sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

1975. Retornados, espoliados do Ultramar: O último ano em Angola

O último ano em Angola

O meu último ano em Angola foi muito conturbado.
Vivia em Luanda no Bº Salazar que era em grande paryte rodeado por quarteis portugueses, mas entre o Bº o o sitio onde trabalhava; Hospital Universitário junto ao Hospital de S. Paulo, passava pelas delegações dos três movimentos de libertação, (MPLA,FNLA e UNITA), que não se entendiam e se guerreavam uns aos outros na ância de tomada do poder.
Havia dias que era um inferno chegar ao Hospital com balas vindas não se sabia de onde, quantas vezes ao chegar havia de tudo pelos corredores mortos, feridos e sangue pelo chão.
O Hospital era quase todos os dias atingido por balas que furavam os vidos, sempre pensei que um vidro atingido por uma bala se partisse todo, mas não ficavam apenas os buracos do tamanho das balas. por duas vezes foi bombardeado tendo morrido um colega que trabalhava no 2º andar.
Eu trabalhava mesmo á entrada e eu e minhas colegas chegamos a andar de cócoras pois havia balas a bater na frontaria do prédio, após o bombardeamento fomos durante uma semana para o Hospital Maria Pia,
após o exercito ter garantido a segurança do Hospital voltamos mas tudi tinha sido saqueado até as fotos de familiares que alguns tinham nas secretárias tinham desaparecido.
Por duas vezes chegou ao hospital o boato de que grupos armados corriam em direcção ao Bº Salazar para tomarem as casas, eu desesperada pois a minha filhinha con um ano ali ficava com uma vizinha
lá pedia autorização e pegava no carro e ía ver da minha menina, graças a Deus das 2 vezez não passou de boato, (Omeu carro chegou a ser atingido por uma bala e pedras).
Foi um mau bocado, Luanda naquela altula era um inferno, todo o dia e toda a noite era passado ao som de tiros e bombardeamentos, o que valia por um lado era a falta de noção de como utilizar o material bélico que lhes foi metido nas mãos nem sei por quem porque quando começaram a chegar a Luanda não tinham armamento quase nenhum e o que tinham estava absoleto, então de noite era um autentico arraial porque eles usavam balas tracejantes e a maior parte disparadas para o alto quando caiam já era por força da gravidade, os bombardeamentos a maior parte não faço ideia de onde caíam, nuna casa perto de min caiu ama granada de morteiro mas foi no quintal não fez qualquer vitima.
as casas mortuárias estavam a abarrotar de corpos de tal maneira que na do Hospital Maria Pia já nem os punham lá dentro estavam vários pelo chão cá fora, era um cheiro insuportável.
Perante esta insegurança no inicio de agosto de 75 resolvi mandar a minha bébé, na altura já com 2 anos, para Portugal com uma irmã do meu marido, mas as saudades daquele pedacinho de gente que era toda a minha vida não me largavam e em fins de setembro, já grávida do meu 2º filho, vim para Portugal num avião da Força Area pois que um cunhado meu ali era militar.
Meu marido ficou veio para assistir ao nascimento do filho mas passadas 2 semanas de cá estar recebemos a noticia de que a nossa casa tinha sido ocupada por um qualquer militar das Faplas e assim resolvemos não voltar para Angola para grande desgosto nosso.



Zézita 

O último ano em Angola

O meu último ano em Angola foi, como seria de esperar, cheio de expectativas. Tinha nove anos, sabia que o nosso destino seria Portugal. Portugal esse que eu imaginava igual às ilustrações que havia nas latas de chocolates da Macintosh, damas antigas, charretes, enfim tudo a que a imaginação de uma criança tem direito.

Para o meu pai, como para todos os adultos que dedicaram uma vida de trabalho e sacrificios a Angola, foi muito difícil decidir-se a partir. Para o pressionarmos, íamos para a varanda da nossa casa à noite, e quando os meus pais já estavam deitados, estouravamos fitas de fulminantes com uma pedrita, na esperança de que ele se assustasse e se decidisse de uma vez por todas a partir.

Por fim deixamos o Chinguar, rumo a Nova Lisboa, juntamente com uma tia materna, o marido e os três filhos, eramos onze no total. Aí vivemos um tempo enquanto aguardavamos pelo nosso voo na ponte aérea. O nosso era o Voo 404. Como é óbvio, as carências já se notavam muito. Lembro-me de irmos à confeitaria Nandinha e comprarmos bolos porque havia dias em que não tinham pão. O pior eram os meus primos que já mais cresciditos, e fumando à sucapa, se viam à nora para arranjar um cigarrito.

