A “OBSTINADA ARMADA”
Ou como os portugueses, que partiram em caravelas à descoberta do mundo, regressaram das terras africanas em traineiras
… Decorria o mês de Agosto de 1975. O Governo Provisório de Angola estava em funções. O Processo Revolucionário Em Curso (PREC) funcionava bem, tanto na Metrópole como em Angola. Os Movimentos Políticos Angolanos estavam instalados em Luanda e, tal como na Mãe Pátria, os revolucionários aproveitavam-se do que havia à mão, mesmo que os espoliados fossem trabalhadores que tivessem adquirido os bens que possuíam com o esforço do seu trabalho, e com os tostões contados até ao último centavo.
O som mais audível em Luanda era o pregar de caixotes, em que os chamados ‘retornados’ guardavam as suas parcas fazendas, e o fuzilar das armas dos movimentos políticos angolanos, que se bombardeavam de delegação para delegação. A conjuntura era dissuasora para os portugueses, de cultura europeia, continuarem em Angola.
Tinha adquirido um arrastão costeiro chamado ‘Preia-Mar’, poucos meses antes do 25 de Abril, com outros sócios. Face ao PREC, resolvemos pôr a salvo os nossos bens móveis, porque os imóveis obviamente eram impossíveis de deslocar. Começámos a congeminar a nossa fuga para Portugal numa traineira, e iniciámos a aquisição na Manutenção Militar de vários bidões de óleo alimentar vazios, que depois de bem lavados começaram a ser introduzidos no porão do ‘Preia-Mar’, de 55 m3. A intenção era servirem de lastro e, simultaneamente, de reserva de combustível, porque os tanques próprios só comportavam 15 mil litros, claramente insuficientes para uma viagem sem escala até Portugal, como estava previsto.
Tudo foi feito em sigilo, o mais rapidamente possível, para nada constar. O abastecimento era feito nos locais próprios, nessa altura já guardados por soldados do Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA). Seria eu o comandante da expedição, e o único que sabia navegar em alto mar.
A frota da aventura
No dia aprazado para a fuga, pedi para gozar o meu mês de licença anual em Portugal, com o pretexto de ir em tratamento. Tirei bilhete de ida e volta com OK, num avião da TAP que partia cerca da meia-noite. Em vez de embarcar no avião, à mesma hora estava a embarcar no ‘Preia-Mar’. Tudo tinha sido previsto, e o arrastão já tinha tirado licença na Capitania do Porto de Luanda para ir a Benguela comprar apetrechos marítimos, para justificar a sua partida caso fosse interceptado por um barco patrulha, à saída do porto.
O nosso destino, de luzes apagadas depois de sairmos a barra, foi 15 milhas a NW do Ambriz, zona então controlada pela Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA). Era ali que devíamos encontrar-nos de manhã cedo, com outras embarcações que também tinham planeado a fuga. A frota prevista era de quatro embarcações, mas à última hora juntaram-se mais duas, que tinham projectado a sua viagem para Portugal com base numas poucas lições de navegação ministradas por um comandante de um navio da Companhia de Transportes Marítimos (CTM), na época fundeado na baía de Luanda. Estas lições consistiam em navegar a determinado rumo até encontrar terra (a Costa do Marfim), depois, através da sonda e segundo rumos que tinham sido previamente marcados numa carta, seguiriam para Portugal contornando o continente Africano.
No dia da partida, a frota era composta pelo “Preia- Mar”, de 24 m Lpp, tripulada por mim, pelo mestre Nunes, já falecido, e os motoristas Manuel e Carlos, este último também já falecido; pela “Vilamoura”, de15 m Lpp, tripulada pelo seu proprietário, mestre Manuel Rocheta, também sócio do “Preia-Mar”, e por Manuel; pela “Gavião dos Mares”, de16 m Lpp, tripulada pelo seu proprietário, mestre Luís Rocha, também sócio do “Preia-Mar”, e os seus muito jovens filhos Tony e Luís Manuel; pela “Quatro Irmãs”, de 22 m Lpp, tripulada pelo mestre Sebastião, José Fuzeta e Vítor; pela “Mártir S. Sebastião”, de 15 m Lpp, tripulada pelo mestre Manuel das Caixas e Fazenda; e pela “Henrique Eduardo”, de 15 m Lpp, tripulada pelo mestre Vítor e Domingos. Estas duas últimas embarcações juntaram-se a nós à última hora.
