A maior diatribe ao angélico regime de Salazar, uma das ficções da nossa vida colectiva, li-a ontem no diário lisboeta, “Correio da Manhã” (17 de Outubro 1994) num texto intitulado “O Estado Português é o único responsável pelas indemnizações “ (aos portugueses que foram espoliados de seus bens em terras africanas). Ângelo Soares, um dos milhares de espoliados, traz a sua fotografia a ilustrar o reivindicativo e acusatório texto e por debaixo de sua efígie de homem setentão aquelas palavras, expressão sua, que reputo o tormento à paz de Salazar no tranquilo cemitério de Santa Comba Dão, mesmo juntinho ao jazigo da mulher amada (são cinco palmos mal contados). È o que perturba o idílio além-tumba. Ela , uma Perestrelo Botelheiro, lhe dirá : “Por não teres constituído a família é que se desfez o teu império !” As palavras magoadas de Ângelo Soares soam tristes deste modo desesperado: “A situação teria sido diferente se, como potência colonizadora assumida, o que não foi o caso, o Estado português nos tivesse prevenido, desde sempre, de que estávamos a colonizar, e que deveríamos acautelar os nossos bens no exterior... “
A culpa foi do Estado e de quem o governava. A culpa foi de quem imprimiu a definição e a propalou até à fadiga. À cabeça, António de Oliveira Salazar. Ao princípio do velho “Estado Novo”, logo nas suas masculinas alvoradas de braços esticados, o mestre de Economia da universidade coimbrã pública, em 1930, o Acto Colonial. Era dar o nome justo às coisas. O Ultramar era constituído por colónias. As palavras não devem ser profanadas. As palavras são as roupagens das realidades e devem obediência a estas. Chamar cão a um gato não transforma o gato em cão. As palavras têm por missão traduzir o mundo e fazê-lo comunicar, não o de esconder mundo e mal informar. Mas o tempo perverteu o inicial realismo de chamar as coisas pelo seu justo nome. Salazar começou a ser poeta e produziu uma tenebrosa metáfora. A certa altura deixou de chamar colónias às colónias (estas ficaram espantadas com a súbita mudança, porquê ?) e passou a tratá-las como vizinhas de cá, parentes muito chegados, num tu cá tu lá que cristalizou na expressão eufemística de “províncias ultramarinas”. O delírio nominativo considerava tão portuguesa a província do Algarve quanto a da Guiné, tão lusitana a do Minho quanto a de Angola ou Moçambique. O mundo é que estava errado. A geografia era um sonho. Angola confinava com o Algarve e a Índia com Trás-os-Montes. Este é que era o mapa cor-de-rosa que o outro fora o vermelho da vergonha. Salazar nunca pisara “tierras calientes “ africanas, asiáticas... nunca sentira na pele as estruturais diferenças. Era tudo Portugal do rio Minho a Timor, sem ter de vencer milhares e milhares de quilómetros e aquelas distâncias bem maiores entre povos diferentes (não se usa a abalada expressão primitivos, pois aqui na Europa não bárbara também o somos). Esse espaço de terras e gentes, fossem quais fossem os quadrantes, reduzia-os Salazar à progenitura de um ventre comum, a parir terra e pessoas tão portugueses em Amarante quanto no Huambo ou Inhambane. Havia um ventre comum. Salazar delirava com esta família universal, todinhos vestidos de igual portugalidade. Ele não fizera família e inventou a cósmica do Ultramar Português, das províncias de Ultramar, em que os angolanos eram minhotos e minhotos os pretos de cá, numa perfeita identidade. A metáfora era já realidade à força de tanto badalo, discurso, proclamação. Querer é querer crer. Salazar quis crer no que imaginara. O Ultramar eram um mero prolongamento de Portugal e tão Portugal quanto esta terrinha à beira Atlântico deitada. Oh tanta poesia! Ângelo Soares é uma voz plural. È um sentimento contra essa falsificação. É a dor de um despertar tardio. Tivesse Salazar chamado colónias ao que colónias eram e não pululariam os convictos de tanto Portugal aqui como lá ! Este Ângelo Soares tem imensa razão, dolorosa razão. Todo o acordar de um sonho é um quebranto de ânimo, um difícil retornar à realidade. Eu lembro o caso de uma amiga minha, de Pinhel, filha de um colega de meu pai, o fino, culto e saudoso Dr. Alexandre Nápoles de Mettelo Seixas. Dois meses antes do 25 de Abril de 1974 ela vendera propriedades em Portugal para adquirir um apartamento num prédio de Lourenço Marques (Maputo). Era das que dizia: “Aqui é Portugal, isto não é uma colónia, isto é uma província e entre Pinhel e Lourenço Marques não existem diferenças”.