Saímos de Nova Lisboa, no dia em que o Savimbi anunciou que, até ao meio-dia desse dia, todos os angolanos que pretendessem deixar Angola teriam de o fazer. Eramos todos à excepção do meu pai que nessa altura tinha ido a Moçamedes despachar o carro, cuja venda, mais tarde nos valeu para recomeçar a nossa vida. Os que eram angolanos fugiram para o aeroporto de Nova Lisboa, onde estivemos fechados durante 11 horas num hangar até que, por fim, encontramos no meio da imensa multidão o meu pai que nos procurava.

Não guardo rancor nem ódios, guardo sim recordações.

Renata 

O último ano em Angola

O meu ultimo ano em Angola, começou muito bem.Em Março fomos de férias a Benguela,e depois pegamos na estrada e fomos por ai fora até Luanda, onde jogamos no Totobola e ganhamos 10.000 escudos.Que festa!Foram umas férias de borla!Mal sabia eu o que me esperava quando voltei de férias.Estava a trabalhar no Governo do Distrito do Cunene, quando no dia 25 de Abril cheguei ao serviço e vi todo um alvoroço! Toda a malta feliz!Como se devem lembrar, só ouviamos as noticias pela rádio.Eu não sabia o que se passava.Perguntei e lá me explicaram que se tinha dado uma revolução em Portugal e que nós (Angola) ia ser independente!
Eu sem saber o que pensar (pois só tinha 0s meus 22 ingénuos anos)e o que aquilo queria dizer... Sentei-me e instalou-se no meu peito uma tristeza que ainda hoje não sei de onde veio, talvez só mesmo o meu sexto sentido.Comecei a chorar no meio daquela alegria toda! Mais tarde todos me deram razão , era realmente para chorarmos não para festejar!
A verdade é que a 22 de Julho lá arrumei as minhas imbambas e rumei em direcção ao Sudoeste Africano como refugiada politica. 
Lisete
Maria Jose Mendes Leitao e Vasconcelos de Carvalho


Repatriados - A geração de ouro dos retornados

CORREIO DA MANHÃ -2004-04-25
MAIS FORTES QUE O DESTINO
A maioria chegou a Portugal com uma certeza: tinham de recomeçar a sua vida do zero. Chamavam-lhes retornados, nome ainda hoje pejorativo. Mas foram eles que acordaram um país dormente, com a alegria trazida de uma África onde começavam a cair tiros de morteiro.

