Dulce Maria Cardoso
1975, Luanda. A descolonização instiga ódios e guerras. Os brancos debandam e em poucos meses chegam a Portugal mais de meio milhão de pessoas. O processo revolucionário está no seu auge e os retornados são recebidos com desconfiança e hostilidade. Muitos nao têm para onde ir nem do que viver. Rui tem quinze anos e é um deles. 1975. Lisboa. Durante mais de um ano, Rui e a família vivem num quarto de um hotel de 5 estrelas a abarrotar de retornados — um improvável purgatório sem salvação garantida que se degrada de dia para dia. A adolescência torna-se uma espera assustada pela idade adulta: aprender o desespero e a raiva, reaprender o amor, inventar a esperança. África sempre presente mas cada vez mais longe. ---------
«O Retorno»
TEXTO E FOTOS PEDRO TEIXEIRA NEVES
Dulce, que importância assume este livro na tua carreira, que já leva cerca de dez anos, quatro romances e um livro de contos?
Pode dizer-se que este é o livro pelo qual eu decidi tornar-me escritora. Portanto será, é certamente um livro significativo na minha vida. Tanto mais porque de alguma forma eu vivi grande parte do que nele se relata, ou seja, é o livro mais parecido comigo, porque eu vivi estes acontecimentos. Eu acho que todos os livros são autobiográficos, mas neste deu-se o caso de ser mais autobiográfico, porque eu vivi parte dos acontecimentos que relato.
Esse facto, essa envolvência tão directa com os factos, ajudou ou pesou no acto da escrita?
Não sei responder… Foi diferente do que se passou com os outros livros. Creio que isso terá ajudado a aproximar-me mais de uma verdade que queria contar… Mas, responder assim, parece que os outros livros, ou seja, parece que é obrigação do escritor ter de viver tudo, o que não acho que seja o caso. Aliás este livro é narrado por um rapaz, coisa que eu obviamente nunca fui.
És capaz de mensurar quanto de ficção e de real assistem a este livro?
Não sei dizer. Mas o facto de ser narrado por um rapaz afasta logo grande parte de uma hipotética percentagem de realidade… Eu não sou a protagonista do livro…
No fim do livro colocas aquilo que poderá ser uma espécie de pós-epígrafe, que diz qualquer coisa como «las cosas muertas no se deben tocar». Regressar ao passado, mesmo que pela via da escrita, não é de algum modo tocar em coisas mortas?
É, mas isso é uma provocação. Eu acho que se deve tocar nessas coisas, acho que as coisas mortas devem ser tocadas, devem ser faladas. E em relação, por exemplo, à História, com H grande, sem dúvida que um povo estará mais preparado para o seu futuro quanto mais souber do seu passado.
Em que sentido falavas atrás de uma verdade que queiras contar? Que verdade é essa?
A verdade de que eu falava é a minha verdade, ou seja, não era repor a verdade histórica; embora também penso que com a minha verdade eu posso ajudar a repor um bocadinho da verdade histórica, do que foram na realidade esses tempos. Mas trata-se, acima de tudo, da minha verdade.
Não te animou, portanto, qualquer desejo de acerto de contas, até como forma terapêutica tua de lidar com o passado?
Não. Quanto ao exorcismo e a terapia, aquilo que se pode considerar a escrita como terapia, isso não é o meu caso, tanto é que eu demorei imenso a decidir escrever o livro, porque ainda não tinha encontrado uma proposta de reflexão para tratar este assunto. E, portanto, se fosse por uma questão terapêutica, digamos assim, este teria sido naturalmente o meu primeiro livro, o meu primeiro romance, e não foi. Até porque sei que foi um tempo de grande sofrimento e eu acho um pouco indigno tratar o sofrimento sem acrescentar uma proposta de reflexão. É um pouco parecido com aquelas situações em que se abranda para ver o acidente, não é? Só se deve abrandar se for para prestar ajuda, se não, não se deve abrandar, porque é um pouco obsceno, muito obsceno.
Portanto, o dirimir de culpas nunca te interessou?