A sua confiança era ilimitada e fruto directo da metáfora salazarista (não há colónias, há províncias). Dois meses depois ela chorava. Acabara de despertar o som dos acordos de Lusaka. Uma mentira criara todo este optimismo. Como Ângelo Soares tem razão histórica! Como é verdade o que ele diz, como se um grito de milhentas pessoas anunciasse esta verdade, o dardo contra Salazar: “A situação teria sido diferente se, como potência colonizadora assumida, o que não foi o caso, o Estado português nos tivesse prevenido, desde sempre, de que estávamos a colonizar, e que deveríamos acautelar os nossos bens no exterior...” A tal metáfora não passava de um conto do vigário em grande. Todo o conto de vigário especula com a espontânea ingenuidade dos que se deixam embalar com historietas, miragens, distorções.
O mal de tudo, a razão primeira e explicativa do fenómeno, radica em que Salazar criou a poética e fatal metáfora por não ter constituído família, por não Ter sido pai de filhos para sustentar, criar e pôr na vida como independentes (a ordem natural, gerar para os filhos serem outros pais).
Gosto de demonstrar o que digo. Há um génio da Península, mal conhecido em Portugal. Nasceu em Granada, em 1865, e suicidou-se em Riga, Letónia, onde era cônsul, no ano de 1898. O seu génio auscultava o futuro porque conhecia bem o passado e não era homem preso ao “momento”. Chamou-se esse poderoso escritor e pensador, Ángel Ganivet. Que pena o seu “Idearium espanhol” (1897) não ter caído nos olhos dos leitores de Salazar! À razão de não ter casado juntou-se a razão de não Ter lido este santo suicida, de alma extraordinária. As duas razões geraram a Salazar a impune metáfora de “províncias ultramarinas”. Pois não sentiu uma coisa primária: tudo no planeta é família, são famílias, há pais e filhos e esta ordem de gerações é que cria o comparativismo para a própria acção política.
Ángel Ganivet lavrou esta beleza de verdade e de rigor: “Há quem julgue que o termo fatal da colonização é a emancipação das colónias. A meu ver, este conceito é teórico. Também os filhos podem emancipar-se, se os códigos estabelecem quando e como se perde o poder paternal; e, todavia, muitos filhos não se emancipam nunca, nem sequer eles pensam na emancipação.
Passam de um estado civil a outro diferente, sem notar a diferença, e a ninguém se lhe ocorre esperar que chegue o dia marcado pela lei para dizer ao seu pai: “A partir de hoje cessou o exercício de suas funções que até aqui tem vindo a desempenhar.” Apenas em casos extremos se regem os homens pelo texto das leis e apenas em casos extremos lutam as colónias por conquistar a sua independência. Se mercê de uma política hábil, e mais que hábil, desinteressada, se mantém a devida unidade de ideias e sentimentos entre a metrópole e as suas colónias, se pode aplicar sem perigo e regime autonómico, que conduzirá, não à emancipação, mas à confederação das colónias autónomas com a sua metrópole; e desta forma, a autonomia não será um primeiro passo para a emancipação, será o começo de uma união mais íntima, conseguida mediante o sacrifício disso que eu chamo a dominação materialista. Mas delicadezas políticas nem sempre são práticas, porque requerem o concurso de homens especialmente educados para tão difíceis trabalhos, e nem todas as nações possuem homens desta classe. Se se implanta um regime autonómico e se se continua a fazer uso de velhos procedimentos governativos, o fracasso é seguro, e antes de chegar a ele é preferível, ou o domínio franco e firmemente sustentado, ou a emancipação franca e legalmente outorgada.
Nem todas as nações possuem homens desta classe! Como Ángel Ganivet foi bruxo! Como sentiu a humanidade uma família mas com deveres de família, não com a simulação de parecer famílial. Como ainda poderia haver Portugal por Africas e Índias e Oceanias e Ásias se visão não fosse a poética e falsa mas a realista de se chamar às coisas os seus próprios nomes! Como é este crítico Ângelo Soares o maior historiador do nosso passado recente já que os outros não sabem ver e se regem por outras abstracções! Como ele deixa Salazar desamparado na sua cova! Como finalmente vamos ter paz por se compreender as razões!
Ángel Ganivet atirou-se às águas geladas do Dwina. Nós recobramos vida com os seus conceitos formados do próprio sangue da vida, algo que tantos e tantos “políticos” desprezam...
Lá no cemitério de Santa Comba a namorada também se sente compungida. Outro galo teria cantado a Portugal se tivessem casado, se tivessem filhos...
Por: JOAQUIM de MONTEZUMA de CARVALHO
(In Jornal Correio da Manhã 04/12/1994)
CUMPRIU-SE O MAR E O IMPÉRIO SE DESFEZ... A História magoa. A independência das colónias forçou meio milhão de portugueses a tomarem parte numa ponte aérea que os desembarcou em Lisboa trazendo a amargura na bagagem e tendo de se adaptar a uma terra que, em muitos casos, não conheciam. Este blog fala de retornados, espoliados, de gente que perdeu as suas casas e os seus bens, e que, sem receber quaisquer indemnizações do Estado português, continuam nos seus sonhos a revisitar África.
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