Sempre que ela entrava com uma chávena de chá às tantas da madrugada na sala de reuniões, o fumo de tabaco parecia evaporar-se. O semblante carregado dos ministros que discutiam os destinos da jovem democracia transformava-se num enorme sorriso. “Você parece uma gazela. Ainda vai fazer cair o Governo”, gracejava o primeiro-ministro Mário Soares à exótica moçambicana de 20 anos. Quando passavam por ela nos corredores de São Bento, havia políticos que cantarolavam: ‘Gabrieeela!’. Os longos cabelos, a tez morena e a sua beleza felina faziam de Yolanda uma sósia perfeita de Sónia Braga – a actriz brasileira que brilhava na primeira novela transmitida em Portugal. “Tive sorte. Três anos depois de chegar a Portugal fui trabalhar para o I Governo Constitucional, em 1977. Era uma das secretárias de Soares”, conta.
Yolanda veio da Beira, Moçambique, para um tratamento cardíaco. Com os estilhaços da revolução acabou por ficar. “Havia manifestações por ‘dá cá aquela palha’, papéis por todo o lado, cartazes nas paredes e cuspia-se no chão. Passou-se do 8 para o 80 mas as pessoas pareciam felizes.”
Em São Bento, o ritmo não era menos acelerado. “Ficávamos à noite a dormitar nos corredores à espera de sermos acordadas para redigir um decreto-lei à máquina.” Era por isso que andava sempre acompanhada com uma providente escova de dentes. Yolanda acabaria por trocar a turbulência da política pelos flashes da 'passerelle' e hoje é uma empresária de sucesso. Pelo meio, foi considerada uma das mais elegantes mulheres do País. Mas por mais anos que passem, não consegue esquecer a imagem de dezenas de conterrâneos a descer as escadas dos Boeings do aeroporto da Portela, em 1975. “Foram recebidos com o calor de mantas e bebidas, mas a maioria deles sentia uma enorme insegurança porque tinham de recomeçar a sua vida do zero.”
Entre essa massa anónima de pessoas de destino incerto encontrava-se Ribeiro Cristóvão, a sua mulher e os três filhos menores. “Mantive-me em Angola quase até à independência. Acreditava que apesar das alterações radicais haveria lugar para todos. Enganei-me.” No final de 1975, abandona o seu emprego na cervejeira Cuca (que ainda hoje existe) e a sua casa em Nova Lisboa. “Fui obrigado a viajar para Portugal, espoliado de todos os meus haveres”, desabafa em tom inconformado.
O homem do desporto da Rádio Renascença confessa que os primeiros três meses passados em Lisboa foram os mais difíceis da sua vida. E sem o abrigo na casa da sua irmã em Alcochete, a sua história estaria hoje pintada em tons ainda mais negros. “Recordo-me de calcorrear a cidade à procura de emprego, sem sorte nenhuma. Estava desesperado.”
No primeiro Natal na capital, Ribeiro Cristóvão afundou-se numa tristeza profunda. Ali estava ele, rodeado com a sua família mas com a árvore despida de presentes. “Não tinha nada para dar aos meus filhos.” O rótulo de retornado teimava em fechar-lhe portas. “Havia má vontade entre os portugueses da metrópole que tinham medo que lhes roubássemos os empregos. Andei com este ferrete durante anos.” Um dia, porém, o habitual ‘não’ deu lugar a um surpreendente ‘sim’. A Rádio Renascença abria-lhe portas ao admirável mundo novo do jornalismo.
FUGIR DE TIROS DE MORTEIROS
“Os 500 mil retornados, que representavam 5 por cento da população portuguesa, foram o maior fenómeno de repatriamento da Europa do pós-guerra”, conclui o sociólogo Rui Pena Pires, também ele repatriado de Angola. Dos que regressaram, 33 por cento veio de Moçambique e 61 por cento de Angola.
“Grande parte destas pessoas, que emigraram de Portugal para África nos anos 60, tinham qualificações bastante elevadas.” Pena Pires dá um exemplo: enquanto a taxa de analfabetos era de 30 por cento na metrópole, entre os retornados não ultrapassava os 2 por cento.
