Foi uma das maiores pontes aéreas mundiais para evacuação de refugiados. Mas eles não retornavam. Eles fugiam
"Estivadores
africanos do porto de Lourenço Marques recusaram-se ontem a carregar
barcos de carga destinados a Lisboa com bens pertencentes a colonos
brancos que regressam a Portugal. Segundo anunciaram, respondem assim a
um apelo lançado pela Frelimo no sentido dos residentes brancos
permanecerem no território, ajudando ao seu desenvolvimento. Todavia, na
capital moçambicana a tensão aumentou nos últimos dias, devido a uma
série de deflagrações (...) que devem ser obra de extremistas das
direitas."
Direitas.
Extremistas. Colonos. Brancos - esta notícia do Telejornal da RTP do dia
21 de Junho de 1974 contém os tópicos básicos das notícias sobre
aqueles que, um ano depois, passarão a ser designados como retornados.
Mas em Junho de 1974 os retornados não só não existiam como eram
precisamente aquilo que antecipada e firmemente se garantia aos
portugueses que jamais sucederia. É certo que, em 1974, existiam em
Portugal os refugiados de Goa e os refugiados do Zaire. Mas os primeiros
surgiam como o resultado dos erros de Salazar e dos segundos não só mal
se ouvira falar como também eram apresentados como a natural
consequência do colonialismo.
Os portugueses
de África confrontaram-se desde os primeiros momentos com um estereótipo
que os reduzia à caricatura dos colonos brancos, extremistas de
direita. Que para maior agravo fugiam por receios infundados e por não
quererem dar o seu contributo aos novos países africanos: "filhos
pródigos" de Moçambique - chama por este mesmo mês de Junho de 1974 o
correspondente do Expresso naquele território àqueles que já então
esgotavam os bilhetes da TAP para a viagem Lourenço Marques-Lisboa.
Mas este
enquadramento ideológico, quer das vidas dos portugueses em África, quer
de tudo o que lhes possa vir a suceder, leva a um fenómeno muito mais
profundo que a caricatura: a indiferença pela omissão. Assim,
esperar-se-ia que a situação vivida por estas pessoas em Lourenço
Marques merecesse maior atenção por parte da comunicação social daquilo a
que se chamava metrópole. Afinal, não era de modo algum habitual que
cidadãos portugueses fossem impedidos de viajar sequer pelos seus
governos, quanto mais por um movimento político armado, no caso a
Frelimo, do qual o Alto Comando Militar de Moçambique (ACMM) continuava a
dar conta de ataques - na terceira semana de Junho são imputados pelo
ACMM à Frelimo ataques a três aldeias no distrito de Cabo Delgado que
causaram uma morte e seis desaparecidos, para lá do assassínio de três
chefes tribais no distrito de Vila Pery. Mas não foi isso que aconteceu.
Mesmo a referência à carga que a Frelimo não quer deixar embarcar não
gera qualquer curiosidade. O que pretendem embarcar estas pessoas: bens
que querem colocar em segurança para o que der e vier ou a panóplia
habitual de objectos nestas viagens sazonais de reencontro com os
familiares e de apresentação dos filhos aos parentes que tinham nesse
território a que chamavam Portugal europeu? Em Lisboa ninguém se
interessou por esse assunto. Vão ser necessários muitos meses e muitos
milhares de retornados para que a imprensa portuguesa lhes dedique
espaço e para que o discurso do poder político-militar conceda que eles
existem.
Seja na versão
oficial ou no imaginário de cada um de nós, os retornados são um
fenómeno de 1975. De facto, são de meados de 1975 as imagens dos
caixotes junto ao Padrão dos Descobrimentos e das crianças sentadas no
chão do aeroporto de Lisboa. É também em 1975 que começa oficialmente a
ponte aérea que traria centenas de milhares de portugueses de África. E
finalmente é em 1975 que, perante a evidência da catástrofe, se arranjou
um termo politicamente inócuo, susceptível de nomear essa massa de
gente que só sabia que não podia voltar para trás. Arranjar um nome para
esse extraordinário movimento transcontinental de milhares e milhares
de portugueses foi difícil, não porque as palavras faltassem, mas sim
porque os factos sobravam.
