segunda-feira, 4 de julho de 2011

ADEUS ANGOLA NOSSA: FUGA DO LUBANGO (1975)


Às seis horas do dia seis de Setembro – sábado – em caravana de umas 300 viaturas, escoltada por 30 militares, arrancamos do Lubango rumo à África do Sul. Percorridos 380 km, sem problemas, às 17 horas atravessamos a fronteira de Santa Clara. Aguardava-nos um grupo de militares sul-africanos com colchões, cobertores, alimentos em conserva, água, refrigerantes e, até, uns cubos combustíveis para amornar os enlatados. Pernoitamos ao relento. Não fazia frio.

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Às onze horas do dia seguinte – com feijão ao lume para o almoço – chega uma ordem de partida para Oshakati. Todas as viaturas foram reabastecidas (de graça) até à boca. A deslocação durou umas duas horas. Em Oshakati fomos “instalados” num campo próximo do hospital missionário, preparado para a situação, com algumas tendas, água encanada, latrinas e balneários. Com lenha à mão, o feijão volta ao lume. Cozido e apurado, foi servido como almoço/jantar.
No dia seguinte, de manhã, as autoridades, por altifalante, ordenam a formação em fila para registo dos refugiados e vacinação. Terminadas estas formalidades as autoridades solicitam – sob aviso de inspeção – a entrega de armas, drogas e literatura pornográfica; e diamantes a enviarem para classificação em Pretória e posterior pagamento de oitenta por cento do seu valor. Aos portadores de café, se desejassem vendê-lo, ser-lhes-ia passado um salvo-conduto para todo território sul-africano. Por fim foi-nos dada liberdade para exposição e venda (sem encargos) dos artigos que conseguimos transportar (salvados!).
Ali vendemos duas viaturas, uma moto, frigoríficos, máquinas de costura, fogões, louças, porcelanas, talheres e mais artigos. Tudo por um quinto dos justos valores.
Na tarde do dia nove somos avisados da partida no dia seguinte para o campo de Grootfontein, a 300 km.
A nosso pedido, por conveniência – em troca de umas garrafas de whisky – foi-nos permitido permanecer mais um dia no campo. Assim, o nosso grupo, agora em quatro viaturas, partiu isolado. Eram onze horas – onze de Setembro de 1975. Percorridos uns 100 km parte-se o veio da bomba de injecção da Bedford, sendo levada a reboque. Obrigados a marcha vagarosa passamos a noite, ao relento, em Tsumeb. Alcançamos o campo de Grootfontein às catorze horas do dia doze.
Ficamos todos alojados em tendas militares, com colchões e cobertores de sobra. Existiam balneários e latrinas suficientes, apesar dos estragos causados, por malvadez, pela leva – mais numerosa – que nos antecedeu.

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Campo de refugiados em Groodfontein
Funcionava um serviço de pequeno-almoço e almoço. Porque era sempre a mesma “ementa” (carne de vaca com ervilhas) e mal confeccionada, passamos à cozinha própria, até para consumir a grande quantidade de provisões levadas de Angola.
Em tenda própria funcionava um serviço de assistência médica prestada pelo Dr. David Parson, filho do já referido Dr. Parson do hospital do Bongo.
Cerca de uma semana após a nossa chegada ao campo, o nosso grupo divide-se: Camilo, Adelaide, sete filhos com idades entre um e treze anos, em transporte rodoviário ocasional, partem para Windhoek; e dali, de comboio, até Johanesburgo munidos das passagens de avião, compradas em Angola, com destino ao Brasil.
Nos finais de Setembro o Dr. David anuncia a possibilidade de emigração dos refugiados no campo para os E.U.A., com transporte aéreo gratuito, através de uma instituição americana. Só seriam aceites inscrições de pessoas com os passaportes válidos.
A notícia despertou certa euforia. Como nem todos possuíam passaporte, por solicitação dirigida ao Cônsul de Portugal em Windhoek, este fez deslocar um funcionário ao campo a fim de formalizar a emissão dos passaportes. O meu, tem o número 278/75; o da Lucília, 282/75, emitidos em 3 de Outubro de 1975, assinados pelo Cônsul Carlos E. de Sousa Aragão.
Tantas voltas para nada. Efectuou-se apenas um voo. Explicações: insuficiência de fundos!...

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Grootfontein. – Sítio árido, sol escaldante. Foi ali, numa tarde da primeira quinzena de Outubro, por carta de Maria Andrade para a Amélia, por intermédio duma prima em Lisboa, chegou a dolorosa notícia do falecimento do Pai, Avô, Bisavô, Irmão, Sogro aos que, uns dias atrás, o haviam visitado em sinal de despedida, agora tão distantes!

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Campo de refugiados em Groodfontein
Os dias foram passando. Monótonos. Tórridos de sol a sol; frios durante a noite. No exterior da vedação mais de uma centena de vários tipos de viaturas estacionadas. Umas com as cargas de origem; outras vazias. No campo de Windhoek a situação era idêntica. Os seus proprietários – alguns já em Portugal – a vende-las por valores humilhantes preferiram abandona-las.
As autoridades sul-africanas não prometiam o embarque destas para Portugal; e da parte do governo português, nem sinais. Assim, a aproximar-se a hora da nossa “repatriação”, acabamos por “vender” as quatro viaturas por cerca de 50 contos. E, por muito favor, l000 litros de combustível e 500 de óleo por 5 contos.
De pasmar: nas vésperas da devolução do campo todas as viaturas abandonadas foram recolhidas para um recinto vedado; e no decorrer de 1976, tal como haviam sido abandonadas, despachadas para Portugal e entregues aos seus donos.
No dia 22 de Outubro é anunciada a nossa partida. Nessa noite, militares e alguns residentes da cidade, honraram-nos com uma festa de despedida, no recinto de jogos desportivos, com grupo musical.
No dia 23, os nossos pertences, devidamente rotulados, são transportados para a estação do comboio; e, de seguida, as pessoas: acomodadas, por agregado, em cabines com beliches de acordo com o número de indivíduos. Coube-nos a cabina 21, onde encontramos latas de conservas, fruta natural e bebidas. Ao meio-dia em ponto, ouve-se o silvar do comboio. Em toda a sua extensão, o acenar de muita gente, entre esta um Padre a dar-nos a sua bênção. Bem – hajam! Adeus Grootfontein!

