MAIS FORTES QUE O DESTINO
A maioria chegou a Portugal com uma certeza: tinham de recomeçar a sua vida do zero. Chamavam-lhes retornados, nome ainda hoje pejorativo. Mas foram eles que acordaram um país dormente, com a alegria trazida de uma África onde começavam a cair tiros de morteiro.
Sempre que ela entrava com uma chávena de chá às tantas da madrugada na sala de reuniões, o fumo de tabaco parecia evaporar-se. O semblante carregado dos ministros que discutiam os destinos da jovem democracia transformava-se num enorme sorriso. “Você parece uma gazela. Ainda vai fazer cair o Governo”, gracejava o primeiro-ministro Mário Soares à exótica moçambicana de 20 anos. Quando passavam por ela nos corredores de São Bento, havia políticos que cantarolavam: ‘Gabrieeela!’. Os longos cabelos, a tez morena e a sua beleza felina faziam de Yolanda uma sósia perfeita de Sónia Braga – a actriz brasileira que brilhava na primeira novela transmitida em Portugal. “Tive sorte. Três anos depois de chegar a Portugal fui trabalhar para o I Governo Constitucional, em 1977. Era uma das secretárias de Soares”, conta.
Yolanda veio da Beira, Moçambique, para um tratamento cardíaco. Com os estilhaços da revolução acabou por ficar. “Havia manifestações por ‘dá cá aquela palha’, papéis por todo o lado, cartazes nas paredes e cuspia-se no chão. Passou-se do 8 para o 80 mas as pessoas pareciam felizes.”
Em São Bento, o ritmo não era menos acelerado. “Ficávamos à noite a dormitar nos corredores à espera de sermos acordadas para redigir um decreto-lei à máquina.” Era por isso que andava sempre acompanhada com uma providente escova de dentes. Yolanda acabaria por trocar a turbulência da política pelos flashes da 'passerelle' e hoje é uma empresária de sucesso. Pelo meio, foi considerada uma das mais elegantes mulheres do País. Mas por mais anos que passem, não consegue esquecer a imagem de dezenas de conterrâneos a descer as escadas dos Boeings do aeroporto da Portela, em 1975. “Foram recebidos com o calor de mantas e bebidas, mas a maioria deles sentia uma enorme insegurança porque tinham de recomeçar a sua vida do zero.”
Entre essa massa anónima de pessoas de destino incerto encontrava-se Ribeiro Cristóvão, a sua mulher e os três filhos menores. “Mantive-me em Angola quase até à independência. Acreditava que apesar das alterações radicais haveria lugar para todos. Enganei-me.” No final de 1975, abandona o seu emprego na cervejeira Cuca (que ainda hoje existe) e a sua casa em Nova Lisboa. “Fui obrigado a viajar para Portugal, espoliado de todos os meus haveres”, desabafa em tom inconformado.
O homem do desporto da Rádio Renascença confessa que os primeiros três meses passados em Lisboa foram os mais difíceis da sua vida. E sem o abrigo na casa da sua irmã em Alcochete, a sua história estaria hoje pintada em tons ainda mais negros. “Recordo-me de calcorrear a cidade à procura de emprego, sem sorte nenhuma. Estava desesperado.”
No primeiro Natal na capital, Ribeiro Cristóvão afundou-se numa tristeza profunda. Ali estava ele, rodeado com a sua família mas com a árvore despida de presentes. “Não tinha nada para dar aos meus filhos.” O rótulo de retornado teimava em fechar-lhe portas. “Havia má vontade entre os portugueses da metrópole que tinham medo que lhes roubássemos os empregos. Andei com este ferrete durante anos.” Um dia, porém, o habitual ‘não’ deu lugar a um surpreendente ‘sim’. A Rádio Renascença abria-lhe portas ao admirável mundo novo do jornalismo.
FUGIR DE TIROS DE MORTEIROS
“Os 500 mil retornados, que representavam 5 por cento da população portuguesa, foram o maior fenómeno de repatriamento da Europa do pós-guerra”, conclui o sociólogo Rui Pena Pires, também ele repatriado de Angola. Dos que regressaram, 33 por cento veio de Moçambique e 61 por cento de Angola.
“Grande parte destas pessoas, que emigraram de Portugal para África nos anos 60, tinham qualificações bastante elevadas.” Pena Pires dá um exemplo: enquanto a taxa de analfabetos era de 30 por cento na metrópole, entre os retornados não ultrapassava os 2 por cento.