Rumo à Metrópole
Quando partimos de Luanda por volta das 02:00, ainda o mestre Luís e os seus dois filhos estavam a carregar os últimos apetrechos para bordo da “Gavião dos Mares”, além dos mantimentos que iriam ser distribuídos pelo “Preia-Mar”. Chegámos ao local do encontro por volta das 07:30, e passadas duas horas o “Gavião dos Mares” não havia maneira de chegar. Foi o tempo suficiente para que o mestre Nunes tivesse retirado da sua embarcação, de 9 metros de comprimento, os apetrechos de pesca, desmontasse o seu motor de 80 h.p. e os embarcasse no “Preia-Mar”, para em seguida abrir a vávula de fundo e deixar afundar a sua forma de ganhar a vida. E aquele era o fruto de uma vida de trabalho, em Moçambique e ultimamente também em Angola, no Cacuaco, onde a pesca do camarão era o seu sustento e o da sua família.
Nunca mais esqueci aquela cena, com mestre Nunes a deixar rolar, pela sua face tisnada pelo sol e pelo sal, uma lágrima de adeus a um sonho e a um ser. Nos seus olhos vi todo o mar salgado que acompanhou o seu mister de pescador desde a infância. Afundaram-se ali muitos anos, muito esforço e muitos sonhos.
Aproveitei o tempo de espera para fixar a bitácula da agulha padrão, na boca do porão do “Preia-Mar”, com patarrazes e esticadores. Era o local mais adequado e desimpedido, para ter acesso ao sol ou a outros astros. E aproveitei ainda para dar umas voltas, por BB e EB, para uma compensação expedita através de marcações ao sol.
‘Gavião dos Mares’ à vista
O atraso do “Gavião dos Mares” começou a gerar alguma inquietação e o pânico prometia instalar-se. A "Mártir S. Sebastião” e a “Henrique Eduardo”, com receio de serem interceptadas, tomaram a decisão de prosseguir viagem, confiados na sua ciência náutica, bebida a bordo do tal navio da CTM, fundeado em Luanda. Como nunca acreditei que aquele expediente os levasse a bom porto, recomendei-lhes que sempre que alterassem o rumo registassem o dia e a hora, para uma eventual ajuda que eu pudesse vir a dispensar. Entretanto, eu próprio anotei o rumo deles, a hora de partida e o momento em que desapareceram no horizonte. Tinha, assim, alguns elementos que podiam ajudar na determinação do chamado ponto de fantasia – o ponto estimado dos nossos primeiros navegadores. Muitas vezes, nos idos do século passado (e estou a reportar-me a quatro décadas atrás, recordando que estamos já no século XXI), este ponto de fantasia era usado como a única maneira de determinar a posição quando o céu se apresentava encoberto. Mais, era usado tanto a bordo dos melhores paquetes da época, como em navios de carga geral, onde embarquei; era usado ao largo da Sierra Leoa até ao Cabo Palmas, acompanhado de azimutes radiogoniométricos que se cruzavam às vezes em polígnos de tamanho da palma de uma mão. Ainda estava para chegar o GPS e os RADARES desse tempo eram de ouvir.
Cerca das 11:00, quando já estávamos decididos a partir sem o mestre Luís, aparece no horizonte a silhueta de uma traineira que viria a ser a “Gavião dos Mares”. Mesmo com o atraso, o mestre tinha partido da praia sem a sua carga principal: os mantimentos. Ficaram em terra por desconfiança de um africano, que os abordou a pedir peixe. Quando lhe responderam que não tinham, porque estavam a preparar-se para ir para o mar, logo o africano puxou de um walkie-talkie e começou a comunicar. O receio de se tratar de um informador foi razão suficiente para saltarem para a traineira e toca a andar que se faz tarde, deixando na areia alguns mantimentos que muita falta nos fariam uns dias depois.
Traineiras perdidas
Iniciámos a nossa viagem rumo ao Cabo Palmas. Passados dois dias, as duas traineiras que tinham partido por sua conta e risco estavam a entrar em contacto via rádio, dizendo que só viam céu e mar. Não sabiam onde estavam e a única indicação que deram foi a de que tinha passado por eles um navio tanque de chaminé vermelha, que seguia a determinado rumo.
