Aida Gomes nasceu em Lundimbale, no Huambo em1967, onde passou a infância. Mais tarde Portugal e Holanda foram a sua casa, com experiências nas áreas de desenvolvimento em países como Camboja, Moçambique, Suriname, Libéria, Sudão e Guiné-Bissau, onde mora actualmente. É socióloga de formação e tem publicado em revistas e jornais. Lança, hoje, no encontro Correntes d’Escrita, em Portugal (dia 24 de Fevereiro), o seu primeiro livro: Os Pretos de Pousaflores pela Leya. Fala-nos sobre identidade, as ambiguidades das organizações não governamentais e da construção do Estado-nação em Africa e ainda sobre os impasses da Guiné Bissau.
Qual é a tua expectativa em relação a este primeiro livro?
Que comunique algo que seja vida na miríade de maneiras de ver, sentir, provar e pensar o que se lê. Embora tenha escrito Os Pretos de Pousaflores tendo em mente o cenário social de Portugal dos anos setenta, oitenta até ao começo dos anos noventa (exclusão social, contrastes acentuados entre rural-urbano, preto-branco, homem-mulher), a expectativa é de que, na leitura, as seis personagens angolanas e portuguesas se tornem reconhecíveis nas suas fraquezas, lugares-comuns, esperanças e medos. Entre elas há mal-entendidos e dores de parte a parte, como sempre houve e haverá entre seres humanos. Alegrias também. Que tenha conseguido através da literatura, na forma como a linguagem nos permite expressar sentimentos e emoções, criar uma visão sobre como Angola e Portugal se tocaram através de vidas imaginadas.
De que forma o livro bebe da tua história de vida e em que contexto quiseste trabalhar a narrativa?
Aristóteles definia a arte como a exteriorização de uma ideia à semelhança da vida humana; mas a Arte, era a seu ver, mais do que uma cópia da vida ou da natureza. A arte era a tentativa de criar um ideal da natureza e da vida, corrigindo-se-lhe as deficiências. Os Pretos de Pousaflores procura dar voz aos diferentes membros de uma família vinda de Angola entre 1976 e 1978 para uma aldeia fictícia de nome Pousaflores. Um pai solteiro e três filhos. A reacção da irmã, uma portuguesa beata à chegada de “pretos” na aldeia; a perspectiva do irmão, um português “cafrializado”; a perspectiva de uma mulher angolana que perdeu uma filha e os enteados; e finalmente, o olhar de três jovens produtos de encruzilhadas históricas. Mais do que uma história pessoal, Os Pretos de Pousaflores procura ser um retrato social ficcionado de um período que coincide com o fim do regime fascista em Portugal, o processo de descolonização e a vinda para Portugal de milhares de “retornados” das ex-colónias portuguesas. Os primeiros anos depois do 25 de Abril são difíceis do ponto de vista de transição política e socioeconómica. Portugal tinha de reajustar-se e reinventar-se a si mesmo, inclusive a sua relação com África e os africanos; e vice-versa.
Como tratas o “drama” vs sucesso dos retornados?
Do período que o livro retrata existe o mito que os chamados “retornados” foram uma história de sucesso porque trouxeram de África a dinâmica empreendedora, uma visão mais esclarecida, etc. No entanto, esta narrativa de sucesso apenas coincide com um grupo selecto, maioritariamente branco, de classe média, educação superior que tanto podia ser bem sucedida em Portugal, como no Brasil, Angola ou noutro lugar qualquer. Uma parte significativa dos “retornados” não foram histórias de sucesso: havia-os portugueses (brancos) e africanos de origens culturais e raciais miscigenadas. Foram as franjas menos bonitas da sociedade portuguesa. Nas cidades “coloriram” os bairros degradados e nas zonas rurais viveram a melancolia e o esquecimento dos mal-amados, sentimento de uma dor ou talvez um sono d’África, que perdura tal como a memória de D. Sebastião.
Sentes Angola como tua terra? O que é pertencer a algum lado?
