Álvaro Faustino
da «Cozinha» homenageado pelo Município de PortimãoSábado, 16 de Janeiro de 2009 (in ALGARVE MAIS)
Nascido e criado em Angola, esta é a história de um homem que cedo dominou o ofício do comércio. Com um supermercado aberto mal conheceu a idade adulta, Álvaro Faustino viveu o período da guerra colonial e da independência de Angola.
Veio para Portugal como refugiado com uma mão à frente e outra atrás das costas e assentou arraiais em Portimão, onde construiu uma carreira de sucesso e continua, aos 71 anos, cheio de força ao leme dos negócios.
Álvaro Gomes Faustino nasceu em Porto Alexandre, no sul de Angola, já lá vão 71 primaveras, no seio de uma família maravilhosa em que o pai era marítimo. Concluída a quarta classe, começa de imediato a trabalhar, juntamente com o irmão gémeo, Eduardo, enquanto o irmão mais velho (tem mais dois anos) prosseguiu os estudos. Ainda chegaram a fazer os exames de admissão ao liceu, no entanto, depressa se aperceberam da vocação para o comércio, pois já ajudavam no negócio do tio, Joaquim Ferreira. Muito mexido e irrequieto, Álvaro arranjou um emprego perto de casa, com Emelino Abano, e o seu primeiro vencimento, há 58 anos, eram 800 angolares, a moeda angolana na época. Volvidos dois anos, abre um novo estabelecimento mesmo em frente e é convidado para ali trabalhar, indo ganhar o dobro do ordenado. “Nunca fiz nada sem o apoio do meu pai. Conversávamos muito durante o almoço e o jantar e sempre trabalhámos para o monte, para o bem comum e nunca por imposição”, recorda os tempos de adolescência. “Na loja do Sr. Adérito vendíamos desde a agulha ao avião. Hoje, as grandes superfícies não são mais do que os estabelecimentos que existiam antigamente em Angola. Tínhamos o vinho, mercearias, brindes, ouro, frigoríficos a petróleo, máquinas de costura, confecção, tudo importado”. Mais anos se passam e o pai e o tio decidem modernizar o negócio, com as diversas secções separadas, chamando Álvaro para a actividade, onde já se encontrava o irmão gémeo. “Quando me fui despedir do senhor Adérito, foi comigo um empregado que também já lá estava há muito tempo e ele começou logo a mandar vir com o Catraio. Não me senti bem com a situação, pedi para me dispensarem mas deixei uma porta aberta e fui então para a empresa do meu tio, mas as coisas não resultaram como esperado e acabámos por montar a «Casa Gémeos». No entanto, como éramos bons rapazes e fiávamos bastante, tivemos uma crise financeira e lá veio o Sr. Adérito oferecer-me emprego”, relata o entrevistado, com todos estes acontecimentos bem frescos na memória. É por esta altura que Álvaro Faustino conhece a sua esposa (Elisabete Faustino), mas o tempo para namorar era quase nulo. “Quantas vezes lhe fui bater à porta às 11 da noite só para lhe dar um beijinho”, conta os primórdios de um relacionamento que ainda hoje se mantém, tendo o casal vindo para Portugal depois da independência de Angola. “O meu irmão gémeo é que trouxe as minhas filhas e os meus pais em Outubro de 1975”. Mas a vida na antiga colónia deixa inúmeras saudades no empresário de Portimão, uma época onde trabalhava, dançava e brincava. “Praticamente aquilo que faço hoje aqui”, diz com uma sonora risada, garantindo que sempre foi feliz e acarinhado. “Os gémeos eram sempre vistos com bons olhos e toda a gente aceitava as nossas brincadeiras. Temos a felicidade e a bênção de Deus de termos nascido gémeos e nunca soubemos viver um sem o outro. Aliás, há ocasiões em que estou aborrecido e a minha esposa pergunta logo se não será qualquer coisa com o Eduardo”. De entre as muitas histórias e aventuras que normalmente acontecem com os gémeos, Álvaro lembra-se perfeitamente de uma sucedida em tribunal. “Quando montámos o supermercado, há 38 anos, apareceu-nos lá uma brigada e tínhamos uma diferença de 20 cêntimos num artigo. Como eu estava mais perto do tribunal, disse ao advogado que não era preciso o Eduardo vir de tão longe, que eu iria no lugar dele, mas aquilo deu confusão porque o dr. Juiz perguntou-me se eu não trabalhava ali no armazém”, relata. “Passado um mês ou dois de estar naquela terra, eu lidava com as pessoas todas, mexia com elas, pela minha maneira de ser, a minha dança, as minhas maneiras e houve logo quem se apercebesse da troca de identidades no tribunal”. Com 19 anos, Álvaro Faustino