Contudo, não só
muitos deles não eram retornados, pela prosaica razão de que tinham
nascido e vivido sempre em África, como surgem muitos meses antes de a
palavra "retornado" ter conseguido chegar às primeiras páginas dos
jornais portugueses. Desde Junho de 1974 que encontramos notícias sobre a
fuga dos colonos, dos brancos, dos africanistas, dos europeus, dos
ultramarinos, dos residentes e dos metropolitanos. Enfim, de pessoas
brancas, pretas, mestiças, indianas... que residiam em Angola,
Moçambique, Guiné e Cabo Verde. Nenhum destes termos é verdadeiramente
apropriado para descrever o que eles de facto eram, mas a desadequação
dos sinónimos foi breve, pois dentro de poucos meses eles deixaram de
ser definidos em função dessa África onde foram colonos, brancos,
africanistas, europeus, ultramarinos, residentes ou metropolitanos para
passarem a ser definidos em função da própria fuga. Então passarão a ser
desalojados, regressados, repatriados, fugitivos, deslocados ou
refugiados. Finalmente, em meados de 1975, tornar-se-ão retornados.
Oficialmente,
os retornados nasceram há 35 anos, em Março de 1975, através do Decreto
n.º 169/75 que criou o IARN. Ao contrário do que ficou para o futuro, as
siglas não queriam dizer Instituto de Apoio aos Retornados Nacionais,
mas sim Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais, pois quanto mais os
factos davam conta da catástrofe, mais cuidado punha Lisboa na gestão
das palavras. O texto introdutório do decreto explica a criação do IARN
como uma medida de "prudente realismo" perante a possibilidade de advir
do "processo de descolonização em curso (....) o eventual afluxo a
Portugal de indivíduos ou famílias que hoje residem ou trabalham em
alguns territórios ultramarinos". Mas não só a estes portugueses se
refere este decreto. Aliás, os seus considerandos mais sérios e
assertivos (nada que se assemelhe a um "eventual afluxo", mas sim a um
retorno em "grande massa") são reservados não aos retornados de África,
mas sim aos portugueses emigrados na Europa: "Considerando que, no caso
de se verificar uma grave crise de emprego nos países principais
destinatários da emigração portuguesa, é de admitir a hipótese do
retorno de uma grande massa de emigrantes ao país". Ou seja, escassas
semanas antes de começar uma das maiores pontes aéreas mundiais para
evacuação de refugiados, numa fase em que por barco e carreiras aéreas
regulares já tinham afluído a Portugal milhares de residentes nos
territórios africanos e quando os próprios funcionários públicos
portugueses e membros das forças segurança abandonavam em massa os seus
lugares em África, o poder político-militar de Lisboa finalmente
reconhecia não ainda a sua existência mas a possibilidade de virem a
existir.
Aquilo que o
Decreto n.º 169/75 refere como "even- tual afluxo" foi o maior êxodo de
portugueses registado num tão curto período. Não se sabe ao certo
quantos foram os retornados, pois muitos "retornaram" directamente de
África para Brasil, Canadá, Venezuela ou deixaram-se ficar pela África
do Sul. E não fosse o povo ter chamado bairro dos retornados a alguns
conjuntos de habitação social, geralmente prefabricada, para onde alguns
deles foram residir, não se encontraria outra referência no espaço
público à sua existência. Até hoje ninguém os homenageou. Deles o poder
político e militar falou sempre o menos possível. A comunicação social,
tão ávida de histórias, demorou anos a interessar-se por aquilo que eles
tinham para contar. E os poucos que entre eles passaram a papel as
memórias desse tempo só em casos excepcionais conseguiram romper o
universo restrito das edições de autor.
Há 35 anos
inventámos a palavra retornado. Mas eles não retornavam. Eles fugiam.
Retornados foi a palavra possível para que outros - os militares, os
políticos e Portugal - pudessem salvaguardar a sua face perante a
História. Contudo, a eles o nome colou-se-lhes. Ficaram retornados para
sempre. Como se estivessem sempre a voltar. Ensaísta
Fonte: Público
http://lusojornal2015.blogspot.pt/2015/10/nao-eram-retornados-eram-refugiados.html
https://vimeo.com/78991361
https://vimeo.com/78991361