Após períodos de grandes febres – levantamentos, guerras, revoluções, massacres, genocídios – as sociedades acumulam silêncios para que todos os cidadãos prossigam a sua vida em conjunto. É somente depois que as memórias dolorosas retornam à superfície das sociedades. E então, às vezes, conflitos começam [ii].
Com estas palavras, o reputado historiador francês Benjamin Stora abre o prefácio à obra colectiva Les Guerres de Mémoires, la France et son Histoire dirigida por Pascal Blanchard et Isabelle Veyrat-Masson, um livro que procura fornecer uma visão panorâmica sobre os vários conflitos que irrompem na sociedade francesa como resultado do embate público entre diferentes versões sobre o passado nacional. Estes conflitos são não apenas factores de destabilização da integridade da narrativa nacional, pondo em causa o próprio modelo republicano que lhe dá forma, como também captam a atenção para acontecimentos históricos sobre os quais antes recaía uma aparente amnésia colectiva.
Estes fenómenos não são exclusivos do contexto social e político francês, embora aí se tenham revelado em tempos recentes particularmente expressivos, mas antes são extensíveis a outros colectivos que têm de lidar com acontecimentos violentos ou episódios traumáticos dos seus respectivos passados nacionais. Estes acontecimentos são tanto mais problemáticos quanto a sua capacidade de destabilizar ou desestruturar narrativas estabelecidas e indisputadas sobre a identidade colectiva. Daí que, como refere Stora, um aparente esquecimento possa ser produtivo em períodos de grande conturbação política e social, pois mexer nas feridas do passado nestes momentos poderia abalar irremediavelmente as fundações em que assenta a solidariedade colectiva e, nesse sentido, pôr em causa o projecto nacional. É preciso tempo para lembrar o que não é passível de ser esquecido.
Enquanto isso não acontece, a lembrança contida na fala ou no corpo daqueles que viveram essas “grandes febres” de que fala Stora volve-se em silêncio. Um silêncio que mascara a culpa, o ressentimento, o medo e a vergonha, por baixo de uma superfície anódina e banal que serve de filtro à forma como os colectivos se relacionam com os traumas do passado. Através de um acordo tácito, socialmente estabelecido, capaz inclusivamente de vincular percursos sociais altamente assimétricos, estabelecem-se “conspirações de silêncio”, como as designou Eviatar Zerubavel[iii], mediante as quais se dita o que se pode - e o que não se pode - falar acerca do que é calado. Até que o silêncio é quebrado, e o que todos sabem existir sob a superfície do discurso público não mais pode ser ignorado.
Através do romance, tantas vezes auto-biográfico, da arte, do documentário, ou do humor, o indizível é dito, em tom emocional, parcial, implicado, explosivo. É geralmente nestas condições que o conflito emerge. As versões públicas autorizadas que sancionam o esquecimento destes passados por via da sua integração intencional num esquema de recordação abrangente e trivial, bem como os pactos de silêncio que se mantêm no tecido social, são destabilizados por incómodas e imprevistas erupções da memória que trazem à superfície as ambiguidades dos legados problemáticos. Emanadas a partir da experiência retida ou por via do estabelecimento de um diálogo criativo com o passado, estas erupções não carecem de aval público nem de acuidade para serem legítimas no seio dos debates sobre a memória, pois a sua autenticidade reside na capacidade que têm de instarem a uma revisão do passado à luz das condições contextuais do presente que convidam à sua actualização.
Em Portugal, pelo facto das formulações da identidade nacional estarem tão fortemente associadas ao império, o seu fim não é recordado de uma forma especialmente efusiva. Nos palcos da memória veiculada pelas instâncias oficiais, na escola, em exposições, em ocasiões de estado, ou pela esfera mediática, em concursos televisivos, na música, e por vezes na literatura, o império mantém-se indisputável fonte orgulho colectivo, concebendo a identidade nacional à luz de um quadro idílico de trocas interculturais e de diálogos civilizacionais estabelecidos por via das extensões imperiais da nação. Salvo em raras excepções, como o caso da série Debret do artista plástico Vasco Araújo, que expõe cruamente as assimétricas relações de poder subjacentes ao projecto imperial mediante a exposição da violência exercida sobre os corpos colonizados, a memória pública associada ao império português, aqui concebido na sua longa duração, é francamente celebratória e apologética.
