Lello ou na Académica. Agora, sentados no chão, apertados no porão, eram como porcos num curral. Pareciam escravos brancos. Escravos brancos num porão. Ó ironias da História! Tornei a subir a escadinha de ferro apressadamente. A minha grande aventura começara a amargar.
Onde ficar? Onde passar a noite? Percorremos o barco, encontrámos uma secção ao ar livre cheia de longos toros de madeira empilhados uns sobre os outros. As pessoas arranjaram um espaço para nós as três. Subimos para cima dos toros, que depressa nos maçaram as costas com as suas esquinas afiadas. Na outra ponta queixava-se uma senhora que conhecíamos. Era uma das senhoras dodós da UFA. Também vivera na Laje. A sua voz erguia-se num lamento:
- E eu que ontem até fui ao cabeleireiro! Oh, meu Deus! E afinal isto é o barco que nos dão! Um barco de carga! E eu que fui ao cabeleireiro, pensando que, já que nos tiraram tudo, nos dispensavam o "Príncipe Perfeito"! Tiram-nos tudo e ainda por cima nos põem num barco de carga!
Depois falou nos terroristas, referindo-se aos pretos, claro, sobretudo os do MPLA, um bando de ladrões. Ela ultimamente até punha um saquinho com umas poucas moedas perto das portas e janelas a ver se eles se contentariam com aquilo e se iriam embora sem lhe assaltar a casa a sério. Até os terroristas, por serem pretos, eram subestimados. Eu tinha boa opinião dos terroristas. Afinal, desde muito pequenas, a parelha que eu formava com a minha irmã era conhecida como "As Terroristas". Deviam divertir-se à brava, esses tais terroristas, se eram capazes de semear o terror, como nós entre a demais criançada.
Mas the times they were a-changin’. As antigas estruturas desfaziam-se em pó. As senhoras dodós do Lubango eram lançadas em barcos de carga sem qualquer conforto ou cabeleireiro, sós, desprotegidas, rumo ao desconhecido. Rumo ao desconhecido. Num barco de carga rodeado de mar, uma extensão sem fim de água anoitecida, monótona e informe. Incapaz de adormecer com o frio da noite no mar alto, com as luzes, o barulho, o movimento e a impossibilidade de qualquer conforto vindo dos toros de madeira, pus-me a olhar a juventude do barco. Tinham subido para a amurada, feito uma grande fogueira, e tocavam viola com as suas grandes guedelhas e calças à boca de sino. A juventude dos anos setenta. Um contraponto em relação à cena lá de baixo, do porão. Eu cantava para dentro "Another time", haviam-me oferecido o single, só tivera tempo de o ouvir uma vez. Não me queria esquecer da melodia. "Another time". Outro tempo vinha de encontro a nós no vento do mar alto, varria-nos para longe.




O single "Another Time"

Nada para comer. No outro dia, eu e a minha irmã tínhamos fome. Uma senhora conhecida trouxera um frango de churrasco embrulhado em papel pardo. Ofereceu-nos. Devorámos-lhe o frango todo. Um rapazote gordo lia banda desenhada da "Lola" e do recruta Zero. Eu conhecia as tiras da "Lola" e do "recruta Zero" da última página do Diário de Luanda. E o "Archie". Eu adorava o "Archie", mas isso fora uns anos antes. Talvez 1972. Mas agora era 1975 e estávamos num barco de carga a comer frango de churrasco. A senhora ficou sem nada para comer.
Depois chegámos a Luanda. Os futuros "retornados" enchiam o cais e as ruas adjacentes, havia bichas por todo o lado, parecia que Angola inteira se juntara para partir. Sem saber o que fazer, subimos por uma rua ao acaso, ao longo da qual se desenrolava mais uma grossa fila de gente. No meio da multidão, porém, por puro acaso e sorte, avistei o meu tio Francisco e o meu primo Tomás. Procuravam-nos. Explicaram que aquela gente não tinha ninguém em Luanda, estavam a tentar inscrever-se para serem alojados algures até que fossem metidos num avião para Lisboa. Nós, felizmente, tínhamos família em Luanda, podíamos ir logo embora dali. Metemo-nos no carro e breve estávamos no largo da Vila Alice, na casa da tia Lusitana Liberdade. Ali esperaríamos o nosso avião e empreenderíamos a viagem pela ponte aérea e pelas malhas que o império tecia.