“Entre 1974 e 1975, as ex-colónias viram-se desprovidas de quadros administrativos e técnicos qualificados, que foram o motor do desenvolvimento desses países. E Portugal tinha de absorver toda esta gente”, defende o docente. Mas o facto do país atravessar uma convulsão social, veio acabar por facilitar a sua integração. “Chegaram a uma sociedade maleável em termos de hierarquias. Tudo estava em aberto. Em 1976, já havia presidentes de Câmara provenientes das ex-colónias, algo que não aconteceu noutros países da Europa.” Segundo o professor do ISCTE, que publicou um trabalho sobre os retornados, o repatriamento de Angola foi mais célere devido ao clima de guerra civil, bastante pior do que em Moçambique.
Dados que conferem com o relato pormenorizado de Emídio Rangel, jornalista nascido em Lubango em 1946 e uma das vozes da Rádio Comercial de Angola. “A probabilidade de sobreviver ao tiroteio de morteiros, canhões e outras armas de grande calibre dos exércitos do MPLA e UNITA, era baixa. Ainda por cima estava desarmado.”
O risco era enorme mas Rangel não tinha outra saída. Em apenas 48 horas conseguiu fugir de Luanda, sem um beliscão. “Só tinha a roupa que vestia.” A 1 de Setembro de 1975 estava numa Lisboa diferente daquela que já conhecia de outras épocas. “A cidade de conspirações de Marcelo Caetano transformara-se na capital de golpes, contra-golpes e intervenções militares.”
Emídio Rangel não perdeu tempo a contemplar o ambiente de efervescência política. Em dois dias, já vendia enciclopédias para poder ganhar a vida. “Eram em inglês, o que não as tornava muito populares”, ironiza. A sua missão em espalhar cultura porta a porta não durou muito tempo. Meses depois, ficava em segundo lugar num concurso público para a RDP – Radiodifusão Portuguesa. A TSF e a SIC seriam as suas próximas estações.
'MALTA, EU VENHO PARA A PORRADA!'
Lídia Jorge aventurou-se por terras de África antes de 1974. A escritora, natural de Boliqueime, decidiu dar aulas no ensino secundário aos jovens de Moçambique em plena guerra civil. O seu faro apurado detectou logo à chegada um grande mal-estar naquela sociedade que parecia viver à beira do abismo. “Havia algo de trágico e de errado. Tinha a sensação de que bastaria atear-se qualquer coisa para haver uma mudança radical.”
Mudança a que já não assistiu porque teve de abandonar o país em Agosto de 1974. “Por mim, podia ter feito a vida em África”, suspira. Em pleno PREC, assistiu a episódios caricatos, como o de professores ensinarem palavrões aos alunos. “Durante o 11 de Março de 1975, uma colega minha do liceu D. João de Castro, vestida de ‘jeans’ e casaco de cabedal, irrompeu entre os estudantes aos berros: ‘Malta, eu venho para a porrada!’”
Lídia Jorge ainda se recorda com nostalgia da anarquia e alegria extraordinárias. “O aumento da liberdade trouxe consigo a libertinagem.” Corria-se para o cinema para ver filmes pornográficos, antes proibidos pela censura, vestia-se de forma desportiva quando a ocasião era de cerimónia. “As casas de pronto-a-vestir tiveram o seu grande período de crise porque era quase regra aparecer-se pouco arranjado.”
Que o diga Augustus, criador de alta-costura, que aterrou em Lisboa em 1976, proveniente de Luanda, onde vivia e tinha uma das suas lojas de roupa. “Nesse período, a moda era considerado algo de fútil.” Viviam-se os tempos dos intelectuais da revolução, que se vestiam todos de igual, fossem homens ou mulheres: camisolas de gola alta, botas alentejanas e as inseparáveis calças de ganga.
Apesar de vigorar a moda unissexo, António Augusto Ferreira, decidiu arriscar e abrir um ‘atelier’ na capital portuguesa. E não se arrependeu. “A vida social em Lisboa era menos agitada: não havia almoçaradas com amigos, idas à praia ou à discoteca, como em Angola.”
Como trouxera três carros da ex-colónia, não tinha espaço para todos na garagem, na sua casa da Lapa. Resultado: diariamente os vidros do seu vistoso Chevrolet Camaro, eram pintados com a palavra ‘fascista’. Só muito mais tarde é que descobriu o autor das palavras de ordem: “Era apenas um rapaz que andava no liceu. Divertia-se com aquilo ”
DO DESEMPREGO PARA O GOVERNO