vai falar com o governador do distrito para que não fossem os dois irmãos em simultâneo cumprir o serviço militar obrigatório, uma vez que já eram estabelecidos e o certo é que nenhum foi à tropa. Segue-se o melhor período da economia angolana, mas também conheceu o momento mais conturbado da guerra pela independência e vem parar a Portimão mais uma vez pela bênção de Deus, na sua opinião. “Dizia-se que a UNITA tinha entrado em Moçâmedes e que nós teríamos que ir embora e eu pedi a um dos meus funcionários para encher uma carrinha com coisas e disse-lhe que, se não voltasse na segunda-feira, que abrisse a loja e fizesse dela o que quisesse”, relata, antes de avançar com outra história dos tempos da guerra. “Eu era para ser padrinho de um indivíduo e fiquei com o fato dele em Moçâmedes para ir para Porto Alexandre, mas não nos deixaram passar, daí que casou sem a roupa”. A bordo de um barco foram para «Alves Bay», onde Álvaro e Beta permanecem uns dias num campo de refugiados e ai conhece um dos momentos mais tristes da sua história, antes de embarcar num voo para Lisboa “Chorei um dia inteiro porque precisava de uma mala e depois lá apareceu alguém que me arranjou uma”. Chegados a Portugal, enfrentou mais algumas peripécias: “Como saímos depois da independência de Angola, éramos considerados refugiados e não retornados e, quando cá chegámos, queriam mandar-nos para Manteigas. Eu expliquei-lhes que o meu irmão gémeo e os meus filhos estavam em Portimão e, passada uma hora, lá nos deixaram vir para o Algarve”, refere com uma pequena pausa e as emoções à flor da pele. Quando entra no Hotel Globo, o director indica-lhes que não havia quarto para o casal, mas Álvaro recusa-se a entrar na camioneta e partir de novo, chegando ao ponto de dizer que preferia dormir nas escadas até lhe arranjarem um quarto no hotel. “Dois ou três dias depois, fui dar uma volta pelas lojas e vi que tinha uma hipótese. Eu nunca tinha vindo a Portugal, mas toda a gente afirmava que uma pessoa, para ser empregado de balcão, tinha que passar por marçano. Dizia «Bom Dia» e «Boa Tarde» e ninguém me respondia, observava a atitude dos empregados, para venderem 10 camisas não tiravam uma. Como trouxera umas panelas e abre-latas de Angola e a Beta tinha uma tia na praça, perguntei-lhe se não podia ir para lá também. Como dava muitas gargalhadas e brincava imenso, parecia que isto já era meu e a verdade é que comecei a vender bem”. A vontade de vencer e inovar Com 39 anos, Álvaro Faustino dá os primeiros passos no comércio de Portimão, daí defender a pés juntos que nunca é tarde para se começar. Uma rápida pesquisa pelos armazéns abastecedores reforçam a ideia de que poderia abrir o seu próprio negócio, até porque tinha trazido um carro de Angola que poderia vender. “Aparece-me o Zé Alexandre, a contar-me que o sobrinho possuía uma casa que não dava nada e que pretendia trespassá-la. Fui lá falar com ele, mais o meu irmão mais velho, expliquei logo que não tinha dinheiro, o banco também não queria descontar as letras e o Zé Alexandre acabou por ficar como nosso fiador”, retoma a história o nosso entrevistado, que rapidamente fez um mini mercado com a mercadoria que já se encontrava na loja. “Devo tudo à minha mulher, vou ser sincero. Pegamos naquilo e tentávamos conservar as pessoas que entravam o máximo de tempo no interior, para assim atrair outras que andavam na rua, mas foi um período difícil”, admite. |
Num domingo de Junho, um armazenista pergunta se o casal não teria um petisco qualquer no estabelecimento, ao que a esposa Beta responde prontamente que sim e junta-se de repente uma série de pessoas que tinham ido ver o jogo do Portimonense. “A vizinhança arranjou-me o carvão e as grelhas e nós fizemos o primeiro churrasco angolano. No dia seguinte, pensei que aquela seria a nossa fonte e mandei logo fazer um fogareiro. Deitava-me à uma e tal da noite e, de madrugada, ia a pé comprar o pão fresco para os clientes, mas era uma aventura maravilhosa”, frisa, acrescentando que, nessa altura, ainda estava a viver no Hotel Globo. “O IARN soube que eu já estava a trabalhar e mandaram-nos embora do hotel e, como o meu irmão e as minhas filhas já se encontravam na Fuzeta, eu e a Beta ainda dormimos uns tempos na loja. | |
