Exactamente. Eu tinha este know-how da minha adolescência, de ouvir a
minha mãe e outras pessoas contar histórias de Angola que não eram
faladas em Portugal. O meu pai desapareceu, mas alguns dos
“desaparecidos” vieram depois a aparecer nas prisões, com acusações
absurdas. Não estou a dizer que são todos inocentes. Mas o ambiente era
de repressão e qualquer coisa servia para atingir os fins políticos.
Essas prisões eram ilegais, clandestinas...
Claro. O que quer dizer que Portugal entregou Angola ao MPLA muito mais cedo do que se pensava. Cerca de meio ano antes.
O próprio MNE admitiu, em 1977, segundo os documentos que pública, que o MPLA prendeu portugueses antes da independência?
Exactamente.
Como define então a descolonização?
A
descolonização de Angola ainda tem muito para revelar. As pastas
governamentais têm que ser todas desclassificadas. Um balanço faz-se com
números, com casos, não se pode ficar eternamente a divagar em teorias
ou preconceitos e a ouvir sempre os mesmos.
Parece-lhe possível que desapareçam algumas das pastas que estão classificadas?
É evidente. Eu própria, nas pastas que tive acesso, vi que faltavam muitos documentos.
Como é que teve coragem para começar esta investigação?
Nunca
tinha pensado em pegar no assunto, até que, há uns anos, começaram a
ser publicados livros de fotografias de Angola e Moçambique. Eu fiz essa
reportagem, e nessa altura, em conversa com a Zita Seabra [editora da
Alêtheia], que procurava material sobre as ex-colónias, disse-lhe a
brincar: ‘se eu algum dia contasse a história da minha família...’.
Diz-me ela: “escreva que eu publico”. E esta pequena conversa veio abrir
um cofre que estava fechado a sete chaves, há muitos anos. Nós não
mandamos na nossa cabeça, não é? Saltou qualquer coisa e decidi: ‘vou
escrever a história do meu pai.’ Eu sempre achei que nós, retornados – e
eu odeio esta palavra –, fomos mal compreendidos cá.
A ideia que se fazia cá de Angola estava desvirtuada...
Completamente.
Angola era um território moderno, independentemente do sistema político
que vigorava. E ainda bem que houve o 25 de Abril. A descolonização é
que foi muito mal conduzida. As Forças Armadas Portuguesas – que
representavam o Estado português na ainda colónia – não acautelaram
minimamente a vida desta gente. Pela documentação que consultei,
verifiquei que os vários altos-comissários de Angola pediam,
repetidamente, tropas especiais, porque aquilo estava num caos. Mas de
Lisboa nunca lhas enviaram. O livro fala de Luanda em 1975. Lembro-me de
estar no quintal, e de repente ver o céu cor-de-laranja e de sentir a
terra a tremer. Dos bombardeamentos. Íamos todos os dias apanhar as
balas ao quintal. Na esquina de minha casa não havia semáforos, mas sim
guerrilheiros. Quando eles paravam de atirar, podia-se passar.
Que idade tinha?
17-18
anos. Eu vim para Lisboa em Junho de 75, um mês antes do meu pai
desaparecer. E quando cheguei aos 50 anos pensei que seria altura de
escrever um livro sobre o que vivi lá, mas dei-me conta que não sabia
nada daquela terra. Durante dois anos, li livros compulsivamente. E
escrevi a história do meu pai, mas quando cheguei à parte do
desaparecimento dele, decidi mergulhar nos arquivos, onde descobri estas
histórias inéditas.
Lembra-se do dia em que ele desapareceu (a 16 de Julho de 1975)?
Lembro.
Como é que recebeu essa notícia?
Eu
estava em casa de umas pessoas amigas, porque viemos de Angola à pressa
e não tínhamos onde ficar. Foi uma dessas pessoas que me deu a notícia.
O que é que lhe disse?
“O
teu pai desapareceu.” Desapareceu!? “O teu pai desapareceu!” E eu dei a
interpretação de uma miúda de 17 anos: desapareceu? Como? O que é que
isso quer dizer?
Teve irmãos e a sua mãe para a ajudarem a fazer essa interpretação?
Claro.
Mas nunca mais se soube nada do meu pai. As informações que tivemos, ao
longo do tempo, foram sempre contraditórias. Eu não sei que motivos
poderia haver para o seu desaparecimento. Possivelmente, não era da
mesma cor do MPLA. O que deve ter acontecido a muita gente que vem nessa
lista.
É verdade que a maioria dos presos era acusada de pertencer à UNITA ou à FNLA ou de manter contactos com os seus dirigentes?
Foi o que conclui da documentação que consultei.
O seu pai era empresário em Luanda, como era a vida dele? Tinha ligações políticas?
Não, ele era uma pessoa muito discreta. Não falava de política.
Era um homem influente?
Conhecia muita gente, foi para Angola muito cedo. Com 18 anos.
Ele emigrou com o objectivo de enriquecer?
Não.
Ele tinha sessenta e tal anos quando tudo aconteceu e considerava
aquela a sua terra. Amava-a profundamente, como muitos outros
portugueses. Não queria vir. Dizia que morria lá.
O que a leva a crer que tivesse sido raptado?