Quando a autodeterminação das colónias parecia um facto consumado, Manuel Antunes foi um dos 30 mil portugueses que preferiu rumar para sul e não para a metrópole. O director do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica dos Hospitais da Universidade de Coimbra vivia em Moçambique desde 1954, altura da primeira vaga de emigrantes. “Na escola primária, o meu colega de carteira era negro. E não sentia qualquer tipo de racismo”, lembra o médico, que se insurge contra as mentiras que se têm dito (e escrito) sobre a dita mentalidade colonial dos portugueses. “Nós é que acabámos por ser prejudicados no processo de descolonização.”
A sua família teve de deixar para trás propriedades, moradias e um negócio próspero de construção civil. Em troca? Uma mão cheia de nada. Até 1988, preferiu ficar em África do Sul, onde praticava medicina e só então veio para Coimbra, onde tem desenvolvido uma intensa actividade científica. “Não sobrou nada. Nem o espírito de entreajuda típico dos que viviam em Moçambique. As pessoas acabaram por se dispersar pelas aldeias onde tinham família. Quem não tinha meios ficava em pensões e hotéis em Lisboa.”
António Cardoso e Cunha, nascido em Leiria em 1934, não tem a mesma opinião do médico coimbrão. “A rede de solidariedade entre os retornados foi flagrante, notória e permanente.” Em Angola, o gestor era já uma pessoa influente – como presidente da Câmara de Comércio e membro da Assembleia Legislativa. E nas vésperas da manifestação da ‘Maioria Silenciosa’ (o 28 de Setembro) chegou mesmo a vir a Lisboa com uma delegação de políticos angolanos para reunir com o general Spínola. Eram os anos quentes da transição. “Durante a minha vida em Angola vim regularmente à capital pelo que acompanhei as evoluções da vida nacional”, declara o ex-comissário da Expo’98.
Em 1977, juntou-se ao grupo de repatriados e fixou-se em Portugal. “Mantive actividade pessoal na medida das oportunidades, limitadas pela conjuntura económica. Contudo não perdi a experiência e as capacidades empresariais que desenvolvi em Angola.” Um ano depois, o actual ‘chairman’ da TAP era já nomeado secretário de Estado do Comércio Externo, depois da crise governamental do executivo de Nobre da Costa: “Exemplo curioso da turbulência da época – passei de desempregado a membro do Governo.” Cardoso e Cunha não foi caso isolado. Outros portugueses das ex-colónias haviam de se destacar nos executivos que se seguiram. No jornalismo, na gestão ou na advocacia, os quentes ventos de África também se fizeram sentir. Homens como Vítor Ramalho, Alexandre Relvas, Jorge Armindo, David Borges ou Victor Sá Machado conseguiram fintar o destino. Talvez um dia sejam conhecidos como a geração de ouro dos repatriados.
ANTÓNIO FEIO - REGRESSO ÀS ORIGENS
“Onde é que eu estava no 25 de Abril? Bem, a tentar embarcar no avião para Lisboa.” António Feio, então com 20 anos, vinha de uma 'tournée' com o grupo de Teatro Experimental de Cascais e estava com os colegas em Lourenço Marques. “Percebemos logo que algo de errado se passava na metrópole.” O actor acabou por ser obrigado a ficar mais um mês na sua terra natal, de onde saíra aos sete anos. Durante a juventude viveu sempre com um pé em Lisboa e outro em Lourenço Marques. “Tinha a noção de duas realidades distintas.” Em África, o estilo de vida dos portugueses era mais descontraído. “É tudo muito grande.” António Feio recorda-se de fazer 1200 quilómetros de carro só para jantar com os amigos, com toda a naturalidade. Na capital alfacinha, tudo era mais cáustico e violento, principalmente durante os anos do PREC. “Foi uma época conturbada para o bem e para o mal.” Depois dessa viagem atribulada em 1974, só voltaria a pisar Lourenço Marques quase vinte anos depois. “Não tive desilusões. Já me tinham pintado um cenário demasiado negro.” Do passado guarda uma fotografia a preto-e-branco com uma irmã de Maria Rueff. “Os pais da Maria tomavam conta de um hotel, onde a minha família viveu durante um certo período.”
Hugo Franco