Nos arredores de Luanda, na base militar portuguesa, foi onde instalaram os refugiados sem família na cidade. Um primo nosso levou-nos lá. Que triste, lá continuavam eles como porcos num porão, barricados em malas, uns em cima dos outros. Disponibilizavam-lhes apenas duas casas de banho, as bichas eram terríveis. Só esses se mantinham em pé. Davam uma lata de sardinha enlatada por dia às famílias, duas se tinham crianças. Estavam quietos, só no olhar a revolta se traía. Enjaulados. À espera do avião que os depositaria na Metrópole, para muitos território ignoto, onde também não conheciam ninguém. Eu sondava o chão, estava cheio de cápsulas de balas que recolhia com fervor. Era uma criança tonta, que amava armas e balas. G3. kalashnikov, bazooka, morteiro, granada - palavras centrais no meu vocabulário de então. Muitos anos depois, soube que, entre essas cápsulas, havia balas não disparadas e até granadas. E que uma outra criança, por esses dias, recolhendo por ali despojos de guerra como eu, ficou sem um braço quando uma granada lhe rebentou na mão.
Informaram-nos de que certo dia haveria num avião lugar para nós. Um enorme avião russo. Perto do nosso lugar havia um menino pequeno chamado Cristóvão. Um pequeno retornado louro que decerto esqueceria Angola. E ouvia-se o Samba Pati do Carlos Santana, de quem eu desconhecia o nome mas amava o som. Algo diferente vinha de encontro a mim. Sentia isso distintamente.
Mal pusemos pé em Lisboa, de novo a cena se repetiu, o porão no barco, a base militar. Lá estavam eles, mais retornados e mais retornados ocupando o chão por inteiro, acampando no aeroporto, quietos, com o mesmo olhar perplexo. E nós sempre a escapar a isso, tínhamos muita família em Portugal.



Retornados acampados no aeroporto da Portela

Chocou-me, Portugal, chocou-me linguisticamente. O seu vocabulário, a sua gramática. A tia Alba Constança e o tio Júpiter Lusitano haviam alugado uma casa de campo nos arredores de Sintra, pouco tempo antes da Invasão dos Retornados da família. Orgulhosos que estavam, apressaram-se a levar-nos de carro até lá. Eu olhava pela janela a tal Metrópole e não dizia nada. A tal Metrópole, em 1975, parecia-me toda muito pobre. Aquelas povoações de casas mesquinhas, baixinhas, aqueles homens farruscos, de grandes barrigas, mal amanhados e com bigode, à porta das tabernas... Então isto é que era a tal Metrópole? A estradazita manhosa em que, periclitante, o "Dois Cavalos" seguia... que motivo havia para orgulhos? Não percebia. A tal importância da Metrópole parecia ser desmentida a cada passo. Como podia tudo aquilo ter importância? Mais do que as chamadas províncias ultramarinas? Era tudo mentira, estava à vista que era. O sol brilhava sobre casas apodrecidas e vedações atabalhoadas, confeccionadas com paus e plásticos sem ordem ou gosto, a delimitar pequenas hortas verdes de aspecto desleixado. De repente, numa curva, consegui ler uma tabuleta torpe de madeira, meio caída numa dessas vedações. A tinta azul desbotada, haviam escrito numa caligrafia tosca: "Não bazar o entulho". Não vazar o entulho! Que feio! Aquilo não era a minha língua. Não sei por que carga de água, conseguia compreender o sentido, mas aquilo era muito estranho, diria mesmo estrangeiro. Na minha língua dizia-se "Não deitar lixo" numa placa enxuta e com letras de imprensa. Então mas que raio de coisa era esta tal Metrópole, afinal? "Não bazar o entulho"? Aquilo soava-me a muita miséria, a muita ignorância, a demasiada consonância com a paisagem em redor.
Depois, quando chegámos à casa de campo, não era nenhuma casa de campo. Era uma casita no meio de uma aldeia, com cinco assoalhadas, duas em baixo e três em cima, geminada com outra. O campo estava em volta da aldeia, não estava ali. A estrada passava mesmo em frente ao pequeno quintal. Eu imaginara, claro, uma casa de campo na acepção africana, uma mansão opulenta, com piscina, muitas árvores, court de ténis, que sei eu! Uma coisa à escala africana. Até hoje se mantém o meu desfazamento de escala. Chamam quinta ao que eu chamaria pequeno jardim. Exclamam com orgulho: "É grande, não é?" E eu penso: "Isto?" As palavras são as mesmas, o significado difere.
E o tal campo, era só pinhal! Uma estrada a dividir um pinhal. Os pinheiros não são árvores muito excitantes para alguém que as dividia segundo o critério de "serem boas para subir" ou "não serem boas para subir". O chão era terra, pinhas e agulhas de pinheiro, uma monotonia até ao mar.
A aldeia tinha casas brancas e pequenas e velhas de preto na soleira das portas. Pareciam bruxas e nunca me passaria pela cabeça dirigir-lhes palavra, mas a minha irmã era uma comunicadora nata e em breve pôs as velhas de conversa. Pergunta resposta pergunta resposta, a minha irmã num ápice despejou a versão dela da nossa vida toda no largo da aldeia. Eu preferia brincar. Sonhava brincar na tal casa de campo que afinal era aquilo.
Tive outro trauma linguístico pouco tempo depois. Em plena paragem de autocarros do Campo Pequeno. Vi aproximar-se um autocarro verde de dois andares, como o eram nos idos de setenta, e pude ler distintamente o seu letreiro: "Picheleira". Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! Picheleira! Picheleira? Seria possível? Não tinha recuperado do choque, quando novo autocarro se aproximou e os meus olhos incrédulos distinguiram: "Galinheiras". Galinheiras? Galinheiras? Ó meu Deus, mas que assustadora terra era aquela cujos autocarros rumavam a tais lugares, às Galinheiras e à Picheleira? Que horríveis não seriam para conseguirem suportar tais nomes? Que país era aquele para onde me haviam trazido? Que profundamente contrário a tudo quanto eu fora. Naquele cair de tarde, olhei os portugueses a meu lado à espera de autocarro. Eram estrangeiros, até na sua língua me eram estrangeiros. Gente assustadora que se ia enterrar em sítios chamados Picheleira, chamados Galinheiras.