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Partida do campo de refugiados de Groodfontein para a estação de comboios.

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Os poucos que ficaram no campo – entre estes o Zeca, Amélia e filhas – foram enviados para Johanesburgo, e dali, de avião, para Portugal.
Cerca das l7 horas o comboio pára na estação de Otchivarongo, para atrelagem doutras carruagens com mais gente proveniente do campo de Windhoek. Retomada a marcha, sem paragens, às 8 horas do dia 24, ouve-se o chiar dos travões a anunciar o fim da viagem e da linha-férrea. Estávamos no porto de Walvis Bay.
Sob denso nevoeiro, 1500 (?) desafortunados, em fila, vão sendo transferidos para bordo dum navio de cruzeiro, fretado pela África do Sul. A operação, cuidadosamente controlada pelas duas partes – autoridade sul-africana e tripulação do navio –, demorou umas duas horas. Foi respeitada a atribuição de camarotes e beliches de acordo com a praticada no comboio. Calhou-nos o camarote 21. Foi servido almoço e jantar no navio, ainda ancorado.

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Dormimos bem. Seriam seis horas, dia 25, quando nos apercebemos que o “Oceanic”, de Taiwan, já havia levantado ferro. Cumpria a sua terceira e última viagem: numa missão sem nome.
ADEUS ÁFRICA!

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Oceanic Independence, o navio que nos trouxe para Portugal.
 
A bordo, em gabinete adequado ao seu trabalho, encontrava-se uma funcionária do Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais – IARN, de nome Lígia. A sua missão consistia no contacto com as famílias nucleares e indivíduos solitários – constantes da relação em sua posse – para efeitos, se necessário, de alojamento em Portugal.
Às 8 horas da manhã do dia 7 de Novembro o majestoso transatlântico “Oceanic” entra na barra do Tejo. Às l0 horas atraca no Cais da Rocha, Lisboa. É colocada a escada para o desembarque. Mas tal não acontece. A “mando”duma comissão, previamente constituída – apoiada por todos –, o desembarque só teria lugar mediante a troca dos escudos “coloniais” por escudos portugueses. O refeitório, servido o pequeno-almoço, foi encerrado. Mesmo num entra e sai da funcionária do IARN para atender à situação, manteve-se o impasse. Ante tal momento, foram distribuídas latas de feijão, fruta e leite.

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Às 22 horas é anunciada a troca da moeda, no aeroporto. As deslocações seriam de autocarro, em grupos de 30: cabeças dos agregados familiares e solitários. Em qualquer das situações, a troca era de 5.000$00 apenas! Atendidos os dois primeiros grupos – dos quais fiz parte – as operações foram suspensas.
No aeroporto, pelo mesmo motivo, assistia-se a uma situação confrangedora: na zona das chegadas, gente deitada no chão, enquanto os mais fortes, revoltados, mantinham-se firmes.

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No dia 8 foram distribuídas pelo IARN senhas individuais de almoço, servidos pelos restaurantes próximos do cais.
Com a tripulação do navio a dar sinais de impaciência, a meio da tarde os passageiros espalham-se pelas varandas e convés com gestos de manifesto protesto. Depois dum constante sobe e desce, é retomada a troca de moeda no aeroporto. A comissão recusa mais deslocações. Exige que a operação fosse efectuada no navio. Quase de imediato entram dois “bancários”, com suas maletas, acompanhados por funcionários do IARN. Terminadas as transações, o pessoal abandona o navio. E, de seguida, descarregadas as bagagens, atiradas brutalmente para o chão pelos malvados estivadores.

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De rol nas mãos, os funcionários do IARN fazem a chamada e em simultâneo a separação em grupos – de antemão selecionados – para diversos locais de alojamento. Calhou-nos o Grande Hotel da Figueira da Foz. Onde, acompanhados pela S.ª Lígia, chegamos já próximo da meia-noite. Distribuídos os quartos – coube-nos o 421 –, mesmo àquela hora tardia, foi-nos servida, nos aposentos, uma merenda.

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Desgraça nossa: estávamos em Portugal; num Portugal sem rei nem roque… Em Angola, éramos cidadãos portugueses; da fronteira de Santa Clara ao porto de Walvis Bay, refugiados portugueses; em Portugal, apátridas! Os Bilhetes de Identidade de Cidadão Nacional, encimados com a distinção “R E P Ú B L I C A P O R T U G U E S A” passaram a imprestáveis; nem sequer aceites para transcrição e posterior emissão dum novo B.I. de Cidadão Nacional. Para o efeito, era exigida a certidão de nascimento e a dum ascendente português constante na certidão. Em certos casos difícil e noutros impossíveis de satisfazer: daí o arrastar dos processos durante muitos anos e, até, esquecidos!
Do execrável e enganoso Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais – covil de ladrões – só a palavra retorno produziu efeito: enriqueceu o vocabulário com o douto adjetivo:
RETORNADO!...
Texto de Jorge da Conceição Rodrigues

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Ver também:
Angola o meu regresso
«A incompreensão do presente nasce fatalmente
da ignorância do passado".
Marc Bloch
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