VIDAS QUE FICARAM LÁ

CORREIO DA MANHÃ - 2004-04-25
25 de Abril – Os espoliados das ex-colónias
Há o campeão de boxe que agora vive num quarto alugado; ou a descendente de princesa hoje confinada às paredes húmidas de um apartamento em Chelas. E há mais, 920 mil histórias de pessoas que perderam tudo, ou quase, depois da revolução.

Wing Wa está sentado num canto esquecido à espera do maior combate da sua vida. Mas o gongo tarda em soar. Aos 74 anos, a morar num quarto alugado na Margem Sul, resta-lhe pouco da glória que o tornou um dos melhores pugilistas portugueses de Moçambique nos anos 40 e 50. A fama do seu gancho de esquerda estendia-se da Beira a Joanesburgo, passando pela então Rodésia, só que a história apanhou-o de surpresa e desferiu-lhe um golpe certeiro. A 10 de Janeiro de 1976, o atleta carpinteiro de origem chinesa aterrou em Lisboa, para nunca mais voltar a África. “Era a minha terra”, recorda. Milhares de pessoas dizem o mesmo de outras tantas vilas e cidades angolanas e moçambicanas que abandonaram nos anos seguintes ao 25 de Abril de 1974. Mas a saudade não foi a única coisa a ficar por lá, a um oceano de distância. Ficaram casas, carros, fábricas. E ficaram vidas. Muitas delas para sempre.
Chama-se Maria Helena de Vasconcelos e Sá, neta de um bisneto de uma princesa de Castela. Estudou Antropologia na faculdade, até ao segundo ano, numa altura em que eram raras as mulheres nas cadeiras do saber. Tem 73 anos. “Fui para África com um ano e fiquei até ter dez ou onze anos. Depois, vim estudar para Portugal e, após a morte do meu pai acabei por regressar”, conta, sentada à beira de uma fotografia do menino que seria seu avô, José Maria Belchior da Cruz de Faria e Sousa de Vasconcelos e Sá.
Como funcionária dos correios esteve em Maputo, em Quelimane e em Nampula. Casou e foi mãe, sempre embalada pela vida e pelos feitos dos antepassados. Como o avô, que ajudou a construir um farol e que derrotou um tubarão moçambicano a golpes de catana. Ou o primo que era comandante da Força Aérea. “Tenho muitas saudades de Moçambique, não me adapto a Portugal. A vida era totalmente diferente.” A mudança começou em 1974. “Depois de Abril, a coisa começou a ficar confusa. Um dia, tive de sair do serviço debaixo de um tiroteio. Eu via as pessoas passarem a escorrer sangue”, recorda, a 30 anos de distância.
Os tremores que a atacaram nessa tarde, não os consegue esquecer. Foram o primeiro sinal. Dois anos depois, numa madrugada fria de Outubro, aterrava em Portugal. Outra vez. “Eu não tinha muita coisa lá. Havia um terreno, bom, que tive de vender muito barato, quase dado.” Como era funcionária pública, foi reintegrada e ao fim de pouco tempo estava de novo a trabalhar. Mas vida voltou a trocar-lhe as voltas. Sem marido, tinha 15 contos para viver e ajudar o filho. “A única forma foi inscrever-me nas casas da câmara. E eles mandaram-me para aqui”, explica Maria Helena de Vasconcelos e Sá, neta de um bisneto de uma princesa de Castela, que hoje vive num andar em Chelas, com dois cafés à porta e as paredes carregadas de humidade.
A GUERRA DOS NÚMEROS
Ao certo, ninguém sabe quantos portugueses abandonaram as ex-províncias do Ultramar, entre 1974 e 1976, rumo a Lisboa. No quinto andar de um prédio junto ao Terreiro do Paço, duas associações de espoliados, a de Angola (AEANG) e a de Moçambique (AEMO), fazem todos os dias as contas aos últimos trinta anos. “Não há uma estatística exacta do número de pessoas que deixaram Moçambique”, admite Eduardo Alves, presidente da AEMO. “Mas o número de espoliados rondará as 85 mil famílias, ou 320 mil pessoas.” Na sala ao lado, Lucas Martins empenha-se na luta dos angolanos. “Penso que foram apresentadas perto de 80 mil relações de bens que ficaram em Angola, a que corresponderão quase 600 mil pessoas.”
Quatro eram a família Mota Almeida. “Nasci em Luanda em 1965”, começa por contar Fátima, a filha mais nova. Até aos dez anos, a sua vida foi igual à de tantas outras crianças. “Como era a vida... O calor, o andar na rua de pé descalço, de cuecas. Ninguém olhava, ninguém ligava. Se aparecia um conhecido, ficava lá em casa uma semana, duas, meses. Ninguém ligava a nada.” Antes de dizer como tudo é diferente, como sente saudades do calor, espreita para a rua pela janela do seu cabeleireiro em Campo de Ourique. “Imagine o que era fazer isso aqui. Chamavam-me logo maluca.”