Quando entrei para o liceu, tinha colegas cujos pais, nas férias, iam "para a terra". A expressão, usada com muita frequência, causava-me viva estranheza. Se ao menos dissessem "para uma terra chamada..." ou "para a terra deles", eu compreenderia. Mas assim, "para a terra", que raio, o que é que queriam dizer com aquilo? Então não estávamos todos na Terra? Até parecia que os pais deles eram alguns extra-terrestres! Lá em Angola, estavam todos na Terra e na sua terra. Se fossem algures, pois iam para Luanda, ou para Moçâmedes, ou para a Metrópole. Para a terra, só se fosse para debaixo dela. "Ir para a terra" soava a muito mau agouro, mas os pais daquela gente passavam a vida a ir para a terra.
Outra que me matava era a do "lugar". Havia miúdos cujos pais possuíam ou trabalhavam num "lugar". Mas como seria possível não trabalharem num lugar? E diziam: "Vou ao lugar comprar batatas fritas Pala-pála." Durante muito tempo estes "lugares" permaneceram altamente enigmáticos para mim. Demorou bastante até descobrir que se tratava de pequenas mercearias.
Além do que, os portugueses chamavam camionetas aos autocarros ou machimbombos (deformação do inglês machine boom boom); e malas às carteiras e pastas de livros; e frigorífico à geleira; e gelados aos sorvetes; e comer à comida; e hospedeiras de bordo às aeromoças; e "ténis" aos kedds; e pastilha elástica ao chuínga, deformação do termo inglês; e pensos rápidos às curitas; e amendoim à ginguba; e pequeno-almoço ao mata-bicho; e batata-doce ao cará. Usavam palavras esquisitas como charneca e azinhaga e abalar e o dito entulho. E expressões ainda mais esquisitas como "estou deserta para ir à praia" em vez de "estou ansiosa..." e "faz-me espécie" em vez de "faz-me impressão". Nas aldeias, tratavam por "canalha" a miudagem. E os verbos, que desacerto, coisas que arranhavam os ouvidos, há-des, puzi-o, fizi-o. Então estes é que eram os portugueses mais portugueses?
E em Portugal havia peros e peras, pêssegos e alperces e mosquitos e melgas. Em Angola só havia peras, pêssegos e mosquitos. Por outro lado, eu dizia, por exemplo, "sobe nas minhas kakundas" em vez de "sobe para as minhas costas" e "Que kambuta!" em vez de "Que baixinho!", "Estás com tchimpululo!" em vez de "Estás com inveja!". De vez em quando, gramaticava à preto, afirmando que "sonhara no" em vez de "sonhara com o" e pedindo "Jura com Deus!" em vez de "Jura por Deus!". Enfim, metia-me em becos comunicacionais sem saída porque os miúdos de cá não entendiam o que eu estava a dizer.


Em Lisboa, íamos ao IARN que ficava ao lado do Museu de Arte Antiga. Estava sempre cheio de retornados a fazer bichas para receberem subsídios. Retornados exaltados, discutindo política, amaldiçoando os políticos. Descíamos aquela escadaria cruzada que vai dar à 24 de Julho. Um dia fomos ao Cais da Rocha, que se assemelhava então a uma cidadela de caixotes. Vagueando pelas suas ruelas, líamos os endereços inscritos nos caixotes, descobrindo alguns nomes de gente conhecida. E, a meio de uma dessas ruelas - ei-lo! -, um pequeno saco da TAP, sem endereço algum, que continha todas as nossas fotografias de infância. Chegara. Muitos caixotes nunca haveriam de chegar. A Sara e os irmãos ficaram sem qualquer foto de infância. Passados sem registo material.