“Entre 1974 e 1975, as ex-colónias viram-se desprovidas de quadros administrativos e técnicos qualificados, que foram o motor do desenvolvimento desses países. E Portugal tinha de absorver toda esta gente”, defende o docente. Mas o facto do país atravessar uma convulsão social, veio acabar por facilitar a sua integração. “Chegaram a uma sociedade maleável em termos de hierarquias. Tudo estava em aberto. Em 1976, já havia presidentes de Câmara provenientes das ex-colónias, algo que não aconteceu noutros países da Europa.” Segundo o professor do ISCTE, que publicou um trabalho sobre os retornados, o repatriamento de Angola foi mais célere devido ao clima de guerra civil, bastante pior do que em Moçambique.
Dados que conferem com o relato pormenorizado de Emídio Rangel, jornalista nascido em Lubango em 1946 e uma das vozes da Rádio Comercial de Angola. “A probabilidade de sobreviver ao tiroteio de morteiros, canhões e outras armas de grande calibre dos exércitos do MPLA e UNITA, era baixa. Ainda por cima estava desarmado.”
O risco era enorme mas Rangel não tinha outra saída. Em apenas 48 horas conseguiu fugir de Luanda, sem um beliscão. “Só tinha a roupa que vestia.” A 1 de Setembro de 1975 estava numa Lisboa diferente daquela que já conhecia de outras épocas. “A cidade de conspirações de Marcelo Caetano transformara-se na capital de golpes, contra-golpes e intervenções militares.”
Emídio Rangel não perdeu tempo a contemplar o ambiente de efervescência política. Em dois dias, já vendia enciclopédias para poder ganhar a vida. “Eram em inglês, o que não as tornava muito populares”, ironiza. A sua missão em espalhar cultura porta a porta não durou muito tempo. Meses depois, ficava em segundo lugar num concurso público para a RDP – Radiodifusão Portuguesa. A TSF e a SIC seriam as suas próximas estações.
'MALTA, EU VENHO PARA A PORRADA!'
Lídia Jorge aventurou-se por terras de África antes de 1974. A escritora, natural de Boliqueime, decidiu dar aulas no ensino secundário aos jovens de Moçambique em plena guerra civil. O seu faro apurado detectou logo à chegada um grande mal-estar naquela sociedade que parecia viver à beira do abismo. “Havia algo de trágico e de errado. Tinha a sensação de que bastaria atear-se qualquer coisa para haver uma mudança radical.”
Mudança a que já não assistiu porque teve de abandonar o país em Agosto de 1974. “Por mim, podia ter feito a vida em África”, suspira. Em pleno PREC, assistiu a episódios caricatos, como o de professores ensinarem palavrões aos alunos. “Durante o 11 de Março de 1975, uma colega minha do liceu D. João de Castro, vestida de ‘jeans’ e casaco de cabedal, irrompeu entre os estudantes aos berros: ‘Malta, eu venho para a porrada!’”
Lídia Jorge ainda se recorda com nostalgia da anarquia e alegria extraordinárias. “O aumento da liberdade trouxe consigo a libertinagem.” Corria-se para o cinema para ver filmes pornográficos, antes proibidos pela censura, vestia-se de forma desportiva quando a ocasião era de cerimónia. “As casas de pronto-a-vestir tiveram o seu grande período de crise porque era quase regra aparecer-se pouco arranjado.”
Que o diga Augustus, criador de alta-costura, que aterrou em Lisboa em 1976, proveniente de Luanda, onde vivia e tinha uma das suas lojas de roupa. “Nesse período, a moda era considerado algo de fútil.” Viviam-se os tempos dos intelectuais da revolução, que se vestiam todos de igual, fossem homens ou mulheres: camisolas de gola alta, botas alentejanas e as inseparáveis calças de ganga.
Apesar de vigorar a moda unissexo, António Augusto Ferreira, decidiu arriscar e abrir um ‘atelier’ na capital portuguesa. E não se arrependeu. “A vida social em Lisboa era menos agitada: não havia almoçaradas com amigos, idas à praia ou à discoteca, como em Angola.”
