domingo, 6 de novembro de 2011

EM PRIMEIRA MÃO "Retornados-o Adeus a África" de António Trabulo




Um capítulo

No Planalto, uns partiam e outros não. Muíla tencionava ficar no Lubango. Tinha ali raízes fundas. Os seus bisavôs paternos tinham chegado antes dos colonos madeirenses.
Era um jovem estranho. As mulheres achavam-no bonito, mas ele ainda não casara.
Aos vinte e seis anos, quase foi abatido por engano.
Aproximava-se da cidade quando encontrou uma barragem da U.N.I.T.A. Vinha sozinho no veículo de todo-o-terreno. Não trazia armas e até mostrou o cartão certo ao militar que o interpelou.
Um do grupo alvitrou, em umbundo:
– Tem mercenários com cartão.
O Muíla conhecia bem a língua. Levantou o braço esquerdo. Ia protestar.
Um tipo nervosinho do grupo armado interpretou o gesto como ameaça e quase soltou o seu medo pessoal. O dedo indicador da mão direita cingiu-se-lhe ao gatilho da Kalashnikov.
A sorte aconteceu. Um dos tipos detrás reconheceu-o.
– Conheço este gajo. É da Palanca.
Lá o deixaram.
Nesse dia, o Muíla resolveu mudar-se para Portugal, onde nunca estivera. Deu sociedade na fazenda ao Martinho, mulato que já no tempo do seu pai era o capataz. Assinou um documento em que lhe reconhecia a posse de metade da terra e do gado. Assim, podia ser que a empresa sobrevivesse aos tempos difíceis que se anteviam. Talvez um dia ele pudesse voltar e retomar a vida normal.
Já não havia quase ninguém nos Serviços de Pecuária onde trabalhava durante a semana. A maioria dos colegas abandonara Angola. As repartições públicas estavam a deixar de funcionar.
Conseguiu marcar passagem de avião para Luanda. Voltou ao Chiange e despediu-se do Martinho com um abraço apertado. Durante a viagem de regresso ocorreu-lhe que podia estar a fazer aquele trajecto pela última vez na vida.
Ao entrar na rua onde morava, avistou uma luz acesa em sua casa. Como vivia sozinho, receou que lhe tivessem ocupado a moradia. Eram coisas que aconteciam com frequência crescente. Os militantes dos três Movimentos tomavam conta dos apartamentos abandonados pelos proprietários.
Estacionou o velho Land Rover a uma distância de quarenta metros, pegou na pistola e introduziu uma bala na câmara. Meteu a mão que segurava a arma no bolso direito do casaco largo.
Com a mão esquerda, rodou cuidadosamente a chave na fechadura e abriu a porta de mansinho. Entrou no hall. Viu uma mala fechada encostada ao lado direito, junto ao cabide dos casacos. Da sala, escapava-se um polígono de luz. Avançou alguns passos e espreitou. Lua dormia, estendida no sofá.
Sorriu, retirou o projéctil da câmara, travou a arma e poisou-a na mesa.
Descalçou-se, atravessou a sala, e entrou no seu quarto. Retirou da cómoda umas cuecas e um pijama. Passou à casa de banho, tirou a roupa e meteu-se debaixo do chuveiro, sem fechar a porta.
Lua acordou com o ruído da água a escorrer. Viu o saco de viagem do Muíla e a pistola. Teve um dos seus impulsos, e seguiu-o. Despiu-se e juntou-se ao jovem que se banhava. Abraçaram-se e beijaram-se, sem falar. Fizeram amor logo ali.
Enxutos e vestidos, foram para a cozinha.
– Trouxe pão fresco. Pensei que dava jeito...
– Obrigado. Tenho sempre um bocado de queijo na geleira. Também há cerveja. Já jantaste?
– Comi alguma coisa. Sabes que não sou de muito alimento.
– Eu não posso dizer o mesmo – O Muíla deixou escapar a frase entre dois golos de cerveja. Que fizeste ao teu homem? E como é que entraste aqui?
– A tua criada deu-me a chave.
Fez um sorriso maroto antes de continuar.
– Quando quero, ninguém é capaz de me dizer que não. Quanto ao Gil, deixei-o! Estou farta dele e do Lubango. Além disso, tenho medo. As coisas estão cada vez pior. Soube que te vais embora. Quero ir contigo para Lisboa.