No dia 11 de Novembro de 1975, claro que eu sabia, havia muitos meses, que nessa data Angola se tornaria um país independente. Mas só mais tarde, seriam dias, um mês, meses mais tarde?, ouvi comentar-se a independência de Angola em casa da tia Alba Constança.
- Nós seguimos aqui a cerimónia da independência, pela televisão. Foi muito bonita. E tenho de confessar que me comovi um bocado quando vi aquela bandeira de Portugal a baixar! Aquela bandeira de Portugal a baixar! Ai, foi muito comovente! Concordamos com a independência - mas aquela bandeira a baixar! São coisas muito fortes!
- A 11 de Novembro! - informei eu, para o caso de eles não se lembrarem. Estava surpreendida por terem dado na televisão a independência de Angola. Não imaginava que fosse o género de coisa que aparecesse na televisão. Eu não entendia nada de televisão. Tive o privilégio de uma infância sem televisão. Em Angola não havia televisão. Em Portugal havia e os miúdos andavam sempre a falar do Vicky, da Heidi, do Marco. Eu detestava tais animações.
- Foi muito comovente! - continuou a tia Alba. - Digam lá o que disserem, foi muito comovente! Ver a bandeira de Portugal a descer e a de Angola a subir!
A bandeira de Angola foi uma desilusão. Aquelas complicações amarelas no centro não se comparavam à eficácia simples da estrela. Adorava aquela bandeira. Estava entre as melhores, quase tão boa como a da Arábia Saudita, a do Nepal e a do Butão. A bandeira do MPLA e o grito da UNITA: Kuatchá África! Kuatchá Angola! Kuatchá UNITA!

11 de Novembro de 1975: independência de Angola.

Mas não me importava muito. Nem não ter visto a cerimónia de independência na televisão me provocou mais do que uma vaga pena. Aquele novo país, com uma bandeira nova e um hino novo já me não dizia muito respeito. E, no entanto, só abandonara Angola havia pouco mais de um mês. Já só contava o Otelo, o Fabião, o Diniz de Almeida, o Vítor Alves. PCP. PS. AD. UDP. Estes nomes e siglas é que ocupavam agora as nossas vozes e o nosso pensamento. Um barbudo de olhos enormes aparece na televisão a arengar e depois atrapalha-se, olha para os lados, diz coisas como o que é que se passa, mas o que é que se passa. 25 de Novembro. Era o Duran Clemente. Avionetas militares cruzam os céus de Lisboa. General Costa Gomes. Eanes. Pinheiro de Azevedo.



Otelo e Vasco Gonçalves

Vagueava pelas ruas de Lisboa, desde a minha escola no Bairro Azul. Com os meus colegas retornados, temporariamente instalados de graça no Hotel Ritz, passava pelo Tribunal, íamos até Campolide, Amoreiras, Artilharia Um, Travessa da Légua da Póvoa. Comprávamos castanhas no inverno. E pevides e tremoços a velhinhas pobres de negro que os vendiam em bancazinhas minúsculas por toda a Lisboa. Com os colegas de Lisboa, o Gigante, o Gadelhas, o Barata, o João Luís, o Sputnik Chuáck, escorregava por um barranco abaixo em perigo de derrocada, descíamos até à Praça de Espanha e íamos visitar o Museu Gulbenkian. Avenida Elias Garcia, Avenida Cinco de Outubro. Pendurávamo-nos nos eléctricos, atirávamo-nos deles em andamento e subíamos a correr as escadas rolantes do Metro que desciam. Uma vida lisboeta. Com o Sputnik Chuáck ia até à Avenida da Liberdade, à Feira do Livro, a comícios e manifestações. Schweppes, Sumol, gelados Olá. O Crispy, o Super-Maxi, o Epá. Chocolate Toffee Crisp. Água de Carvalhelhos. Muito vadeei eu por Lisboa nesse primeiro ano. O meu pai estava em Angola, a minha irmã andava noutra escola, a minha mãe nem sei onde andava. Diz que andava nas bichas do IARN, a tratar de papelada, a recomeçar a vida num novo país, a comer ao almoço um cacho de uvas.