Reconstituí a rota deles, através do tal ponto de fantasia. Corrigi os seus rumos e aproei-os ao farol de Kablake. Deixei-os navegar até avistarem o clarão do farol, em cuja direcção tinha soltado os seus rumos, recomendando que me avisassem logo que o clarão aparecesse. Entretanto, com o auxílio de um lápis que colocavam no centro da agulha de governo, para servir de mira, iam-me dizendo por quanto estava o sol ou a lua: era a maneira para determinar os desvios das suas agulhas.
Finalmente, apareceu a luz de um farol. Pela contagem dos flashes, verifiquei que era realmente o farol pretendido. Estava determinada a posição deles, com alguma precisão. Foram, então, seguindo as minhas instruções quanto a rumos e marcações de TRAUB. E eu corrigi a minha velocidade, de modo a fazer a devida cinemática para o encontro no Cabo Palmas.
O encontro deu-se à noite, pelas 02:00 do dia 19 de Setembro de 1975, ao largo do Cabo Palmas, no meio de muito tráfego marítimo. Quando verifiquei que estavam no meu horizonte, disse-lhes que acendessem e apagassem as luzes, marquei-os com a minha agulha e recomendei que navegassem ao rumo oposto. Estava outra vez reunida a “obstinada armada”, constituída pelas seis traineiras.
Num mar de fome, e ‘alfaiates’
Ao largo do Cabo Palmas, de provisões de boca (designação pomposa e dialética) só havia atum em conserva, massa e arroz. O bacalhau já tinha sido devorado. As galinhas tinham morrido dois dias depois de partirmos, e os nossos mantimentos tinham sido deixados na praia da Ilha de Luanda. Pedimos a uma embarcação, que pescava nas imediações, comandada por um europeu e com restante tripulação africana, que nos desse algum peixe. Dois baldes de peixinhos muito pequenos foram distribuídos por todas as traineiras. Ao sul da bóia de St. Ann, frente à ilha de Sherbro, na Sierra Leoa, a 15 milhas de terra e em 32 bb, lançámos à água uma pequena rede de arrasto, arrastando furtivamente. Tivemos pouca sorte e conseguimos somente meia dúzia de peixes, o que não deu para nada. Com receio de sermos apanhados resolvemos prosseguir viagem. Aproveitámos para ceder gasóleo, que já começava a escassear, ao ‘Gavião dos Mares’. Atirámos para o mar dezasseis bidões, lingados um a um, que depois foram içados para bordo daquela traineira por cabo vaivém. Não pude permitir que encostassem, apesar do mar estar raso, com receio de uma colisão e consequente àgua aberta, que seria uma fatalidade. Um dos bidões escapou-se do estropo, e o filho mais velho do mestre Luís Rocha, o jovem Tony que ainda não tinha 20 anos, atirou-se à água para voltar a lingá-lo, sem pensar que aquela zona era habitat de ‘alfaiates’ (tubarões). Tratei de avisá-lo imediatamente, mas para ele o bidão de gasóleo era mais importante.
Continua no próximo número...
Joaquim Bertrão Saltão
Capitão da Marinha Mercante
8 comentários:
Para os interessados, um excelente livro acabado de sair, para conhecer o processo de saída de Angola em 1975:
SOS Angola - Os dias da Ponte Aérea
Links:
http://www.facebook.com/pages/SOS-Angola-Os-Dias-da-Ponte-A%C3%A9rea/189205341148393
http://www.dn.pt/cartaz/livros/interior.aspx?content_id=1970604
Sou um dos sobreviventes da fuga, em 1975, de Angola para Portugal em traineira.
No meu livro " NA ROTA DE DIOGO CÃO" conto como 6 homens e 7 cães (reserva alimentar!!!) conseguiram descobrir Portugal após 24 dias de mar.
Se o desejar entre em contacto:
joaquimdelisboa@gmail.com
Em Angola como outros Paises Africanos a sua beleza contagia qualquer um, pena que os seus governantes pensem apenas neles e nao nos seus povos..
Angola e muito bonita, pena que os seus governantes nao olhem pelo seu povo..
Angola=Saudade.
Angola=Saudade.
O Preia Mar veio para Sesimbra onde passou a chamar-se Juventude Sesimbrense, na mesma altura veio de Angola o Mil Dias e o Pedra Alta.
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