Angola é onde está enterrado o meu cordão umbilical. É o riso e o humor quase cáustico de auto-flagelação. No definir da palavra “identidade”, penso que sou parte de uma diáspora angolana. Diáspora é um conceito moderno fascinante porque é paradoxal, pertença sem ser pertença. Um espaço imaginado, o reconhecimento de ser parte de uma comunidade que, distanciada de um solo, reconhece os sabores (Calulu), os sons (tanta música!), o gozar e finalmente as paisagens: os verdes do Huambo a Benguela são a minha paz, não as trocava pela serenidade dos lagos da Suíça. Todos temos um lugar de origem onde a nossa alma descansa. Nem que seja um lugar imaginário. Nos anos noventa queria tanto voltar para Angola e não podia por causa da guerra (lembro-me vividamente daquele sentimento de esperar pela paz, de canções a falar de uma paz que nunca mais vinha.) Finalmente consegui ir trabalhar para Angola entre 2000 e 2003 - durante os últimos anos da guerra. Foi uma experiência muito mais penosa do que trabalhar em países como Sudão, Libéria ou Guiné-Bissau, também eles marcados por conflitos e violência. Há quem diga que a guerra é uma forma de se fazer política, quando outros meios não funcionam. A maior vítima da guerra, diz-se, é a verdade. Tenho sempre consciente o enorme esforço que é construir-se um país de novo; nas casas novos tijolos, nas janelas vidros. Pergunto-me sobre as pessoas, se lhes basta também pintar de novo as paredes das casas. Na Holanda quem viveu a guerra ainda traz as marcas consigo; não consegue deitar comida fora porque passou fome, não consegue apagar de si a vulnerabilidade de ter sobrevivido (mesmo o ódio ao inimigo de então subsiste). Não sei até que ponto o facto de ter crescido fora de Angola, país onde questões políticas trouxeram uma guerra longa, afectou as minhas escolhas profissionais. Guerra, conflito e política foram os assuntos dominantes do meu trabalho.
A experiência profissional aventurosa fez-te conhecer África e encontrares-te nela…
Enveredei por um percurso profissional que me levou a vários países africanos, e não só, todos eles envolvidos em conflitos. Um interesse genuíno em perceber a génese da construção do Estado-nação na sua variante africana, sabendo que os Estados africanos são identidades territoriais “delineadas” com uma régua na Conferência de Berlim e que os povos foram “aglomerados” e catalogados no processo de colonização. Na sua sabedoria, a União Africana (ainda na sua denominação Organização para a Unidade Africana (OUA)), e os líderes dos cinquenta e três Estados membros, decidiram que as fronteiras africanas eram sagradas. No entanto, no pós-independência poucos são os Estados que conseguiram criar entidades políticas e territoriais em que a maioria da população, ou mesmo metade, aufere o que a geração de Amílcar Cabral, Kwame Nkrumah e outros projectaram para África: auto-suficiência em termos económicos e políticos onde a população teria acesso a educação, empregos e estabilidade sócio-política. O mínimo necessário de dignidade humana que lhes foi negado durante séculos de colonização.
Quais são, na tua opinião, as principais adversidades para África?
Os problemas acumulam-se. Hoje, a maioria das populações africanas auferem de uma educação e serviços de saúde medíocres, enquanto que as elites têm ao seu dispor as melhores universidades, centros de saúde e hospitais nas capitais dos países mais avançados. Como contornar o facto de que o Estado africano representa frequentemente interesses de grupo, sejam estes de acordo com linhas étnicas, ou pseudo-políticas? O Estado africano preocupa-se predominantemente em estabelecer e consolidar redes nacionais de grupos e linhagens com ramificações económicas, militares, diplomáticas internas e externas com base numa competição renhida entre si (o conflito, inevitavelmente) para a capitalização de bens, prestígio e influência. As relações entre os grupos são de dependência (nunca de interdependência salutar) ou então, a aniquilação mútua, a sucessão e legitimação do poder é sempre problemática. As relações sociais da sociedade colonial, baseadas numa extrema desigualdade, foram reconfiguradas e fortalecidas, existem novas elites e velhas dinâmicas de desigualdade. Como mudar? Se olharmos para a América latina, independente desde há século e meio, vemos que, após tanto sangue e revoluções, temos, a par de crescimento económico, políticas sociais de desenvolvimento com maior equidade.