Não, não se trata de ajustar contas com o passado, não é uma escrita terapêutica. É exactamente uma proposta de reflexão, sobre a perda, sobre como é que se vive uma perda, e percebi que não se vive uma perda por antecipação. Mas isso é válido tanto neste caso, em que se aborda a perda de um país ou de um modo de vida, como para outra perda qualquer, por exemplo, de uma pessoa que amamos. Mas aprendi que nunca se vive por antecipação. Quando a coisa acontece é sempre devastadora.
Sentes, de algum modo, que a culpa se diluiu no rolo da História que envolveu todos e acelerou aqueles tempos conturbados, como amiúde as personagens o dizem?
Eu acho que as culpas não se diluíram, porque a culpa nem com toda a água do mundo se pode diluir. O que acontece é que a Justiça quando é extemporânea passa a ser uma grande injustiça. Já passaram muitos anos e é impossível julgar agora segundo aquelas circunstâncias. Portanto, as circunstâncias mudaram tanto… Mas a culpa está lá e continuará lá. Só que já é inútil falar nela. Só é interessante falar na culpa se houver a possibilidade de um julgamento.
Foi difícil partir para este relato na cabeça de um adolescente à época, e subtraíres-te ao peso, até de um julgamento inconsciente dentro de ti, de todos os anos que entretanto passaram?
No fundo, perguntas-me pelo processo da escrita… Nós não sabemos de onde vem as coisas, não é? Nesse sentido, escrever este livro não foi mais difícil do que outro livro qualquer que eu tenha escrito; o que nós temos é uma parte de decisão sobre o que é que vamos tratar, o que é que pensamos, depois há a parte do mistério criativo, em que as personagens se impõem, em que a história se impõe. Portanto eu acho que estive apenas disponível para a descoberta do que podia acontecer no livro.
E quanto ao lugar da escrita, na Alemanha. Este livro poderia ter sido outro, acaso tivesse sido escrito aqui, perto de onde as coisas aconteceram?
Não sei, é a velha história dos «ses». A Alemanha foi muito interessante. Primeiro, recebi um convite para a residência literária e depois decidi aceitar e quando decidi aceitar decidi escrever o livro lá. Foi muito interessante porque, de algum modo, eu também estava deslocada, pelo que pude outra vez experimentar ter aquela sensação de não pertença. Sendo certo que esta não pertença, vivida na Alemanha, foi sobretudo lúdica. Ou seja, eu quando vim para cá de Angola eu não tinha maneira de voltar a casa, na Alemanha eu tinha um bilhete de avião. Portanto, isto é acima de tudo lúdico, eu não gosto de confundir as coisas.
Mas a escrita foi dolorosa por estares a lidar, a reviver acontecimentos tão marcantes do ponto de vista emocional?
Não mais do que o que eu tenho na cabeça desde que as coisas aconteceram. Esta história, os factos todos que eu conto, tudo o que está no livro foi registado nos anos que em que aconteceram, em 75, 76… Portanto, e na verdade, será doloroso não mais do que viver comigo, não mais do que isso.
Sendo um romance sobre a perda e a identidade, o que é que, ainda assim, passando pelo processo, ganhaste e em que é que te tornaste?
As hipóteses do se, volto a dizer, são sempre perigosas, porque tínhamos de ter não sei quantas vidas para ver se eu tivesse ficado em Luanda o que é que tinha acontecido, se isto não tivesse acontecido o que é que eu seria hoje… Portanto, eu não posso responder com rigor a isso. O que eu acho é o facto de eu ter sido exposta tão cedo a uma guerra civil, à perda do convívio com tudo o que me era familiar, até mesmo com a minha própria família, e depois ter sido exposta à discriminação e essas coisas todas, a situações muito injustas, tudo isso expôs-me muito cedo à maldade e ao sofrimento. E o que terá sido diferente é que eu ganhei outra vida, porque eu acho que se ganha mais possibilidade de análise quando se exposta a situações extremas e, portanto, nesse sentido eu terei sido diferente por ter sido exposta a isso, mas, em concreto, o que mudou em mim isso não posso saber.