Não nos custou muito, mas tive de ir a Sines, num domingo, pedir dinheiro emprestado a um indivíduo para pagar a primeira letra que se vencia na segunda-feira”. O terraço do estabelecimento começa a funcionar como restaurante e até turistas estrangeiros eram chamados pelo churrasco à angolana mas, três anos depois, morre o proprietário da casa e os herdeiros, que, segundo Álvaro Faustino, não se davam muito bem uns com os outros, propuseram-lhe a sua aquisição. A situação financeira ainda não permitia tais aventuras e, com a saída à vista, o empresário encontra outro espaço em trespasse, na Rua Direita. “Nunca tive experiência de restaurante mas a vontade de vencer na vida ajudou-me e avançamos para a «Cozinha», logo a vender comida para fora. O problema dos outros restaurantes é que, se precisássemos de uma sopa quente para um filho que estivesse doente, tínhamos que levá-lo lá para comer. Não havia nenhum take-away”, explica, sublinhando que o seu alvará é, há 30 anos, de comida a peso. “Era impensável, naquela época, equacionar-se um negócio semelhante. Hoje, estou desactualizado, mas a casa não dá para mais”. O êxito foi imediato e Álvaro e Eduardo não tinham um minuto de descanso, suportados pela esposa, Beta e pela afilhada Augusta, mas ainda arranjava tempo para dançar, mesmo trabalhando horas e dias a fio. “Chorava e perguntava como é que Deus me dava tanta força para continuar”, reconhece. “Já aconteceu algumas vezes chegar a casa e a Beta perceber que eu não estava bem e sairmos para dançar, porque a música transforma-me. No dia seguinte, já não me doem as pernas, os braços ou a cabeça e parece que as preocupações desapareceram, mas já lhe disse que não quero ter mais problemas. Quero ser daqueles que sobe na vida, não me interessa se há crise, não posso é adormecer”, dispara. A alegria de viver é, sem dúvida, uma das imagens de marca do Álvaro da «Cozinha», assim como as suas risadas contagiantes, que aquecem o coração daqueles que as ouvem. Mesmo com 71 anos de trabalho intenso, não baixa os braços e garante que quer seguir em frente enquanto tiver lucidez e força. “Neste fim-de-ano, levantei-me às sete da manhã, fui trabalhar, cheguei às 10 e tal da noite, fui mais a Beta dançar, voltámos para casa às seis da manhã, levantei-me às 10 e fui outra vez para a loja. Não sei onde vou buscar esta força”, questiona-se, com a esposa ali mesmo ao lado, a acenar positivamente com a cabeça a confirmar a história. “Querem ser felizes? Façam como nós: brinquem mas respeitem. Tenho a felicidade de estar com a Beta e outros casais perguntarem se eu não posso ir dançar com a mulher deles”. A fé em Deus e a alegria de dançar Se a esposa Beta tem estado sempre ao seu lado, Álvaro Faustino enaltece igualmente a força que Deus lhe tem dado ao longo dos anos, confessando-se um homem muito crente e feliz por receber tanto carinho dos outros. “Ainda no outro dia estava a brincar no correio e um senhor perguntou-me como é que consigo transmitir toda esta alegria. Respondi-lhe que me agarro bastante a Deus e à minha mulher, mas que preciso do carinho deles”. Pessoa afável e sobejamente conhecida dos portimonenses, como antes se verificava em Angola, diz ser incapaz de não cumprimentar os indivíduos com quem se cruza, ao ponto da esposa lhe dizer que tem que arranjar mais um braço. “É um dom. Tenho que dar sempre o «Bom dia» ou «Boa tarde» e não procuro com isso salientar-me, é algo que está dentro de mim. Não estou a fazer uma má acção, a outra pessoa é que pode incorrer nela ao não responder”, salienta. Depois dos anos abundantes que teve em Angola, Álvaro não esquece os cinco anos em que viveu num quarto com mais quatro pessoas (ele, a esposa, as duas filhas e a afilhada) quando primeiro chegou a Portugal e nem isso impedia que soltasse umas valentes gargalhadas. “O que tenho de mal fica na mesa-de-cabeceira, para fora deito a felicidade”, descreve, adiantando que a única diferença entre ele e Eduardo é que o irmão é menos sonoro nas risadas. “Dança bem na vertente clássica, eu e a Beta somos mais espalhafatosos e expansivos. Ainda há dias estava no Hotel Júpiter e dei uma volta à minha mulher. Quando vou a agarrá-la, já estava ela nos braças de outro homem, com uma pinta que não queira saber. Fui dançar com uma senhora que se encontrava ao meu lado e que, no final, vim a saber que era a esposa do outro senhor”, relata. Para trás