Não é o melhor adjectivo. Aos dez anos, a vida de Fátima tornou-se diferente da de todas as crianças. “Quando vim para Lisboa, foi a primeira vez que andei de avião. Adorei. O que me impressionou mais quando cheguei foi estar sozinha. A hospedeira é que me entregou. Havia muitas pessoas à espera, com cartazes e nomes. Sabia que ia ter com um tio meu, que não conhecia, chamado Hermínio.” Chegou uma menina, com roupas e bonecas, que foi morar para Corroios.
A seguir veio a irmã. Depois a mãe e o pai quando conseguiram voo em Luanda. Durante quatro anos viveram cada um em sua casa. “As primeiras semanas foram muito dolorosas, chorava todos os dias. Estávamos todos separados porque não tínhamos onde ficar. É normal, não é?”. Para trás ficava a moradia de esquina perto de Luanda, onde nas piores noites de tiroteio se andava de gatas do quarto para a cozinha e de volta. “Às vezes, eu ficava ali sozinha, punha uma almofada no chão e deitava-me a ver os tiros passar...” Foi quando os disparos se tornaram demasiado intensos que a família escolheu voltar. “Eu era pequena, mas acho que a minha irmã e os meus pais sofreram imenso. Eles deixaram lá tudo, abandonaram tudo. Casa, terrenos, a vida toda.”
Aos 39 anos, Fátima faz o que pode para evitar que também a memória desapareça. Não, não é só o caderno onde estão anotadas as datas e que folheia nervosa. Baptizou o filho com o nome do seu pai, Bernardo. Avô e neto nunca se conheceram, Bernardo, o mais velho, morreu nove anos depois de ter chegado a Portugal. “Falo muito de Angola com o meu filho. Conto-lhe como era o avô, como ele ajudou a construir muitas coisas, inclusive a Igreja onde fui baptizada. Quando puder, quero regressar.” O que Fátima também não quer esquecer é o calor, o cheiro da maresia, da terra molhada, das plantas.
TAMBÉM HÁ VITÓRIAS
África entrou na vida de Artur Catarino aos 30 anos. “Fui para lá e comecei do nada. Mas fiz uma obra que ficou, digna de se ver ainda hoje”, garante o administrador da Progelcone, a empresa especializada no fabrico de cones para gelados que emprega 120 pessoas na zona de Cascais e que Artur Catarino criou, quase a partir do nada, depois de regressar a Portugal. “Saí da universidade aos 11 anos. Fiz a quarta classe em Mação, Abrantes, e vim trabalhar para Lisboa. Fiquei quinze anos numa firma de distribuição de queijos e carnes. Em 1965, ofereci-me para ir para Moçambique.”
Cinco anos depois, o negócio prosperava na Matola, perto de Maputo. De tal modo que, quando foi proibida a importação de carne de porco da metrópole, Artur Catarino teve condições para abrir a sua fábrica. A Bomsuíno, que continuou a crescer. A 24 de Abril de 1974 saiu de Maputo com a mulher a caminho da Alemanha, para comprar máquinas. Estava prevista uma paragem em Lisboa. A revolução apanhou-os. “Parte daquelas máquinas, quando chegaram a Moçambique, já eu lá não estava.”
Artur soube que era altura de deixar a África durante uma reunião na fábrica em Outubro de 1975. “Um dia, a Frelimo foi lá e um dos tipos, a dada altura, diz aos trabalhadores: ‘Camaradas, isto que está aqui é vosso. Vocês é que construíram a fábrica, vocês é que trabalham, têm de aprender a administrar’. E foi aí que tomei a decisão.” Uma semana depois, Artur chegou a casa à hora do almoço e disse à mulher: “‘Prepara a mala, porque daqui a bocado vamos embora’. Duas horas depois estávamos a caminho da Suazilândia.”
Aos 68 anos, Artur Catarino continua a fazer um horário das oito às dez da noite. “Comecei a trabalhar muito cedo, fui para Moçambique trabalhar, voltei para Portugal e vim trabalhar.” Há 30 anos perdeu quase tudo. Recompôs-se. “A valores de hoje, tudo o que lá deixei valia mais de um milhão de contos. Mas nunca pensei em receber dali fosse o que fosse. Eles dizem que não mandaram ninguém embora e a verdade é essa. Só que proporcionaram para que eu me viesse embora. A situação estava insustentável.”
QUANTO VALE UM PAÍS?
As duas associações que lutam pelos direitos dos espoliados não arriscam sequer um número quando se trata de saber o valor das indemnizações que, defendem, são devidas a quem veio de África. “Quanto vale um país? Quanto valem os edifícios nas principais cidades de Angola? E os terrenos? E as fábricas?”, pergunta, respondendo, Lucas Martins. A AEANG apoia 1400 pessoas que decidiram fazer as contas e avançar com processos contra o Estado português. Na sala de Moçambique, os processos são menos de vinte. “São modos diferentes de lutar”, explica Eduardo Alves, da AEMO. Mas ao fim de alguns anos de avanços e recuos nos tribunais, as duas associações estão de acordo num ponto fundamental. “A solução para este problema tem de ser tomada a nível político”, resume o presidente da AEMO.
