domingo, 18 de abril de 2010

ESPOLIADOS DO ULTRAMAR: O EXEMPLO DA FRANÇA


Por Ângelo Soares

Aquilo que pode afirmar-se constituir um novo princípio geral de direito - o de o Estado indem­nizar os seus cidadãos vítimas da descoloniza­ção - tem sido respeitado pela generalidade dos países cuja soberania se estendia a territó­rios ultramarinos. Assim aconteceu nos casos da Grã-Bretanha, da Bélgica, da Itália, da França, da Holanda ou da Alemanha. Portugal constitui a este respeito uma lamentável excep­ção: vinte e três anos decorridos, o nosso país não só não elaborou qualquer legislação nesse sentido como nem sequer admitiu uma respon­sabilidade que, em casos idênticos, as demais potências colonizadoras assumiram de pronto. Mais ainda: numa atitude que qualificaríamos de menos séria, procura transferir as suas obri­gações para países terceiros, que nem para tal estão vocacionados nem possuem meios mate­riais para proceder a quaisquer indemnizações (Art.Q 40 da Lei das Indemnizações n.g 80/77, de 26 de Outubro). Não desejando sobrecarre­gar o leitor com múltiplos dados, por vezes repetitivos, cingir-nos-emos à legislação france­sa, numerosa, extremamente detalhada e em que é notória a preocupação de proceder ao seu constante aperfeiçoamento. Salientamos, assim, alguns aspectos das medidas legais mais relevantes adoptadas pela França. A partir de 1961, a legislação francesa ocupou-se da reintegração dos seus cidadãos, até então residentes em territórios sob a soberania da França, com diversos subsídios e medidas de carácter social; em 1969 instituem-se dispo­sições de protecção jurídica em favor dos repatriados e espoliados dos seus bens no ultramar nomeadamente suspendendo, "até entrarem em vigor medidas legislativas conducentes às indemnizações", a execução de obrigações financeiras por eles contraídas junto de orga­nismos de crédito que tivessem assinado com i Estado (Lei 69-992 de 6/11/1969, Art.2 2.Q). Nos anos 70 será particularmente numerosa a legis­lação relativa aos espoliados do ex-ultramar francês. Notaremos em primeiro lugar a Lei n.Q 70-632, de 15/07/1970, que tem por título "Contribuição nacional para a indemnização dos franceses espoliados de bens situados em território anteriormente sob a soberania, protec­torado ou a tutela da França". Logo no seu Art.Q 1 ,g se refere esta lei à indemnização que a lei de 1961, n.Q 61-1439 de 26/12, já previa no seu Art. 4.s. Propõe-se a referida lei de 1970 proce­der ao que designa por uma "contribuição nacional" a indemnização, com o carácter de adiantamento sobre os créditos detidos pelos espoliados (Art. 1.s); define o que entende por pessoas físicas e pessoas morais com direito a indemnização, as circunstâncias que levam o acto a ser classificado de "espoliação", enume­ra os bens indemnizáveis segundo categorias que estabelece, bem como critérios para a sua indemnização, etc. A defesa de bens e interes­ses dos repatriados ficava entregue à Agência Nacional para a Indemnização dos Franceses do Ultramar, colocada sob a dependência do primeiro-ministro"; além de outras atribuições que lhe eram conferidas, ficava a agência encarregada da "execução das operações administrativas e financeiras previstas na pre­sente lei". Os pedidos de indemnização deviam ser apresentados dentro de um ano; a introdu­ção dos processos seria efectuada segundo uma ordem de prioridades que dependia dos meios de subsistência, da idade, dos encargos familiares e do estado físico dos interessados. Quanto à liquidação das indemnizações, a lei estabelecia no seu Art. 41.- que o montante da indemnização era igual ao valor global da indemnização por esses bens, afectado pela aplicação dos coeficientes que indicam e varia­vam segundo o montante dos bens. As indemnizaçõeso seriam liquidadas pelo director da Agência Nacional para as Indemnizações, segundo modalidades a fixar por decreto, den­tro do limite de verbas orçamentais estabeleci­das em cada ano. Das decisões sobre o reco­nhecimento do direito à indemnização ou sua liquidação, cabia recurso para as comissões do contencioso da indemnização, fixadas por decreto do Conselho de Estado; da decisão das comissões podia recorrer-se para o próprio Conselho de Estado.