Como trouxera três carros da ex-colónia, não tinha espaço para todos na garagem, na sua casa da Lapa. Resultado: diariamente os vidros do seu vistoso Chevrolet Camaro, eram pintados com a palavra ‘fascista’. Só muito mais tarde é que descobriu o autor das palavras de ordem: “Era apenas um rapaz que andava no liceu. Divertia-se com aquilo ”
DO DESEMPREGO PARA O GOVERNO
Quando a autodeterminação das colónias parecia um facto consumado, Manuel Antunes foi um dos 30 mil portugueses que preferiu rumar para sul e não para a metrópole. O director do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica dos Hospitais da Universidade de Coimbra vivia em Moçambique desde 1954, altura da primeira vaga de emigrantes. “Na escola primária, o meu colega de carteira era negro. E não sentia qualquer tipo de racismo”, lembra o médico, que se insurge contra as mentiras que se têm dito (e escrito) sobre a dita mentalidade colonial dos portugueses. “Nós é que acabámos por ser prejudicados no processo de descolonização.”
A sua família teve de deixar para trás propriedades, moradias e um negócio próspero de construção civil. Em troca? Uma mão cheia de nada. Até 1988, preferiu ficar em África do Sul, onde praticava medicina e só então veio para Coimbra, onde tem desenvolvido uma intensa actividade científica. “Não sobrou nada. Nem o espírito de entreajuda típico dos que viviam em Moçambique. As pessoas acabaram por se dispersar pelas aldeias onde tinham família. Quem não tinha meios ficava em pensões e hotéis em Lisboa.”
António Cardoso e Cunha, nascido em Leiria em 1934, não tem a mesma opinião do médico coimbrão. “A rede de solidariedade entre os retornados foi flagrante, notória e permanente.” Em Angola, o gestor era já uma pessoa influente – como presidente da Câmara de Comércio e membro da Assembleia Legislativa. E nas vésperas da manifestação da ‘Maioria Silenciosa’ (o 28 de Setembro) chegou mesmo a vir a Lisboa com uma delegação de políticos angolanos para reunir com o general Spínola. Eram os anos quentes da transição. “Durante a minha vida em Angola vim regularmente à capital pelo que acompanhei as evoluções da vida nacional”, declara o ex-comissário da Expo’98.
Em 1977, juntou-se ao grupo de repatriados e fixou-se em Portugal. “Mantive actividade pessoal na medida das oportunidades, limitadas pela conjuntura económica. Contudo não perdi a experiência e as capacidades empresariais que desenvolvi em Angola.” Um ano depois, o actual ‘chairman’ da TAP era já nomeado secretário de Estado do Comércio Externo, depois da crise governamental do executivo de Nobre da Costa: “Exemplo curioso da turbulência da época – passei de desempregado a membro do Governo.” Cardoso e Cunha não foi caso isolado. Outros portugueses das ex-colónias haviam de se destacar nos executivos que se seguiram. No jornalismo, na gestão ou na advocacia, os quentes ventos de África também se fizeram sentir. Homens como Vítor Ramalho, Alexandre Relvas, Jorge Armindo, David Borges ou Victor Sá Machado conseguiram fintar o destino. Talvez um dia sejam conhecidos como a geração de ouro dos repatriados.
ANTÓNIO FEIO - REGRESSO ÀS ORIGENS
“Onde é que eu estava no 25 de Abril? Bem, a tentar embarcar no avião para Lisboa.” António Feio, então com 20 anos, vinha de uma 'tournée' com o grupo de Teatro Experimental de Cascais e estava com os colegas em Lourenço Marques. “Percebemos logo que algo de errado se passava na metrópole.” O actor acabou por ser obrigado a ficar mais um mês na sua terra natal, de onde saíra aos sete anos. Durante a juventude viveu sempre com um pé em Lisboa e outro em Lourenço Marques. “Tinha a noção de duas realidades distintas.” Em África, o estilo de vida dos portugueses era mais descontraído. “É tudo muito grande.” António Feio recorda-se de fazer 1200 quilómetros de carro só para jantar com os amigos, com toda a naturalidade. Na capital alfacinha, tudo era mais cáustico e violento, principalmente durante os anos do PREC. “Foi uma época conturbada para o bem e para o mal.” Depois dessa viagem atribulada em 1974, só voltaria a pisar Lourenço Marques quase vinte anos depois. “Não tive desilusões. Já me tinham pintado um cenário demasiado negro.” Do passado guarda uma fotografia a preto-e-branco com uma irmã de Maria Rueff. “Os pais da Maria tomavam conta de um hotel, onde a minha família viveu durante um certo período.”