O continente africano atingiu recentemente a espantosa cifra de um bilhão de habitantes. Tem capital humano e económico suficiente para que não demore um século e meio a elevar-se e a sair da subserviência e desenvolvimento socioeconómico glutónico.
fotografia de Marta Jorgefotografia de Marta Jorge
A questão do desenvolvimento, em termos de realidade sociopolítica e histórica, tem várias vertentes, desde a geopolítica que determina interesses económicos estratégicos, a aspectos sociopolíticos, nos quais se insere a vertente humanitária ou de direitos humanos. É um mundo de paradigmas, de lutas de hegemonia e funciona tal qual o mundo: cinicamente ou com as melhores das intenções. No contexto profissional, estive ligada à cooperação multi-lateral em questões de paz e segurança mundial. Um emaranhado complexo. Nos anos noventa e mais recentemente, intervenções multi-laterais desastrosas para Estados e populações na Somália, Haiti, Ruanda ou Iraque. Esse era o pano de fundo para “as lições aprendidas” quando fui trabalhar na Libéria em 2004. Era necessário fazer-se melhor. Dag Hammarskjöld (1905-1961), o segundo Secretário Geral das Nações Unidas (de 1953 a 1961) dizia que a ONU não foi criada para criar o paraíso na terra; mas para que o planeta não se tornasse num inferno. Quando a Missão da ONU foi estabelecida em 2004 na Libéria, logo após a fuga de Charles Taylor, não havia praticamente ninguém no interior do país. Parte da população morrera ou tinha procurado refúgio nos países vizinhos, aterrorizados e fustigados por 16 anos de violência extrema. A Missão foi crucial na transição e na reposição da autoridade do Estado e na criação de um ambiente com o mínimo de estabilidade para que a população pudesse retomar as lavras e as escolas e tribunais no interior iniciassem as suas funções para as comunidades. Ao mesmo tempo que o período de transição era utilizado para a criação de mecanismos de controle do uso dos recursos naturais e reformar as estruturas do Estado. Hoje a Libéria é um país com uma governação política credível e legítima, onde foi eleita a primeira mulher como presidente no continente. Organismos internacionais multi-laterais contêm cada uma das vertentes de desenvolvimento e embora tenham vastos meios materiais e humanos ao seu dispor, o seu campo de actuação é frequentemente restringido pela necessidade de negociação de um grande leque de actores políticos estatais. Determinados lobbies podem levar uma causa para a frente ou fragilizá-la. Um campo de visão e de actuação mundial é diferente de uma organização não-governamental com menor capacidade de mobilização de meios materiais e humanos, mas que terá maior autonomia para definir o seu método e campo de actuação para melhorar a vida, por exemplo dos camponeses de aldeias no leste do Níger.
Como deveria funcionar a cooperação, sem se substituir aos deveres e competências dos Estados?
Estou cada vez mais convencida do que a cooperação deveria ser apenas um empurrão e não um soro permanente, que distorce mecanismos internos. Não penso que existam hierarquias ou consensos sobre a melhor forma de actuação na área de desenvolvimento: se a partir de projectos locais de pequena escala ou a partir do apoio ao nível macro na estruturação do Estado de países em vias de desenvolvimento. Pode-se tentar ver a floresta como um todo, ou apenas uma árvore ou um conjunto de árvores. Mas a água da floresta tem de vir do seu próprio solo ou tem de cair do seu céu. Quando os interesses representados por organismos multi-laterais são consensuais e coincidem com os das elites locais em termos de compromisso político para uma melhor governação com vista a melhorar o estado da nação, a actuação de um organismo como a ONU pode ser instrumental no sentido de se atingirem objectivos positivos. Quando as elites locais estão divididas ou não comungam a mesma interpretação sobre o que é uma boa governação ou respeito pelos direitos humanos, a ONU pode ter grandes dificuldades na sua actuação.
Bissau, fotografia de Marta Lança Bissau, fotografia de Marta Lança
A experiência de trabalho na Guiné-Bissau ajudou-te a entender a complexidade deste país, certamente. Qual é o ponto da situação do país?