Manifestação
Morávamos em casa alheia. Mandaram-nos embora ao fim de um ano. Enfiámo-nos então na casa de aldeia, a tal casa de aldeia que me haviam mostrado à chegada. Por fim, arranjou-se um apartamento em Alvalade, já eu tinha treze anos. Os meus pais, com quase cinco décadas de vida, recomeçaram do zero. À procura de casa. À procura de emprego. A nossa casa era um acampamento cigano. Bem longe da vivenda da Laje. Colchões no chão. O guarda-fatos, uma corda atada ao longo de uma parede. Pilhas de malas faziam de móveis. Eu e a minha irmã escorregávamos pelo corrimão das escadas abaixo ou equilibrávamo-nos sobre o parapeito da varanda. Os rostos das vizinhas assomavam às janelas. Nunca tinham visto nada assim. Crianças retornadas! Macacos de África! Hard times.

Chacóia


Brincava eu na vivenda da Laje, na garagem penumbrosa, quando senti alguém aproximar-se. Rodei a cabeça na direcção da porta. Vi o vulto negro de um gafanhoto gigante, todo braços e pernas recortado em contraluz. Fui tomada por uma vaga de terror. No segundo seguinte, reconheci a Chacóia, mas já era tarde demais. O pavor deu-me ousadia e atirei-me a ela aos socos e pontapés, gritando-lhe vai-te embora! Tu não podes entrar aqui! Devia ser muito pequena, porque toda a minha violência não sortiu efeito algum. A Chacóia olhava-me a rir, perguntava pela minha avó. Por fim, virou-se, saíu da garagem e deixou-me na porta a vê-la afastar-se de costas.
Eu não gostava daquela mulher.

Era incapaz de entender a razão do clima amistoso que reinava em volta da Chacóia. Parecia um louva-a-Deus, muito alta e magra, com dentes protuberantes. Tinha no riso a malícia do vício, um riso que diz: "Pedem-me para deixar o vício mas desconhecem as alturas sublimes a que ele conduz!". A sobranceria na servidão.
Aparecia enrolada nos seus panos nativos. A minha avó, a minha mãe davam-lhe vestidos, mas a Chacóia não os queria. Porque havia ela de andar ataviada com as roupas dos brancos? Porque pensavam os brancos que as suas roupas eram melhores? Provavelmente preferia os seus panos. Mas sobretudo vendia os vestidos para ter dinheiro para a pinga. A pinga era a sua perdição. Era uma grande bêbeda. Fazia tudo por um copinho.
A Chacóia aparecia enrolada nos seus panos, por vezes com um bebé minúsculo sumido nos ramos nus e longos dos seus braços. Com a indiferença e ausência de esforço com que se transportam panos da louça. Criaturas subnutridas, engelhadas, às portas da morte, que seriam enterradas pouco depois. Era demasiado bêbeda para conseguir criar os filhos que breve desapareciam da face da Terra. Mas, naquele tempo, ninguém tomava isso como assassínio. Quando a minha avó dava um pedaço de pão à bebé, ela arrancava-o e engolia-o ela. "Criança não quer! Criança não gosta! Criança já comeu!"
Algo nela me perturbava, talvez os filhos para a morte, o seu riso ébrio, talvez a vida enigmática, as suas perdas de consciência nas valas à beira dos caminhos, as roupas rasgadas, as tareias que levava.


Duas décadas volvidas, perguntei bruscamente:
- A Chacóia era uma puta, não era?
Com a certeza absoluta da resposta, como se sempre a tivesse conhecido. A minha mãe olhou-me com espanto. Não tanto pela pergunta mas pela palavra prestes a sair-lhe da boca:
- Era! - e, por o enunciar, foi como se o tivesse descoberto naquele preciso momento. A sua amiga de infância, a nossa mais assídua visita gentia, a estimada Chacóia, só naquele momento foi vista de um ângulo até aí obnubilado. Porque não era aquilo que importava na Chacóia. Nunca o fora.
A Chacóia era uma puta bêbeda, mas a amizade que lhe tinham na minha família impedira que vez alguma tivesse ficado reduzida à sua profissão. Nunca ninguém a descrevera assim. Só eu, durante mais de duas dezenas de anos, guardara essa suspeita nebulosamente, recondidamente, sem nunca até então chegar ao estado da formulação verbal. O eco de certos conselhos da minha avó em conversa com ela - "Fica só com um! Só com um, estás a ouvir? Arranja um homem bom!" -, a malícia no riso da Chacóia em resposta, haviam-se inscrito em mim, eram um desses milhares de trilhos que nos compõem. Nunca o seguira até àquele súbito dia e descobri que desembocava numa constatação: a de que a Chacóia era uma puta. Foi o que eu vi ao fundo do trilho, no manuscrito que só então desenrolei.
A partir desse dia, a frase "era uma puta" pôde ser dita, mas pôde ser dita por um acto de profanação. Profanação de uma amizade que vinha de muito longe.