Hugo Franco
Sempre que ela entrava com uma chávena de chá às tantas da madrugada na sala de reuniões, o fumo de tabaco parecia evaporar-se. O semblante carregado dos ministros que discutiam os destinos da jovem democracia transformava-se num enorme sorriso. “Você parece uma gazela. Ainda vai fazer cair o Governo”, gracejava o primeiro-ministro Mário Soares à exótica moçambicana de 20 anos. Quando passavam por ela nos corredores de São Bento, havia políticos que cantarolavam: ‘Gabrieeela!’. Os longos cabelos, a tez morena e a sua beleza felina faziam de Yolanda uma sósia perfeita de Sónia Braga – a actriz brasileira que brilhava na primeira novela transmitida em Portugal. “Tive sorte. Três anos depois de chegar a Portugal fui trabalhar para o I Governo Constitucional, em 1977. Era uma das secretárias de Soares”, conta.
Yolanda veio da Beira, Moçambique, para um tratamento cardíaco. Com os estilhaços da revolução acabou por ficar. “Havia manifestações por ‘dá cá aquela palha’, papéis por todo o lado, cartazes nas paredes e cuspia-se no chão. Passou-se do 8 para o 80 mas as pessoas pareciam felizes.”
Em São Bento, o ritmo não era menos acelerado. “Ficávamos à noite a dormitar nos corredores à espera de sermos acordadas para redigir um decreto-lei à máquina.” Era por isso que andava sempre acompanhada com uma providente escova de dentes. Yolanda acabaria por trocar a turbulência da política pelos flashes da 'passerelle' e hoje é uma empresária de sucesso. Pelo meio, foi considerada uma das mais elegantes mulheres do País. Mas por mais anos que passem, não consegue esquecer a imagem de dezenas de conterrâneos a descer as escadas dos Boeings do aeroporto da Portela, em 1975. “Foram recebidos com o calor de mantas e bebidas, mas a maioria deles sentia uma enorme insegurança porque tinham de recomeçar a sua vida do zero.”
Entre essa massa anónima de pessoas de destino incerto encontrava-se Ribeiro Cristóvão, a sua mulher e os três filhos menores. “Mantive-me em Angola quase até à independência. Acreditava que apesar das alterações radicais haveria lugar para todos. Enganei-me.” No final de 1975, abandona o seu emprego na cervejeira Cuca (que ainda hoje existe) e a sua casa em Nova Lisboa. “Fui obrigado a viajar para Portugal, espoliado de todos os meus haveres”, desabafa em tom inconformado.
O homem do desporto da Rádio Renascença confessa que os primeiros três meses passados em Lisboa foram os mais difíceis da sua vida. E sem o abrigo na casa da sua irmã em Alcochete, a sua história estaria hoje pintada em tons ainda mais negros. “Recordo-me de calcorrear a cidade à procura de emprego, sem sorte nenhuma. Estava desesperado.”
No primeiro Natal na capital, Ribeiro Cristóvão afundou-se numa tristeza profunda. Ali estava ele, rodeado com a sua família mas com a árvore despida de presentes. “Não tinha nada para dar aos meus filhos.” O rótulo de retornado teimava em fechar-lhe portas. “Havia má vontade entre os portugueses da metrópole que tinham medo que lhes roubássemos os empregos. Andei com este ferrete durante anos.” Um dia, porém, o habitual ‘não’ deu lugar a um surpreendente ‘sim’. A Rádio Renascença abria-lhe portas ao admirável mundo novo do jornalismo.
FUGIR DE TIROS DE MORTEIROS
“Os 500 mil retornados, que representavam 5 por cento da população portuguesa, foram o maior fenómeno de repatriamento da Europa do pós-guerra”, conclui o sociólogo Rui Pena Pires, também ele repatriado de Angola. Dos que regressaram, 33 por cento veio de Moçambique e 61 por cento de Angola.
“Grande parte destas pessoas, que emigraram de Portugal para África nos anos 60, tinham qualificações bastante elevadas.” Pena Pires dá um exemplo: enquanto a taxa de analfabetos era de 30 por cento na metrópole, entre os retornados não ultrapassava os 2 por cento.
