quarta-feira, 18 de abril de 2012

A Odisseia dos espoliados




O DIA DA PARTIDA

24 de Setembro de 1974. Consegui mandar para o Lobito o meu carro e alguns caixotes com os nossos parcos haveres de valor sentimental e os meus livros, reunidos na nossa vida de trabalho, para serem embarcados para Portugal. Encarregou-se do transporte um camionista mestiço de Nova Lisboa que não quis ir para Portugal porque não tinha lá ninguém.

O ponto de reunião de alguns gabelenses e meus irmãos que estavam na FIL, era a minha casa, para tomarem banho de água quente. Os meus pais estavam comigo, bem como a minha irmã, a cassula da família.

Três dias antes fora levá-los ao aeroporto para apanharem a ponte aérea. Fiquei com uma carrinha Peugeout de um gabelense que também frequentava a minha casa e levei-os também para o aeroporto.

Era cada vez mais difícil passar pelas barreiras da UNITA que, famintos, mandavam parar toda a gente para "roubar" qualquer coisa, nem que fossem só cigarros. Os meus conhecidos do FNLA que, talvez por eu ser natural do Zaire, me protegiam por solidariedade valeram-me muitas vezes contra aqueles energúmenos da UNITA que eram racistas, diga-se o que se disser. Eles é que semearam o medo nos portugueses, pelas ameaças constantes, invasão das casas e barreiras em todos os locais de Nova Lisboa. As situações, por vezes, eram altamente perigosas. O campo de execuções era no Sacaála.

E o exército português, para agravar ainda mais, é que fomentava a nossa fuga "porque não se responsabilizava com o que nos pudesse acontecer".

A "facção Chipenda" é que prestou assinalável serviço de protecção aos portugueses apesar de ter por lá alguns elementos, de última hora, brancos portugueses, que criaram alguns conflitos com outros portugueses. Eram mais papistas do que o papa. Mas também vieram cá parar

Chegou o dia de embarcarmos. Depois do almoço (Tivemos carne até ao último dia e acabamos com a garrafeira do meu irmão Néné), dirigi-me para o aeroporto com as nossas maletas na traseira da carrinha. Consegui passar sem incidentes, mas no aeroporto os populares atropelavam-se para descarregar a carrinha e quando dei por mim já não sabia das maletas. O que vale é que eles queriam apenas uma gorjeta por transportá-las até o barracão onde estavam amontoados os refugiados à espera de transporte para longe daquele pesadelo. A carrinha ficou abandonada na rua. Alguém ficou com ela.

Colchões espalhados pelo chão, muito sujo, pois ninguém se preocupava em limpar, centenas de pessoas à espera, as casas de banho, noutro edifício ao lado, cheias de dejectos, papel e água a correr pelo chão. Estava tudo entupido e os refugiados é que tinham de as desentupir se quisessem ter um pouco de higiene.

Crianças a chorar, algumas de fome, pois a espera era longa para os que foram antes de serem chamados. Tumultos à porta quando a UNITA queria impedir alguém de embarcar, principalmente negros e algumas mestiças que cobiçavam, sobre o olhar dos nossos militares (que por vezes esboçavam umas arremetidas "moles"contra os guerrilheiros) todos desalinhados, fralda de fora, barba por fazer, sem boina na cabeça.

O que valeu a muita gente foi a acção da FLNA que afastava os da UNITA.

Tratei das formalidades e por azar calhou-me um avião da TAP, os "burocratas". Só podia levar 30 quilos e a mala mais pesada que transportava os meus apontamentos, livros técnicos, manuais, relatórios e provas de âmbito profissional que me iriam ajudar em Portugal, tiveram que ficar à espera de uma vaga noutro avião.

Enquanto que nos outros aviões estrangeiros, mandavam entrar todo o mundo com a bagagem que traziam e mandavam parar a um dado momento, na TAP era tudo lentamente e com burocracia e sem um sorriso ou mostra de simpatia por parte dos profissionais daquela companhia. Vim a saber que os aviões têm um dispositivo que vai pesando a carga e quando chegava ao limite seguro o comandante mandava parar. Simples e rápido.

Sentia-me num mundo irreal. Não me saía da cabeça aquelas filas enormes, onduladas, de gente cabisbaixa, olhar receoso, silenciosa, a caminharem pastoreadas pelos controladores para o bojo do avião. Impressionou-me a visão do meu pai, um homem de 1,85 m, com 120 Kg, uma força da natureza, com os ombros caídos a olhar para trás como que a despedir-se da terra que nunca quis abandonar.

Chegou a minha vez.

Ruca

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1 comentário:

Anónimo disse...

Grande parte das profissionais da TAP (hospedeiras), desdenhavam das mulheres portuguesas dizendo cheirar a "bacalhau" por falta de higiene a que estavam sujeitas devido à fuga e a dias no aeroporto sem condições nenhumas.
A muitas valeu-lhes a compreensão das hospedeiras da TAAG, que honra lhes sejam feitas se mostraram muito humanas e tentavam mitigar o sofrimento.

É bom que se saiba a verdade.