De Chacóia conhecia-se os pais: foi a única filha serôdia de Sekulo (velho) e de Luzia, empregados do meu bisavô. Em criança foi trabalhar como criada para a Quinta da Liberdade. Como era da idade dos meus tios tornou-se mais uma companheira de brincadeiras. Adoptou-os como seus irmãos brancos. Chacóia era meiga e alegre, muito alegre, nada a conseguia aborrecer. Andava sempre a rir. Brincalhona e divertida, ralhete algum conseguia abalar a sua boa índole. Toda a gente gostava dela.
As suas irmãs brancas resolveram ensiná-la a ler. Deram-lhe um nome bem português: Maria Amélia. Mas ler não era com ela. Maria Amélia nunca aprenderia a ler. Ficou para sempre Chacóia.
Quando Chacóia era adolescente, o meu avô ficou gravemente doente durante três anos antes de morrer, de uma doença estranha e sem nome. Quando uma crise o atacava, a pequena Chacóia largava a correr para ir chamar o médico que morava longe. Largava a correr com as suas longas pernas debaixo da maior chuvada, chuvada africana, dez mil cascatas caindo do alto. Outras vezes, Chacóia galgava a inteira noite escura, sem parar um momento, descalça pelo mato. Se já gostava dela, a minha avó passou ainda a gostar mais.
Aos quinze anos da vida de Chacóia, deu-se um acontecimento que iria imprimir um rumo decisivo na sua vida. Durante três dias desapareceu com uma amiga ligeiramente mais velha. Quando regressou, tinha descoberto os homens. Nunca mais os largaria. As desaparições tornaram-se frequentes.


Chacóia em criança: na ponta direita, atrás da árvore (é óbvio que não foi convidada para a fotografia). Em primeiro plano, a minha mãe, uma amiga e uma irmã. 1939.


Quando a minha mãe regressou a Angola, depois de se formar e viver em Portugal, quis a Chacóia como criada. Quis também, diz ela, idealista sem cura, moldá-la num ser pensante. Chacóia: um ser pensante!
Para moldá-la num ser pensante trocou todas as regras. Nunca ninguém dava salário à Chacóia, conhecendo o seu fim mais do que certo: transformação miraculosa em vinho. Mas a minha mãe insistia em fazer dela uma criatura responsável. Pagava-lhe no fim do mês. Enquanto não bebia era uma criada de excepção. Uma criada que garantia que não tornaria a beber. A minha mãe acreditava, claro. Mas era demais para a Chacóia. Mal se apanhava com a féria, ala com ela, desaparecia durante dias com todos os vestidos que a minha mãe lhe dava. Que a Chacóia andava linda, calçando sapatos e tudo! Ataviada nas belas roupas que a tia Tágide Dione e a tia Miosótis Dulce carinhosamente haviam confeccionado para a irmã.
Tia Miosótis erguia aos céus olhos escandalizados:
- Oh! Quando eu vi uma sombra negra com aquela blusa encarnada!... Aquela blusa encarnada! Tu foste dar aquela blusa!
Por esse tempo tinha Chacóia um homem, um homem apaixonado. Todos os dias vinha buscá-la, o homem, ficava à espera no portão do meu quintal. Chacóia não lhe ligava, não queria ir com ele. Fazia-o esperar. Fazia-o esperar muito tempo, para que ele desistisse e fosse embora. Ele, porém, esperava por ela, esperava sempre. Chacóia tão linda, Chacóia com seus vestidos, os vestidos de Chacóia punham-lhe a cabeça à roda:
- Chacóia - boniiita!
Chacóia troçava dele, que ele gostava dela mas ela não. Tinha fraquinho por mulume (homem) branco. Era vista a rondar o quartel, cheio de filhos da Metrópole enviados para a Guerra Colonial. Tropas, camionistas, Chacóia preferia mulume branco.
Quando fomos embora e o meu pai ficou, tomou-a outra vez como criada. "A melhor criada do mundo!", exclamava ele. Toda a gente achava graça a Chacóia.
Toda a gente menos eu.