– E lá, que tencionas fazer? Como é que soubeste que eu estou de abalada? Tenho a certeza de que não falei disso a ninguém.
– Compraste um bilhete de avião há duas semanas. Falei com o empregado da agência. O Ricardo é muito simpático. Arranjou-me lugar no mesmo voo. Os bilhetes estão esgotados, mas dá-se sempre um jeito.
– Tomaste uma decisão que vai mudar muitas coisas na tua vida. Pensaste bem?
– Acho que sim.
– E tens a certeza de que não te vais arrepender?
– A certeza, a gente nunca tem, não é?
Muíla pensou no Gil Madeira. Era um tipo culto, decente, com tiques de militar e ideias antiquadas. Considerava-se salazarista. Salazar morrera há oito anos. A sua ideologia tornara-se obsoleta muito antes. Nos últimos tempos, o velho ditador diminuído limitara-se a vegetar. Os seus seguidores tinham criado um fantasma que continuara a influenciar o governo do País, mas o tempo de Oliveira Salazar e a sua percepção do mundo tinham ficado lá muito para trás.
Gil podia tornar-se perigoso. Tinha a mania das armas. Alistara-se na F.U.A. (Frente Unida Angolana) do engenheiro Falcão, do Lobito. A evolução dos acontecimentos e a falência do modelo de independência que sonhara levara-o depois a aderir ao E.L.P., o chamado Exército de Libertação Português. Não falava com o irmão gémeo, que era todo M.P.L.A.
A esta hora andaria a rondar a cidade de jipe, em busca da mulher.
Lua chegou-se à mesa e pegou na pistola abandonada. Acariciou-a como se fosse corpo de homem.
– Às vezes sinto-me tentada a dar cabo de mim.
– Não sejas tonta. O mundo ficava muito mais feio.
Abraçou-a.
Tinham a partida marcada para a manhã seguinte. O marido só daria com eles se se lembrasse de estar no aeroporto à hora da largada. Era coisa que podia acontecer. O melhor era ter a arma bem à mão.
Não se sentia culpado. Nada fizera para atrair Lua para junto de si, mas a mulher era muito, muito bonita e um homem não era de ferro.
Deitaram-se.
Na manhã seguinte, o Muíla telefonou para a tia Alzira. A irmã da sua mãe era solteirona e morava em Setúbal. Nunca se tinham visto. Trocavam postais de vez em quando, e falavam por telefone quando havia alguma coisa importante a dizer. Fora assim que soube que era o herdeiro único dos seus modestos bens. A senhora morava em casa alugada. Até o telefone pertencia à vizinha do lado.
Já a avisara de que tencionava ir para Portugal. Nos primeiros tempos precisava de alguma ajuda.
Escolheu as palavras com algum cuidado antes de dizer que a Lua ia consigo.
– Levo a minha mulher.
– Não sabia que te tinhas casado. Essas coisas comunicam-se!
– Tem razão, tia, mas aqui vivemos tempos difíceis. Às vezes parece que o mundo está a acabar. As regras confundem-se. Peço desculpa. Quando chegarmos, conto tudo.
Arrumara na maleta alguns pertences. Pesavam pouco.
Gil Madeira não imaginou que a mulher tencionava voar para Luanda, e o casal embarcou sem dificuldades.
Formara-se uma fila de pessoas à cata de uma desistência, mas não houve nenhuma. Ao subir a escada do avião, Muíla olhou para trás.
Talvez nunca voltasse àquela terra, que era a sua. Não conhecia outra melhor.
Os que ficaram tinham um ar preocupado. Deixaram-se estar até que a aeronave desapareceu no ar.
Muíla reservara um quarto em Luanda com bastante antecedência. A Lua não gostou das acomodações porque o espelho da instalação sanitária era pequeno. O companheiro ainda telefonou para dois hotéis e uma pensão, mas estava tudo cheio de gente que aguardava lugar nos voos para Lisboa. A mulher resignou-se.
Corria o mês de Setembro de 1975 e a ponte aérea funcionava em pleno.
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António Trabulo

Retornados-o Adeus a África
Editorial Cristo Negro
( 2009)
 

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