A perda, de resto, fui muito além do territorial e do material…
Sim, a perda foi acima de tudo afectiva, porque a perda material pode alguma forma, com alguma ingenuidade pensar que nós podemos recuperar tudo, a casa, o carro… a parte afectiva é que é difícil, tirando as histórias horríveis que aconteceram lá nessa altura e antes disso. Mas a parte afectiva é terrível. Aliás, ao escrever o livro apercebi-me que aquele princípio que nós gostamos tanto de aplicar à parte afectiva do «nada se perde, nada se ganha, tudo se transforma», na parte afectiva é impossível. Perde-se e ganha-se, não se transforma assim tanto. Este livro eu tinha de o escrever, acho que se insere naturalmente no que eu fiz e no que virei a fazer, quer dizer, é mais outro degrau entre os outros romances e os contos.
O Rui sonha com a América. Já o pai, apesar de ter perdido tudo, a sua terra, regressa a Portugal para ficar, sem desejo de voltar a partir. Haverá no desejo do Rui um desejo qualquer de vingança, em resultado de indignação e revolta contra o que a Metrópole fizera aos pais?
Não, não… Em Angola nós éramos muito americanizados, portanto é normal que o Rui tenha esse sonho. De qualquer maneira eu aproveitei esse sonho porque eu acho que Portugal ainda é fruto destas duas vontades, dos que ficam, dos que aceitam ficar, e há uma parte, uma parte mais infantil, uma parte, isto porque temos uma fronteira tão grande com o mar, que quer sempre partir, não é? E isto cria em nós uma espécie de esquizofrenia entre o ficar e o partir e, portanto, é mais neste sentido que está esse constante desejo de sair. E, na verdade, a América era porque era na altura digamos o país mais importante do mundo, o mais sugestivo, mas o Rui queria genuinamente sair, ele punha, aliás, também como hipóteses a Venezuela, o Brasil. Portanto, ele queria sair e há uma parte de nós portugueses, ainda hoje, que querem sair. Nós sempre tivemos este desejo de sair, um desejo que eu não encontro nos outros povos. De certa forma, a ideia que também está no livro é enquanto o mar estiver à nossa frente o futuro pode ser o que nós quisermos.
E qual foi o desafio formal que te impuseste neste livro?
O grande desafio formal deste livro, ao contrário, por exemplo, do que aconteceu com «Os Meus Sentimentos», em que há um único parágrafo e em que não há futuros, não há condicionais, não há nada disso, neste livro o desafio era ser adolescente, era ser um rapaz, era escrever com muito pouco vocabulário, porque ele não conhecia a maior parte das palavras, era recuperar o vocabulário angolano, que eu nunca mais ouvi, que nem está nos dicionários, era um vocabulário dos brancos lá. Portanto, foi um desafio formal diferente, mas cada livro tem um desafio formal.
É interessante que escolheste repartir o mal pelas aldeias, ou seja, não diabolizar ninguém, nem num lado nem no outro, isto por via do Rui, que é algo equidistante e tanto crítica os de «lá» como os de «cá»…
Sim e isso porque eu tento sempre aproximar as minhas personagens da vida. E eu não acho que houve um lado bom e um lado mau, eu acho que nós fomos sendo bons e maus à vez. Não há, nem acredito nesta coisa extremada entre o Bem e o Mal, é sempre esta guerra, esta tensão entre o Bem e o Mal… É a tal frase do São Paulo, muito bonita, que «não fazemos o bem que queremos, mas o mal que não queremos»; é natural em nós! Portanto o Rui, como aliás as outras personagens todas, foram sendo bons e maus à vez, foram sendo vítimas e carrascos à vez, foram sendo agressores e agredidos à vez, mas porque a vida é assim, não houve assim uma coisa programática. O que eu tento sempre é aproximar-me o mais possível da vida, essa é a grande inspiração.
Serias incapaz de voltar a Angola?