Quando nos fomos embora, ela veio despedir-se. Chorou, chorou muito, tão triste, tão triste, Chacóia atirou-se ao chão:
- Nunca mais vou ver! Nunca mais vou ver! As minha irmãs branca!
Sabia que ficava só. Eram toda a sua família. Mas essa família pertencia, de algum modo, um modo perverso e longínquo, inscrito na cor da pele, a outro continente, embora tivessem todos nascido no velho solo africano e alimentado-se dele para crescer.
Apenas a tia Estela Marinha regressaria ao Lubango. Tornou-se no amparo de Chacóia, já muito doente, com hemoptises, mas sempre bêbeda, sempre nas valas. A minha mãe escrevia-lhe, a ela, que nunca aprendera a ler e as cartas eram a sua maior alegria. Teve uma morte terrível. Só, à beira da moribunda, a sua irmã branca, a tia Estela Marinha.


A última fotografia de Chacóia, já doente no Hospital. Pedia que "as suas meninas e os seus meninos" - referindo-se aos meus tios e tias em Portugal - lhe enviassem "um casaco cor de vinho".


Kissongo

Kissongo também chorara:
- Ficamo sozinho! Os branco estão nos abandonar!
Kissongo tão triste.
Da idade das mais velhas, Kissongo fora amiga de juventude da tia Lusitana Liberdade. Kissongo era então muito elegante, possuía linda voz, voz de fada negra, muito dada a pedinchar:
- Lusitana, tenho fome! Dá-me pão! Então não puseste nada no pão? Põe conduto no pão! Lusitana, dá-me muxinha p'ra cutunga (linha para coser)! Olha o meu pano, está roto! Dá-me muxinha p'ra cutunga!


Kissongo casou com Lupito.
- Eu não gosto do Lupito, de noite não presta!
- Mas ele é tão bom! - contrapunha a minha avó, contrapunha toda a gente.
- Sim, é bom. De dia é bom, mas de noite não presta!
Lupito, esse, amava Kissongo. Mesmo ela não o querendo, não queria ele outra mulher.
O casamento durou. Sempre os conheci já muito velhinhos e curvados, Kissongo sem sombra da beleza de outrora. Visitavam-nos por vezes, devagarinho e sorrindo, vindos das suas cubatas, magrinhos, só com o seu tchinkuáni dependurado à cintura. Kissongo mais rebiteza, o Lupito muito doce. Para mim eram só dois velhinhos gentios, de que muito gostava. Fazíamos uma festa ao vê-los chegar, mas percebia que havia todo um passado partilhado entre a minha avó e eles, entre a minha mãe e eles. Uma amizade velha e fácil, da qual eu não fizera parte, que pertencia a um tempo outro da cidade do Lubango.


Lupito morava sozinho numa cubata da Quinta da Liberdade. Kissongo vivia na serra. De vez em quando, visitava o marido, fazia-lhe o favor. Lupito vivia sozinho, não queria outra mulher. Um dia entrei na sua cubata. Um pequenino espaço circular, sombrio, um leve cheiro a katinga, com umas cabaças pelo chão térreo que não faziam senão acentuar a nudez geral. Um pequenino espaço circular e todo um mundo de diferença.



Muílas e sua cubata. Anos 60.
Kaindangongo


Kaindangongo tinha três, depois quatro, cinco anos. Era sobrinha de Kissongo. Também vivia na serra. Quando ia à cidade trocar coisas, Kissongo deixava Kaindangongo na Quinta da Liberdade. Tão linda, Kaindangongo. Com trancinhas. De tchinkuáni e colares de missangas. Tão esperta, Kaindangongo. Kissongo dizia era mais esperta do que podiam imaginar. Que Kaindangongo só falava olunyaneka. Descia a serra sempre a falar com as árvores, a falar olunyaneka. Quando a deixavam na Quinta da Liberdade, os miúdos pegavam nela, davam-lhe banho, vestiam-na à moda das crianças brancas. Tão linda, Kaindangongo. Quando eu nasci, Kaindangongo já não existia sobre a Terra. Morreu muito nova. Kaindangongo para sempre criança. Durante mais de seis décadas sempre criança na memória do punhado de brancos que brincou com ela nos anos trinta do século passado. Kaindangongo tão linda a falar com as árvores.