A Guiné-Bissau é um país especial. O Estado entrou em queda livre depois do conflito de 1998-1999. A última década foi de crises cíclicas, as quais resultaram na degradação progressiva do funcionamento do aparelho estatal e das condições de vida das populações, o que também afectou espírito guineense. Muitos daqueles jovens africanos que se metem em pirogas no mar aberto para alcançarem a Europa, ou atravessam o deserto para que libertos do Norte de África alcancem essa miragem de destino melhor (e só ouvimos falar quando os seus corpos aparecem sem vida nas areias das praias norte do Mediterrâneo), muitos deles são guineenses. Na Guiné, tal como em muitos países africanos, os jovens têm poucas perspectivas. Há uma música de José Carlos Schwarz que faz referência aos primeiros anos depois da independência e descreve como as pessoas, por já não saberem qual o melhor caminho a seguir, voam pelas ruas tão leves como penas. Três décadas depois da independência, os jovens ainda continuam a querer voar para mais longe do que as ruas de Bissau. No entanto, começam a surgir sinais positivos; muitos jovens formados na Inglaterra, Estados Unidos, Portugal, etc., estão a regressar. Será necessário integrá-los.
No passado recente, com a agudização dos problemas, houve apelos para que a comunidade internacional não abandonasse o país. A contrapartida era que as autoridades nacionais assumissem o interesse maior da nação em beneficio da estabilidade do país para que a população possa finalmente conhecer algum progresso socioeconómico. Ultimamente, a nível bilateral, Angola tem-se sobressaído no seu apoio à Guiné-Bissau, apostando no desenvolvimento económico e reforma das forças armadas. O meu trabalho num organismo internacional multilateral tem sido mais na área política. No acompanhamento de processos democráticos e análise. O resultado é ambivalente. A herança de 30 anos de descapitalização em termos educacionais, dinâmicas sociopolíticas de implantação da impunidade, o alastramento do tráfico de drogas, a necessidade urgente de reestruturação do papel das forças armadas auguram um processo longo de consolidação do Estado na Guiné. O papel da comunidade internacional é sempre dependente do posicionamento dos vários interesses a nível internacional, regional e local, em que nem sempre se comungam os mesmos objectivos. Na Guiné-Bissau, com uma população relativamente pequena de 1.5 milhão, é possível que os esforços de organizações não-governamentais a nível local tenham um maior efeito em termos de beneficiar directamente as comunidades face às dificuldades do Estado em se afirmar. O mais positivo do meu dia na Guiné-Bissau é a generosidade, humildade e a bênção do sorriso guineense, apesar de tantos avanços e recuos.
O que é ser africano?
A definição de uma identidade pessoal pode ir mais além da imutabilidade estática de raça, origem e nacionalidade. Existe sempre um leque variado de escolhas e é essa a grandiosidade da nossa condição humana. Uma pequena história: “A Eritreia, país situado no Chifre de África foi invadido e colonizado pela Itália, processo durante o qual foi anexado temporariamente à Etiópia. Este país, por sua vez, é o único Estado africano que conseguiu manter a sua independência e, em 1950, a resolução da ONU 390(A), 1950 fixa a união da Eritreia com a Etiópia. Seguiram-se 30 longos e duros anos de uma guerra dura de secessão contra a Etiópia. A Eritreia consegue a sua independência em 1993. No ajuste de contas pós-independência, um soldado eritreu, cuja mãe era etíope e o pai eritreu, foi acusado pelas autoridades de ter uma lealdade duvidosa, porque mista; propensa à traição por afinidade com os etíopes, escapou da pena de morte por um triz, e foi enviado para uma das zonas mais áridas e pedregosas do território eritreu. O soldado lá ia passando os seus dias de desterro à procura de insectos e água nas concavidades das pedras. Perto de uma pedra, encontra um dia uma flor branca e amarela. Tão solitária como ele porque ali não havia vivalma. O soldado ajoelha-se, fascinado, perante a flor e comenta: eu sei o mal que lhes fiz, mas tu flor, que mal lhes fizeste para que te mandassem para aqui?”
Isto a propósito de identidades e das suas amarras, de políticas de lealdade, do acaso que nos faz nascer num sítio ou noutro, do facto de que identidades são pontos de referência com significados fixos, mas os sentidos estão sempre em transição como as emoções questionando “o que fazemos aqui?” Daí também o papel importante da literatura, filmes, teatro no exercício de introspecção de uma entidade de origem africana.por Marta Lança
LER AQUI PRÉ-PUBLICAÇÃO “OS PRETOS DE POUSAFLORES”
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