“Entre 1974 e 1975, as ex-colónias viram-se desprovidas de quadros administrativos e técnicos qualificados, que foram o motor do desenvolvimento desses países. E Portugal tinha de absorver toda esta gente”, defende o docente. Mas o facto do país atravessar uma convulsão social, veio acabar por facilitar a sua integração. “Chegaram a uma sociedade maleável em termos de hierarquias. Tudo estava em aberto. Em 1976, já havia presidentes de Câmara provenientes das ex-colónias, algo que não aconteceu noutros países da Europa.” Segundo o professor do ISCTE, que publicou um trabalho sobre os retornados, o repatriamento de Angola foi mais célere devido ao clima de guerra civil, bastante pior do que em Moçambique.
Dados que conferem com o relato pormenorizado de Emídio Rangel, jornalista nascido em Lubango em 1946 e uma das vozes da Rádio Comercial de Angola. “A probabilidade de sobreviver ao tiroteio de morteiros, canhões e outras armas de grande calibre dos exércitos do MPLA e UNITA, era baixa. Ainda por cima estava desarmado.”
O risco era enorme mas Rangel não tinha outra saída. Em apenas 48 horas conseguiu fugir de Luanda, sem um beliscão. “Só tinha a roupa que vestia.” A 1 de Setembro de 1975 estava numa Lisboa diferente daquela que já conhecia de outras épocas. “A cidade de conspirações de Marcelo Caetano transformara-se na capital de golpes, contra-golpes e intervenções militares.”
Emídio Rangel não perdeu tempo a contemplar o ambiente de efervescência política. Em dois dias, já vendia enciclopédias para poder ganhar a vida. “Eram em inglês, o que não as tornava muito populares”, ironiza. A sua missão em espalhar cultura porta a porta não durou muito tempo. Meses depois, ficava em segundo lugar num concurso público para a RDP – Radiodifusão Portuguesa. A TSF e a SIC seriam as suas próximas estações.
'MALTA, EU VENHO PARA A PORRADA!'
Lídia Jorge aventurou-se por terras de África antes de 1974. A escritora, natural de Boliqueime, decidiu dar aulas no ensino secundário aos jovens de Moçambique em plena guerra civil. O seu faro apurado detectou logo à chegada um grande mal-estar naquela sociedade que parecia viver à beira do abismo. “Havia algo de trágico e de errado. Tinha a sensação de que bastaria atear-se qualquer coisa para haver uma mudança radical.”
Mudança a que já não assistiu porque teve de abandonar o país em Agosto de 1974. “Por mim, podia ter feito a vida em África”, suspira. Em pleno PREC, assistiu a episódios caricatos, como o de professores ensinarem palavrões aos alunos. “Durante o 11 de Março de 1975, uma colega minha do liceu D. João de Castro, vestida de ‘jeans’ e casaco de cabedal, irrompeu entre os estudantes aos berros: ‘Malta, eu venho para a porrada!’”
Lídia Jorge ainda se recorda com nostalgia da anarquia e alegria extraordinárias. “O aumento da liberdade trouxe consigo a libertinagem.” Corria-se para o cinema para ver filmes pornográficos, antes proibidos pela censura, vestia-se de forma desportiva quando a ocasião era de cerimónia. “As casas de pronto-a-vestir tiveram o seu grande período de crise porque era quase regra aparecer-se pouco arranjado.”
Que o diga Augustus, criador de alta-costura, que aterrou em Lisboa em 1976, proveniente de Luanda, onde vivia e tinha uma das suas lojas de roupa. “Nesse período, a moda era considerado algo de fútil.” Viviam-se os tempos dos intelectuais da revolução, que se vestiam todos de igual, fossem homens ou mulheres: camisolas de gola alta, botas alentejanas e as inseparáveis calças de ganga.
Apesar de vigorar a moda unissexo, António Augusto Ferreira, decidiu arriscar e abrir um ‘atelier’ na capital portuguesa. E não se arrependeu. “A vida social em Lisboa era menos agitada: não havia almoçaradas com amigos, idas à praia ou à discoteca, como em Angola.”