Menina muíla

O Chuva


Tio Júpiter tinha um moleque chamado Chuva. E tinha uma bicicleta sem licença. Quando estava na tropa, o tio Júpiter não comia ração como os recrutas negros. Era-lhe trazida diariamente uma merenda pelo Chuva. Júpiter não o sabia, mas o Chuva costumava ir ao quartel levar-lhe a merenda todo impante montado na bicicleta do patrão. Certo dia, a Polícia apanhou-o sem a licença. E apreendeu-lhe a bicicleta. Por mais que o Chuva protestasse que a bicicleta não lhe pertencia, a Polícia não se demoveu. Bicicleta sem licença tinha de ser apreendida. Quando Júpiter teve folga e voltou à quinta, descobriu que a bicicleta desaparecera. O Chuva meteu os pés pelas mãos. Júpiter vociferou: "Não quero saber de desculpas! Quero a minha bicicleta! Arranjaste o sarilho, agora desenvencilha-te! Paga a bicicleta! Só sei que a quero de volta!"
Chuva desesperou. Tanto que lhe veio uma dessas ideias ditas luminosas, que disparam faíscas no meio da escuridão mais profunda. Dirigiu-se ao posto da Polícia e ordenou:
- O Sô Comandante do quartel manda buscar a sua "biscreta"!
Escutando tal, e para alívio do bom do Chuva, os polícias afligiram-se:
- Eh, pá! Por que é que não disseste logo que o teu patrão era o Comandante do quartel?
Em suma, devolveram-lhe a bicicleta.

Certo dia, o Chuva comprou um par de sapatos ténis brancos, sapatos ténis branquinhos. Passaram a ser toda a sua vaidade.
- Meus sapato branquinho! - exclamava amiúde, com deleite, olhando o alvo par de ténis.
Mal se sujaram um pouco, porém, o Chuva precipitou-se a dar-lhes um valente banho. Previsível - não para o Chuva - resultado, os sapatos encolheram. Deixaram de todo de lhe servir. O tio Júpiter surpreendeu-o precisamente no momento em que fazia uma força danada para os enfiar nos pés.
- Ai, os meu sapato branquinho! - gemia o Chuva.
O tio Júpiter perguntou-lhe:
- Então não vês que não te servem mesmo? O melhor que tens a fazer é cortar a parte da frente, de modo a deixar os dedos de fora! Não tens outro remédio!
- Cortar meus sapato branquinho? - protestou o Chuva, quase em pranto - Não quer! Aiuê, meus sapato branquinho!
Júpiter atirou então, com deleite antecipado:
- A menos que os teus pés encolham!
Chuva ficou então como que petreficado:
- Êh! É, patrão? Meus pé pode encolher mêmo?
Tio Júpiter nada respondeu e afastou-se.
À noite, o Chuva desencantou uma liga e, com toda a determinação da esperança, enfaixou os pés. Bem apertadinhos para poderem caber nos sapatos ténis. Nessa noite, sofrendo de dores terríveis, não conseguiu dormir. Mas tamanha causa merecia tal sacrifício.
No dia seguinte, os sapatos ténis, branquinhos, elegantes, pareciam irremediavelmente mais longe dos pobres pés inchadíssimos daquela alma devassada.



Tio Sereno Lusitano, tio Júpiter Lusitano e tio Léon Lusitano. Lubango, anos 50.

O Pintaças

No tempo em que Kaindangongo falava com as árvores, contam os meus tios que lá no Lubango havia o Pintaças. O Pintaças gostava de se embebedar com os seus compinchas no Carnaval - e fora dele - e causava distúrbios na ordem pública. Num desses carnavais, um polícia abordou-o:
- Queira acompanhar-me!
E Pintaças, que dedilhava uma guitarra, perguntou:
- Em que tom?


Um dia, foi ao matadouro e trouxe de lá uma braçada de chifres. Com o seu peculiar carregamento, começou a andar pela cidade de casa em casa, gritando:
- Quem quer chifres?
Ninguém respondia. Ninguém queria chifres. E ele então volvia com voz ainda mais sonora:
- Olha, estes já têm!
A Polícia acabou por o prender. Naqueles tempos, a Polícia tinha pouco que fazer. No dia seguinte, digerida a bebedeira, ao sair da cela, os chifres foram deixados para trás. Um polícia de guarda disse-lhe:
- Leve os chifres.
Resposta do Pintaças:
- Olhe, eu não os quero. Fique o senhor polícia com eles!


Na Estação Zoológica, Pintaças pintou um mural com uma cena da selva, completa com um enorme leão preso a uma árvore por uma corrente de ferro. O director da Estação indignou-se:
- Então você faz-me o leão preso com uma corrente? Que jeito tem isso?
No dia seguinte, do mural desaparecera o leão.
O director voltou à carga:
- Então que é do leão, homem?
Resposta do Pintaças:
- Você não queria a corrente, não era? Então, de que é que estava à espera? O leão fugiu!
Isto que se passou no Lubango, no Planalto da Huíla, no interior de África, é em tudo semelhante ao que se passa nas histórias dos pintores chineses que penetravam nas suas montanhas de tinta e cujos dragões largavam a voar do papel onde haviam sido pincelados.


Fotografias: de desconhecidos, da net e de vários membros da minha família.

2002
 http://demandadodragao.blogspot.pt/2006/03/memrias-malhas-que-o-imprio-tece.html

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