Um decreto de 1970 (n.Q 70-720 de 05/08/1970) referia-se exclusivamente à determinação e avaliação dos bens indemnizáveis situados na Argélia, variáveis consoante as regiões. Um decreto posterior (n.9 70-982 de 27/10/1970) coloca a Agência Nacional para a Indemnização dos Franceses Ultramarinos, por delegação do primeiro-ministro, sob a tutela do ministro da Economia e Finanças; do seu Conselho de Administração fazem parte, entre outros membros "três pessoas que conheçam os problemas da competência da Agência" e são escolhidas pelo primeiro-ministro "por pro­posta das associações mais representativas dos repatriados".
Segundo a Lei n.Q 78-1 de 02/01/1978, relativo à indemnização dos franceses espoliados, é cria­do um complemento de indemnização, a adi­cionar à anteriormente estabelecida "contribui­ção nacional", ainda com o carácter de adian­tamento sobre os créditos dos espolia­dos. São actualizados a Dezembro de 1978 os valores das indemnizações; o título de comple­mento de indemnização que as pessoas com mais de 70 anos recebem tem carácter prioritá­rio que lhes permite pedir em cada ano o paga­mento de um quinto do montante do título, enquanto pessoas de mais de 80 anos podem pedir o seu reembolso em dois anos; as de idade inferior a 70 anos serão reembolsadas em quinze anos; em todos os títulos serão pagos juros, livres de impostos; os títulos podem constituir-se em garantias de emprésti­mos.
O decreto n.º 78-231 de 02/03/1978 esclarece alguns pontos da lei acima referida e actualiza o valor do complemento de indemnização. Empréstimos de consolidação de dívidas, con­cedidos aos repatriados com dificuldades eco­nómicas e financeiras, são objecto de legisla­ção em 1987 e1988.
Em conclusão, o gradualismo desde cedo adoptado pelo Estado francês tem viabilizado o cumprimento de responsabilidades que jamais enjeitou e contribuído para a pacificação da sociedade francesa.
Em Portugal, onde foi construído o Centro Cultural de Belém, ocorreu com brilho e cir­cunstância a Expo'98 (o Totoloto de muitos), o exemplo humanitário dado pela França podia ser seguido pelos governantes. Cidadãos portugueses que viveram durante dezenas de anos em Angola e Moçambique, exercendo actividade no sector privado (comer­ciantes, industriais, agricultores, operários, téc­nicos, profissões liberais, etc.), porque lá não existia qualquer tipo de segurança social, foram forçados pela universal lei de sobrevivência a criar economias próprias garantes de uma velhice com um mínimo de dignidade. Com a descolonização, viram-se, de um dia para o outro, espoliados dos seus seguros, resi­dências, depósitos bancários, terrenos, enfim, de tudo quanto tinham amealhado, sabe-se lá à custa de quantos sacrifícios e privações. Regressados a Portugal e muitos já perto dos 60 anos, a inscrição no desemprego, na grande maioria dos casos, nada resultou. Atingidos que foram os 60 anos e sem terem tido oportunida­de de descontos para a Segurança Social, foram forçados a aceitar a pensão social actual­mente fixada nos 32.000$00. Mantêm processos de reclamação de bens, de valores por vezes razoáveis, se for tida em linha de conta a devida correcção monetária que, segundo o INE, será de 19,6 vezes os valores de 1975. E vêem-se forçados a recorrer à cari­dade dos familiares (ou sabe-se lá de quem...). Atendendo o "aviso" que o Estado fez publicar na imprensa há mais de vinte anos, reclamaram os seus bens junto do Instituto para a Cooperação Económica ou do MNE e nem sabem o que é feito dos processos. O Estado português, demonstrando a mais cruel indife­rença, deixa que seja o cemitério a resolver o problema.
Há dias, no Estoril, para fazer o enterro de urna velha e respeitável senhora com largos anos de Ultramar, foi necessário fazer-se uma colecta entre os amigos que a acompanharam à última morada. E quantos casos destes estarão ocor­rendo por este país fora. O que se está passando em Portugal com os espoliados do Ultramar não pode deixar de desacreditar os governantes portugueses até a nível internacional.
CORREIO DA MANHÃ - 1997

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