Talvez por isso, tanto no domínio académico como no de uma esfera mais ampla da designada sociedade civil, tenha sido notória a desatenção aos aspectos mais problemáticos da história do império, nomeadamente os associados ao seu fim, como a guerra colonial e o súbito repatriamento do ultramar de centenas de milhar de portugueses quando são concedidas as independências às colónias portuguesas em África. Também no domínio privado, das sociabilidades mais íntimas, se aprendeu a não perguntar sobre a guerra, ou a recordar África, e o retorno, de acordo com um punhado de lugares-comuns imputrescíveis, criando assim as condições para a transmissão geracional do silêncio. Acresce que, contrariamente ao verificado em outros contextos nacionais marcados por processos de descolonização, em que representantes das populações repatriadas, como os pieds-noirs em França, têm mantido uma voz activa nas guerras da memória, não se verificou em Portugal o desenvolvimento de um movimento associativo suficientemente forte para dar corpo e expressão identitária a um colectivo delimitável pela experiência do repatriamento, capaz de, a partir daí, contribuir para a problematização da memória do império colonial português.
Contudo, a expressividade da população portuguesa implicada no retorno, eventualmente envolvendo mais do que o meio milhão de pessoas identificado por Rui Pena Pires no estudo sociográfico publicado em 1984[iv], é um indicador suficiente para supor que as representações detidas por esta população, embora informadas por vivências específicas bem como por trajectórias sociais particulares, são influentes na forma como o colonialismo português e o seu fim são recordados e esquecidos. Porém, o facto de o repatriamento ter sido rápido e súbito, tendo sucedido maioritariamente em 1975, e de ter ocorrido num momento de agitação social e política, bem como a ideia de que a integração foi relativamente fácil, são factores que contribuem para um alheamento em relação às fracturas deixadas na sociedade portuguesa por este fenómeno em particular, e pelos legados coloniais em geral.
Este alheamento tem, porém, encontrado a sua expressão de protesto no campo da literatura, onde é notória uma obsessão memorialista associada ao fim do império, primeiro com a publicação de autobiografias ficcionadas ou romances autobiográficos focados na guerra colonial e, mais recentemente, na própria experiência colonial, com extensões para a descolonização e subsequente repatriamento. Geralmente relatos retrospectivos escritos na primeira pessoa, intersectando trajectórias individuais com a experiência colectiva do colonialismo português, estas narrativas sempre denunciam, independentemente da sua forma e conteúdo, as tensões geradas pelos legados coloniais, enunciando uma relação visceral com este passado, impressa no corpo, evocada pelos sentidos ou actualizada pelos afectos.
A este propósito, o livro Caderno de Memórias Coloniais de Isabela Figueiredo é particularmente expressivo. Este livro, que resulta da selecção e composição das publicações que a autora vinha fazendo no seu blogue O Mundo Perfeito, quebra violentamente o pacto de silêncio mantido em torno do colonialismo português em África e do pânico colectivo gerado pelo repatriamento da população colonial. Ao contrário de outros títulos que abordam directamente a experiência do retorno, como é o caso do romance Os Retornados: Um Amor Nunca se Esquece de Júlio Magalhães, Isabela Figueiredo destabiliza os tropos mais comuns da narrativa quotidiana dos retornados. Estes tropos incluem a “vida paradisíaca” que se levava em África, o “tratar bem os nativos”, o sentimento de “traição” e o ressentimento relativamente aos políticos mais associados com os processos de descolonização e de repatriamento, e o trauma do retorno, devido à forma repentina como este sucedeu e às dificuldades de integração na ex-metrópole, geralmente representada como “atrasada” e “escura”. Júlio Magalhães confirma: “Jogar à bola, grandes farras em garagens, a praia, a mini-Honda”[v], assim o diz, se fazia uma juventude em África, onde a “vida corria quase de forma perfeita…”[vi].
