quinta-feira, 1 de abril de 2010

Retornados: a palavra possível nasceu há 35 anos (I)*

Estivadores africanos do porto de Lourenço Marques recusaram-se ontem a carregar barcos de carga destinados a Lisboa com bens pertencentes a colonos brancos que regressam a Portugal. Segundo anunciaram, respondem assim  a um apelo lançado pela Frelimo no sentido dos residentes brancos permanecerem no território, ajudando ao seu desenvolvimento. Todavia na capital moçambicana a tensão aumentou nos últimos dias, devido a uma série de deflagrações (…) que devem ser obra de extremistas das direitas.
Direitas. Extremistas. Colonos. Brancos – esta notícia do Telejornal da R.T.P. do dia 21 de Junho de 1974 contém os tópicos básicos das notícias sobre aqueles que, um ano depois, passarão a ser designados como retornados. Mas em Junho de 1974 os retornados não só não existiam como eram precisamente aquilo que antecipada e firmemente se garantia aos portugueses que jamais sucederia. É certo que, em 1974, existiam em Portugal os refugiados de Goa e os refugiados do Zaire. Mas os primeiros surgiam como o resultado dos erros de Salazar e dos segundos não só mal se ouvira falar como também eram apresentados como a natural consequência do colonialismo.
Os portugueses de África confrontaram-se desde os primeiros momentos com um estereótipo que os reduzia à caricatura dos colonos brancos, extremistas de direita. Que para maior agravo fugiam por receios infundados e por não quererem dar o seu contributo aos novos países africanos: “filhos pródigos” de Moçambique  – chama por este mesmo mês de Junho de 1974 o correspondente do Expresso naquele território àqueles que já então esgotavam os bilhetes da TAP para a viagem  Lourenço Marques-Lisboa.
Mas este enquadramento ideológico, quer das vidas dos portugueses em África, quer de tudo o que lhes possa vir a suceder, leva a um fenómeno muito mais profundo que a caricatura: a indiferença pela omissão. Assim, esperar-se-ia que a situação vivida por estas pessoas em Lourenço Marques merecesse maior atenção por parte da comunicação social daquilo a que se chamava metrópole. Afinal não era de modo algum habitual que cidadãos portugueses fossem impedidos de viajar sequer pelos seus governos quanto mais por um movimento político armado, no caso a FRELIMO, do qual o Alto Comando Militar de Moçambique (ACMM ) continuava a dar conta de ataques – na terceira semana de Junho de 1974 são imputados pelo ACMM  à FRELIMO ataques a três aldeias no distrito de Cabo Delgado que causaram uma morte e seis desaparecidos, para lá do assassínio de três chefes tribais no distrito de Vila Pery. Mas não foi isso que aconteceu. Mesmo a referência à carga que a FRELIMO não quer deixar embarcar não gera qualquer curiosidade. O que pretendem embarcar estas pessoas:  bens que querem colocar em segurança para o que der e vier ou a panóplia habitual de objectos nestas viagens sazonais de reencontro com os familiares e de apresentação dos filhos aos parentes que tinham nesse território a que chamavam Portugal europeu? Em Lisboa ninguém se interessou por esse assunto. Vão ser necessários muitos meses e muitos milhares de retornados para que a imprensa portuguesa lhes dedique espaço e para que o discurso do poder político-militar conceda que eles existem.
Seja na versão oficial ou no imaginário de cada um de nós, os retornados são um fenómeno de 1975. De facto são de meados de 1975 as imagens dos caixotes junto ao Padrão dos Descobrimentos e das crianças sentadas no chão do aeroporto de Lisboa. É também em 1975 que começa oficialmente a ponte aérea que traria centenas de milhar de portugueses de África. E finalmente é em 1975 que, perante a evidência da catástrofe, se arranjou um termo politicamente inócuo, susceptível de nomear essa massa de gente que só sabia que não podia voltar para trás. Arranjar um nome para esse extraordinário movimento transcontinental de milhares e milhares de portugueses foi difícil, não porque as palavras faltassem mas sim porque os factos sobravam.