Seja qual for a verba, o mais certo é que se escreva em milhões. “Não podemos exigir, ainda para mais na situação actual em que o erário público está que seja tudo pago”, admite Eduardo Alves. Nos diversos contactos políticos que têm mantido já fizeram as sugestões mais diversas. Pagamentos faseados, pagamentos através de títulos da dívida pública negociáveis em bolsa, pagamentos em forma de pensão. “A coisa está sempre em fase de estudo. Mas nunca avança”, desabafa Lucas Martins. “Neste momento a contagem do tempo de reforma dos espoliados – não os que estavam na função pública mas os particulares –, seria uma espécie de primeiro passo”, diz. Eduardo Alves subscreve.
Um e outro conhecem histórias. A de Rogério Ferreira, por exemplo, que, como conta, começou a vida aos 44 anos. Hoje tem 72 anos e continua a trabalhar e a descontar para a Segurança Social. “Aqueles vinte e dois anos, os melhores da minha vida, não contaram para nada...” Esteve sempre ligado à agricultura e foi para o norte de Angola plantar café.
Colheu muito mais. Uma família, alegrias e tristezas, três dias cercado numa fazenda de arma na mão. Fez trilhos num jipe blindado, chegou a sair de casa com granadas à cintura e de metralhadora pronta a disparar. Em 1961, a fazenda onde estava ficou a sete quilómetros de dezenas de mortos num dia de horror.
“Andamos há trinta anos à espera que resolvam o nosso problema. Sou espoliado, tiraram-me o que era meu. Mas, sinceramente, não estou a ver o país com hipóteses de resolver o problema.” Rogério Ferreira, além do dinheiro, deixou em Angola um prédio no Uíge, quatro moradias no Norte e um apartamento na Avenida do Brasil em Luanda. Mas trouxe algumas coisas, em caixotes de madeira angolana que, mais tarde, serviram para fazer um móvel de sala que ainda hoje está na sua casa em Almada. Voltou a Angola há oito anos, para matar saudades. “Mas nem documentos tenho. Não posso provar que sou dono de nada, excepto do apartamento. Não tratei de nada. Veja lá que vim com um bilhete de ida e volta. E ainda ali está.”
ÚLTIMO 'ROUND'
A hora de Wing Wa tarda em chegar. “Quando vim para Portugal em 1976”, diz, num português hesitante, “fiquei dois anos no instituto para retornados”. A verdade é que não era um retorno, Wing nunca tinha estado em Portugal. “Sou português, mas de Moçambique”. Nesse dia, mal sai do avião, estranha o frio das manhãs de Janeiro, sente saudade do “povo bom”, da “comida boa” e do “calor”. Vai fazer trabalho de carpinteiro até arranjar emprego num hotel em Cascais. Há quatro anos, a vida acertou-lhe o segundo golpe. No estômago. “O hotel fechou e só então percebi que eles não tinham feito descontos para a segurança social.”
A pensão de invalidez e velhice permite-lhe, aos 74 anos, viver com 151 euros por mês. Dorme num quarto alugado na Margem Sul de Lisboa, em casa de um casal cabo-verdiano, que conheceu quando partilhava um quarto de hospital com o filho, cego depois de ter sido atingido a tiros de caçadeira. “Estou lá há dois anos. A senhora não queria que eu pagasse o quarto, mas eu insisti e pago cem euros.” Wing Wa gasta mais 40 euros para garantir uma refeição por dia ao longo do mês num lar. “O meu plano é trabalhar, aprender melhor português e ir para o lar, mas não para morrer”, revela, algo envergonhado, “Só que não há trabalho, não consigo... E preciso.”
As pernas já não mexem como antes, os olhos que antecipavam os golpes do adversário teimam em não ver tão bem. Mas o pior talvez seja mesmo o ouvido direito.
Em 1956, But Small bateu forte naquela zona, talvez demais. Wing caiu três vezes, perdeu, é certo, mas evitou o KO. Passaram 48 anos e a situação é de novo preocupante. Os golpes têm sido violentos, certeiros, mas o pugilista resiste. Wing Wa ergue os punhos, desfere cinco socos em rajada. Não quer voltar a perder. Não desta vez.

in MACUAblog

1 comentário:

JPMoura disse...

Eu também sou retornado, vim com toda a minha familia e tudo que era nosso, não deixamos nada para trás além da casa que para além de estar presa ao solo e era propriedade da companhia para quem o meu pai trabalhava. A unica coisa perdida foi uma mala de chapa com livros (bastante pesada)que por mau calculo no carregamento para o barco, caiu à água. Infelizmente a familia vei a conhecer um RETORNADO BRANCO que acabou por casar com a minha irmã e que até hoje tem vindo em Portugal a espoliar a familia com atitudes e acções tipicas como aquelas que acusam os retornados terem tido em africa para com os pretos, afinal é verdade. Pagou o justo pelo pecador.