Sim, não me interessa muito ter picos emocionais. Canalizo os meus picos emocionais para a escrita e em termos pessoais gosto de uma vida mais apaziguada. De resto, acho que seria complicado voltar a Angola e rever uma série de coisas, até porque há pessoas que já não podem voltar comigo, como por exemplo o meu pai. Mas também porque, acima de tudo, Angola não é hoje, em termos políticos, um país aconselhável. Envergonha-me muito enquanto cidadã portuguesa o que se passa entre Angola e Portugal neste momento e não conseguiria visitar Angola enquanto turista, digamos assim.
Temos sido comprados e calados com o dinheiro sujo…
Isso e as condições em que o povo angolano vive. Imaginemos que Angola é um país muito próspero e rico, que, aliás, é, e pronto, podia investir em Portugal… Naturalmente que sim. O problema é que há um sofrimento enorme associado a esse dinheiro que vem de Angola, é um dinheiro criminoso, um dinheiro vergonhoso. E isso eu não gostaria de testemunhar enquanto turista.
Quase a terminar, achas que esta questão e terminologia dos retornados é hoje assunto enterrado?
Não, não é. Ainda há bem pouco tempo, a ver uma casa que estava interessada em comprar, e que estava em muito mau estado, a senhora disse-me que era assim, que estava naquele estado porque quem ali tinha vivido tinham sido retornados. Outro exemplo: mesmo da parte dos retornados acho que há ainda uma grande vergonha em reconhecer ou dizer que estiveram em quartos de hotel, eu não conheço ninguém que o diga ou assuma. Claro que à medida que as pessoas vão morrendo vão morrendo as memórias, mas que não está resolvido, não creio. Isto é… que se diga que a integração correu bem, porque não houve uma coisa terrível, não houve uma guerra civil, nesse sentido poderá dizer-se que correu bem, mas não foi uma boa coisa, não podemos, como alguns intelectuais, dar o exemplo de Portugal como exemplo de uma integração perfeita.
Em que livro trabalhas agora?
Estou a trabalhar n’«O Amante Americano», que aliás já estava escrito antes deste, ou quase, porque entretanto decidi escrever «O Retorno». Agora voltei a’«O Amante Americano». É um romance sobre as relações entre o velho mundo e o novo, neste caso a Europa e os Estados Unidos, ou Portugal e os Estados Unidos, em concreto. Acima de tudo tem que ver com o que nós também estamos a viver, que é a decadência de uma civilização como a conhecemos. «O Amante Americano» centra-se acima de tudo na decadência da família ocidental.
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1 comentário:
Viva Dr.ª Dulce Cardoso,
Li o texto que escreveu acerca dos "retornados" e fiquei muito sensibilizado. Senti uma a uma as suas palavras. São tão próximas daquelas que eu gostava de transmitir, tão iguais aos que eu sinto nas entranhas, tão idênticas às que me perseguem desde 1976, ano que cheguei de Moçambique e fomos desterrados para um Hotel da praia da Barra, em Aveiro.
Vi tudo aquilo que refere no texto: as filas intermináveis, a falta de privacidade das famílias e o descontrolo de todos para com todos.
Vivi cada uma das angústias do dia-a-dia de qualquer pessoa que desconhecia a realidade da metrópole. Senti o repúdio e o ódio que lançavam os olhares à nossa volta... percebia que essas pessoas não conseguiam ver o nosso drama e por isso lutei para vencer.
Foi duro! muitos anos de trabalho, muitos anos de luta para conseguir estar acima das coisas mesquinhas que nos rodeavam. Mas muitos à minha volta caíram, como se cai no campo de batalha... gente com valor e foi ceifada sem dó nem piedade. Enfim, restamos poucos.
Porém o "sonho" africano persegue-nos... fui a Moçambique em 2006. Vim desolado, mas comos olhos cheios... a Terra já não é nossa, mas o povo recebe-nos com um carinho arrepiante. Jurei não mais voltar, afinal já me sinto "portuga", mas não consigo sê-lo na plenitude. Há um desassossego que me persegue e o pensamento foge-me para as "savanas" intermináveis.
Quero um dia ajudar a escola onde aprendi as primeiras letras, mas sem ONG's, sem abutres maçónicos... ajudar desinteressadamente e ver uma nova geração sentada ao lado de mim, como vi tantos colegas negros na minha infância.
Um abraço e bem haja. Heitor
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