Como trouxera três carros da ex-colónia, não tinha espaço para todos na garagem, na sua casa da Lapa. Resultado: diariamente os vidros do seu vistoso Chevrolet Camaro, eram pintados com a palavra ‘fascista’. Só muito mais tarde é que descobriu o autor das palavras de ordem: “Era apenas um rapaz que andava no liceu. Divertia-se com aquilo ”
DO DESEMPREGO PARA O GOVERNO
Quando a autodeterminação das colónias parecia um facto consumado, Manuel Antunes foi um dos 30 mil portugueses que preferiu rumar para sul e não para a metrópole. O director do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica dos Hospitais da Universidade de Coimbra vivia em Moçambique desde 1954, altura da primeira vaga de emigrantes. “Na escola primária, o meu colega de carteira era negro. E não sentia qualquer tipo de racismo”, lembra o médico, que se insurge contra as mentiras que se têm dito (e escrito) sobre a dita mentalidade colonial dos portugueses. “Nós é que acabámos por ser prejudicados no processo de descolonização.”
A sua família teve de deixar para trás propriedades, moradias e um negócio próspero de construção civil. Em troca? Uma mão cheia de nada. Até 1988, preferiu ficar em África do Sul, onde praticava medicina e só então veio para Coimbra, onde tem desenvolvido uma intensa actividade científica. “Não sobrou nada. Nem o espírito de entreajuda típico dos que viviam em Moçambique. As pessoas acabaram por se dispersar pelas aldeias onde tinham família. Quem não tinha meios ficava em pensões e hotéis em Lisboa.”
António Cardoso e Cunha, nascido em Leiria em 1934, não tem a mesma opinião do médico coimbrão. “A rede de solidariedade entre os retornados foi flagrante, notória e permanente.” Em Angola, o gestor era já uma pessoa influente – como presidente da Câmara de Comércio e membro da Assembleia Legislativa. E nas vésperas da manifestação da ‘Maioria Silenciosa’ (o 28 de Setembro) chegou mesmo a vir a Lisboa com uma delegação de políticos angolanos para reunir com o general Spínola. Eram os anos quentes da transição. “Durante a minha vida em Angola vim regularmente à capital pelo que acompanhei as evoluções da vida nacional”, declara o ex-comissário da Expo’98.
Em 1977, juntou-se ao grupo de repatriados e fixou-se em Portugal. “Mantive actividade pessoal na medida das oportunidades, limitadas pela conjuntura económica. Contudo não perdi a experiência e as capacidades empresariais que desenvolvi em Angola.” Um ano depois, o actual ‘chairman’ da TAP era já nomeado secretário de Estado do Comércio Externo, depois da crise governamental do executivo de Nobre da Costa: “Exemplo curioso da turbulência da época – passei de desempregado a membro do Governo.” Cardoso e Cunha não foi caso isolado. Outros portugueses das ex-colónias haviam de se destacar nos executivos que se seguiram. No jornalismo, na gestão ou na advocacia, os quentes ventos de África também se fizeram sentir. Homens como Vítor Ramalho, Alexandre Relvas, Jorge Armindo, David Borges ou Victor Sá Machado conseguiram fintar o destino. Talvez um dia sejam conhecidos como a geração de ouro dos repatriados.
ANTÓNIO FEIO - REGRESSO ÀS ORIGENS
“Onde é que eu estava no 25 de Abril? Bem, a tentar embarcar no avião para Lisboa.” António Feio, então com 20 anos, vinha de uma 'tournée' com o grupo de Teatro Experimental de Cascais e estava com os colegas em Lourenço Marques. “Percebemos logo que algo de errado se passava na metrópole.” O actor acabou por ser obrigado a ficar mais um mês na sua terra natal, de onde saíra aos sete anos. Durante a juventude viveu sempre com um pé em Lisboa e outro em Lourenço Marques. “Tinha a noção de duas realidades distintas.” Em África, o estilo de vida dos portugueses era mais descontraído. “É tudo muito grande.” António Feio recorda-se de fazer 1200 quilómetros de carro só para jantar com os amigos, com toda a naturalidade. Na capital alfacinha, tudo era mais cáustico e violento, principalmente durante os anos do PREC. “Foi uma época conturbada para o bem e para o mal.” Depois dessa viagem atribulada em 1974, só voltaria a pisar Lourenço Marques quase vinte anos depois. “Não tive desilusões. Já me tinham pintado um cenário demasiado negro.” Do passado guarda uma fotografia a preto-e-branco com uma irmã de Maria Rueff. “Os pais da Maria tomavam conta de um hotel, onde a minha família viveu durante um certo período.”
Hugo Franco
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