O “sonho dourado”[vii] de Júlio Magalhães esfuma-se quando confrontado com o relato virulento de Isabela Figueiredo. Mas tal como Júlio Magalhães, também ela dá conta de um universo onírico, embora bem mais complexo, edipiano, subterrâneo, carnal, a partir do qual procura conferir inteligibilidade tanto à sua experiência íntima como à experiência transpessoal do colonialismo africano e do seu fim depois do 25 de Abril de 1974. A partir da relação com o seu pai, Isabela Figueiredo evoca as emoções conflituais, ambivalentes, associadas ao passado colonial português, num diálogo consigo mesma sobre o poder do medo, da culpa, da humilhação, na fixação dos limites da recordação. Ao transgredir estes limites, Isabela Figueiredo repudia uma paternidade que vai muito além da esfera das suas relações íntimas. Como conclui a determinado momento no decurso da sua narrativa, “Aquele homem branco não é o meu pai.”[viii]
O seu relato não fornece uma representação factual da realidade nem uma ficcionação desta. O facto de os afectos assentarem em temporalidades diferentes daquelas que estruturam a linearidade da memória histórica não diminui o seu valor como testemunho menmónico. Muito do que nos recordamos acerca do passado, mesmo acerca dos passados pessoais, é informado por outras memórias individuais, pelas histórias que lemos, pelas imagens que vemos, memórias diferidas que compõem a densidade do senso-comum acerca do passado. É desta forma interpessoal que se constroem narrativas incontestáveis sobre os acontecimentos pretéritos. O relato emocional de Isabela vem abalar a incontestabilidade da narrativa sobre o império colonial português, incitando uma reconstrução do passado a partir da sua erupção emocional no presente. Sem impor um significado definitivo à experiência recordada, o livro de Isabela antes actualiza o potencial de significado que esta experiência encerra, ao conduzir a passagem do não dito ao dito, do encoberto ao “não escondido”, como designado por Heidegger[ix]. Convida-nos, por isso, a “olhar sem filtro”[x], o espaço nu onde procura a redenção: “Todos os lados possuem uma verdade indesmentível. Nada a fazer. Presos na sua certeza absoluta, nenhum admitirá a mentira que edificou para caminhar sem culpa ou caminhar, apenas. Para conseguir dormir, acordar, comer, trabalhar. Para continuar. Há inocentes-inocentes e inocentes-culpados. Há vítimas-vítimas e vítimas-culpadas. Entre as vítimas há carrascos”[xi].
O livro de Isabela Figueiredo instiga, portanto, a uma ampla reflexão sobre um passado que até agora tem resistido à interpretação. Vai faltando, entretanto, um exame mais sistemático desta memória. Um exame capaz de estabelecer um diálogo entre a força reprodutora das instâncias de poder e a força, ora transformadora ora repressora, das emoções associadas à recordação e ao esquecimento deste passado. Deste diálogo poderá finalmente resultar a tão adiada reconciliação da nação com a sua história colonial.
Artigo publicado originalmente no Le Monde diplomatique, ed. portuguesa, Fevereiro 2011
[ii] Benjamin Stora, “Preface”, Pascal Blanchard et Isabelle Veyrat-Masson (dir.), Les guerres de mémoires, la France et son histoire,Paris, La Découverte, 2008, p.7.
[iii] Eviatar Zerubavel, The Elephant in the Room: Silence and denial in everyday life, Oxford and New York, Oxford University Press, 2006, p.2.
[iv] Rui Pena Pires et al, Os Retornados: Um Estudo Sociográfico, Lisboa, Instituto de Estudos para o Desenvolvimento, 1984.
[v] Júlio Magalhães, Os Retornados: Um Amor Nunca se Esquece, Edição Especial Limitada, Lisboa, Esfera dos Livros, 2008, p. 18.
[vi] Júlio Magalhães, p. 19.
[vii] Júlio Magalhães, p. 15.
[viii] Isabela Figueiredo, Caderno de Memórias Coloniais, 4.ª Edição, Coimbra, Angelus Novus, 2010, p. 53.
[ix] Martin Heidegger, Being and Truth, Bloomington, Indiana University Press, 2010
[x] Isabela Figueiredo, p. 27.
[xi] Isabela Figueiredo, p. 115.
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