ficaram, todavia, as idas aos dancings Nakofino, Esteval, Flor do Lis, Top 60, preferindo agora ficar mais perto de casa. “Vamos sempre os dois sozinhos porque não quero compromissos com mais ninguém e uma noite, ao regressarmos do Nakofino, veio um carro directo a mim, às tantas da manhã, na EN 125. Eu não sabia se parava ou andava, já transpirava, vá lá que ele mudou de direcção. Desde então, decidimos evitar as viagens à noite, pois nunca sabemos como se comportam os outros”. Álvaro Faustino viu recentemente reconhecido tudo aquilo que tem dado a Portimão, tendo sido homenageado pela autarquia local nas comemorações do Dia da Cidade, facto que o comoveu profundamente. No entanto, mesmo sendo uma terra que evoluiu bastante no pós-25 de Abril, há situações que não colhem a sua aprovação, designadamente a diminuição de estacionamento gratuito e da circulação automóvel nas principais artérias. “Qualquer dia, Portimão está denegrido na zona da baixa e é uma tristeza ver os estabelecimentos fechados. Deviam criar alternativas antes de encerrarem as ruas”, defende o empresário, considerando ainda que existem grandes superfícies em excesso no concelho. “Mas isso não serve de desculpa para o mau desempenho do comércio tradicional. Eu precisava ter as mesmas condições que eles, sobretudo em termos de estacionamento, e foi por isso que lancei a «Cozinha 2». E olhe que aquilo não são só rosas. Eles vão-se digladiar a eles próprios e nós morremos”, desabafa. Qualidade, profissionalismo e simpatia são factores fundamentais para o sucesso, contudo, Álvaro Faustino sublinha que os empresários não podem ficar cabisbaixos com a crise dos concorrentes ou dos outros estabelecimentos. “Não podemos fechar portas só porque não aparece gente”. defende. Seja como for, e apesar da idade, o entrevistado está confiante que os dois restaurantes «Cozinha» têm futuro garantido, pela mão das duas filhas, mas também não pensa em reforma. “O que desejava era ser senhor de mim próprio e poder estar mais afastado do negócio”, afiança, reconhecendo, no entanto, que os clientes querem continuar a conviver com ele, quanto mais não seja para ouvir a sua risada característica. “Há dias esteve cá um senhor que não nos visitava há 20 anos e ficou super contente quando disparei uma gargalhada. Eu e a Beta deixamos a nossa marca, por aquilo que somos e mesmo no estrangeiro gostam de nós, como verifiquei em Marbella há pouco tempo. Uma senhora, já com duas filhas ao lado, lembrava-se de quando eu lhe dava chupetas, aos anos que isto já foi. Depois, aparece outro casal com histórias semelhantes dos sítios onde dançamos, no Brasil, México e Cuba, nos cruzeiros que fazemos”. Em final de conversa, e sem esconder a emoção, Álvaro da Cozinha reforça a honra por ter sido homenageado pela autarquia portimonense, como já antes acontecera pelo Rottary Clube de Portimão e por outras entidades. |
Álvaro Gomes Faustino homengeado Ao longo da vida, Álvaro Gomes Faustino tem sido variadísimas vezes homenageado, aliás, no amplo escritório da sua residência vêem-se medalhas e placas um pouco por todo o lado. “Estes são os meus pequenos troféus, gestos de muito carinho e amizade que tenho recebido das pessoas”, explica. Na parede, encontram-se diplomas, certificados e, nos móveis, taças e troféus. “São alguns prémios de concursos que ganhamos nos cruzeiros, ou a dançar ou em dias de Carnaval”, argumenta Álvaro Faustino. Diga-se de passagem que, no seu currículo oficial arquivado na Câmara Municipal de Portimão, constam os seguintes galardões: A Cozinha foi fundada a 10 de Março de 1979, com estabelecimento na Rua Direita, em Portimão, de forma modesta mas com condições higiénicas e funcionais. | |
Em 1986, receberam em Itália, pela CIPEM Gastronomia, a Taça de Ouro. Com o aparecimento das grandes áreas e o progresso da cidade, decidiram expandir o seu negócio, com a abertura de mais um estabeleciemento, a Cozinha II, na Urbanização da Quintinha, em Portimão. | |
No ano de 2000, tiveram a honra de fazer o jantar de Ordenação do Bispo do Algarve, D. Manuel Quintas, que contou com a presença de 300 pessoas. Foram homenageados, em 2004, pelo Rotary Clube de Portimão. Desde 1997 até ao ano de 2005, forneceram almoços de Natal para os idosos do concelho de Portimão. |
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