Contudo não só muitos deles não eram retornados, pela prosaica razão de que tinham nascido e vivido sempre em África, como surgem muitos meses antes de a palavra retornado ter conseguido chegar às primeiras páginas dos jornais portugueses. Desde Junho de 1974 que encontramos notícias sobre a fuga dos colonos, dos brancos, dos africanistas, dos europeus, dos ultramarinos, dos residentes e dos metropolitanos. Enfim de pessoas brancas, pretas, mestiças, indianas… que residiam em Angola, Moçambique, Guiné e Cabo-Verde. Nenhum destes termos é verdadeiramente apropriado para descrever o que eles de facto eram mas a desadequação dos sinónimos foi breve pois dentro de poucos meses eles deixaram de ser definidos em função dessa África onde foram colonos, brancos, africanistas, europeus, ultramarinos, residentes ou  metropolitanos para passarem a ser definidos em função da própria fuga. Então passarão a ser desalojados, regressados, repatriados, fugitivos, deslocados ou refugiados. Finalmente, em meados de 1975, tornar-se-ão retornados.
Oficialmente os retornados nasceram há 35 anos, em Março de 1975, através do decreto nº 169/75 que criou o IARN. Ao contrário do que ficou para o futuro, as siglas não queriam dizer Instituto de Apoio ao Retornados Nacionais mas sim Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais pois quanto mais os factos davam conta da catástrofe mais cuidado punha Lisboa na gestão das palavras. O texto introdutório do decreto explica  a criação do IARN como uma medida de “prudente realismo” perante a  possibilidade de advir do “processo de descolonização em curso (….) o eventual afluxo a Portugal de indivíduos ou famílias que hoje residem ou trabalham em alguns territórios ultramarinos”. Mas não só a estes portugueses se refere este decreto. Aliás os seus considerandos mais sérios e assertivos (nada que se assemelhe a um “eventual afluxo” mas sim a um retorno em “grande massa”) são reservados  não aos retornados de África mas sim aos portugueses emigrados na Europa: “Considerando que, no caso de se verificar uma grave crise de emprego nos países principais destinatários da emigração portuguesa, é de admitir a hipótese do retorno de uma grande massa de emigrantes ao País;” Ou seja, escassas semanas antes de começar uma das maiores pontes aéreas mundiais para evacuação de refugiados, numa fase em que por barco e carreiras aéreas regulares já tinham afluído a Portugal milhares de residentes nos territórios africanos e quando os próprios funcionários públicos portugueses e membros das forças segurança abandonavam em massa os seus lugares em África, o poder político-militar de Lisboa finalmente reconhecia não ainda a sua existência mas a possibilidade de virem a existir. 
Aquilo que o decreto 169/75 refere como “eventual afluxo” foi o maior êxodo de portugueses registado num tão curto período. Não se sabe ao certo quantos foram os retornados pois muitos “retornaram” directamente de África para o Brasil, Canadá, Venezuela ou deixaram-se ficar pela África do Sul. E não fosse o povo ter chamado bairro dos retornados a alguns conjuntos de habitação social, geralmente pré-fabricada, para onde alguns deles foram residir,  não se encontraria outra referência no espaço público à sua existência. Até hoje ninguém  os homenageou. Deles o poder político e militar falou sempre o menos possível. A comunicação social, tão ávida de histórias, demorou anos a interessar-se por aquilo que eles tinham para contar. E os poucos que entre eles passaram a papel as memórias desse tempo só em casos excepcionais conseguiram romper o universo restrito das edições de autor.
Há 35 anos inventámos a palavra retornado. Mas eles não retornavam. Eles fugiam. Retornados foi a palavra possível para que outros – os militares, os políticos e Portugal  – pudessem salvaguardar a sua face perante a História. Contudo a eles o nome colou-se-lhes. Ficaram retornados para sempre. Como se estivessem sempre a voltar.
*PÚBLICO


Publicado por helenafmatos em 5 Março, 2010

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