Pelo
que descobri nos arquivos, as pessoas eram raptadas porque lhes
cobiçavam o carro, os bens, ou porque não eram da cor política. Por
variadíssimas razões. Acho que quiseram correr com os brancos de Angola
que estavam lá radicados há mais tempo.
Acredita que no caso dele foi por lhe cobiçarem os bens?
Não sei. Houve casos tão absurdos que qualquer coisa pode ter servido de pretexto.
A sua família seguiu alguma estratégia para o encontrar?
Através do Ministério dos Negócios Estrangeiros, com cunhas a ministros e cartas à Presidência da República.
Cunhas?
Sim,
para nos receberem. Eles não recebiam os familiares destas pessoas,
porque lhes era um assunto incómodo. Lembro-me de ter ido uma vez com a
minha mãe falar com o ministro Melo Antunes.
Das
denuncias feitas pelos familiares dos portugueses desaparecidos, desde o
MNE, à Presidência da República, à Cruz Vermelha, quais destes
organismos oficiais intercederam realmente a favor dos desaparecidos?
Certamente que se empenharam, mas pouco resultou. Uma coisa não fizeram: denunciar a situação à comunidade internacional.
Politicamente, Portugal estava interessado em questionar?
Não.
Aliás, todos estes portugueses me contaram como havia instruções
rigorosas para não falarem à Imprensa. E esta é a primeira vez que eles
contam a história. Eu encontrei-os porque lhes queria mostrar a
fotografia do meu pai. Pensava que, se eles foram presos antes da
independência, e como o meu pai desapareceu nessa altura, se tivesse
sido preso, ter-se-iam encontrado. Só que, de facto, pelo que se
percebe, havia várias hierarquias de presos e prisões e uns nunca viam
os outros.
E nunca ninguém viu o seu pai?
Há manuscritos que dizem que sim, mas eu pergunto-me: ‘serão verdadeiros?’
Faz ideia sobre como é que ele terá morrido?
Há
a hipótese de ter sido fuzilado, como foram outros portugueses,
nomeadamente, durante o 27 de Maio de 1977. As prisões em Angola, não
tinham a lista dos que entravam, só dos que saiam. E isso vem
reconhecido por um diplomata português, num telegrama. Não sabemos
quantos ficaram pelo caminho...
Só em 1999 conseguiram obter a certidão de óbito dele. Porquê tão tarde?
Como não há corpo, a morte tem que ser presumida. E têm que passar esses anos para ser oficializada.
A sua família viveu sempre com algum sentimento de injustiça, de impunidade?
Evidentemente.
Fala no seu livro, 'en passant', do calvário da sua mãe por não saber do paradeiro dele. Como foram vividos estes momentos?
Com
muita dor. Houve um ano em que recebemos um telegrama a dizer que ele
estava bem e deveria regressar a Portugal no Natal. Mas os anos passaram
e nada aconteceu. E a partir de uma dada altura, ele já teria uma certa
idade, deixámos de pensar nesses termos...
O que aconteceu aos prisioneiros após a independência?
Só falei com alguns, mas o livro refere os tormentos por que passaram muitos outros.
Como é que foram tratados estes prisioneiros?
Está
aí tudo no livro. Eu acho que eles eram tratados pior que animais.
Passavam fome, frio, não tinham sol, sofriam torturas inenarráveis. Não
havia médicos, muitos morreram. Acusados sem julgamento. Este é o pedaço
da nossa História Contemporânea que falta contar. O que se passou foi
escandaloso.
Quando fala de escândalo refere-se à forma como os portugueses foram deixados lá pelo Governo português?
Sim e de como foi a própria descolonização.
O livro fala de ligações da polícia portuguesa e das Forças Armadas portuguesas com o MPLA. Qual era o interesse?
Achavam
talvez que fosse legitimo que o MPLA tivesse o poder. Mas, de facto,
Portugal assinou acordos com os três movimentos. E quem fazia parte dos
outros movimentos não podia ter sido marginalizado.
Era uma traição à pátria...
Claro
que sim. Então, deixam-se compatriotas num sítio quando se sai de lá
para sempre, sabendo que eles ficam naquelas condições? Porque eles
sabiam o que se passava.
Conte-me o que descobriu sobre os movimentos clandestinos dos partidos políticos angolanos antes da Independência?
O
que mais me chocou foi a Polícia Judiciária, muitos meses antes da
independência, ter agentes seus a trabalhar com seguranças do MPLA – o
que legitimava as prisões. E outra das coisas que me impressionou, foi
saber que a PJ – que não tem nada a ver com esta de cá – era quem
seleccionava os presos portugueses que eles deixavam embarcar.
O
MPLA apresentou diversos presos como criminosos que fariam oposição ao
processo de descolonização e de Independência de Angola. Fez-se
propaganda com eles?
Fez-se:
o MPLA deu uma conferência de imprensa, quatro dias após a
independência, exibindo-os como mercenários. Não era verdade para todos.
O próprio MPLA reconheceu que os aprisionara e não os tinha entregue às
autoridades portuguesas, que era o que lhe competia.
Nenhum deles nunca foi julgado, pois não?
Não, nenhum.
Qual foi a história que conta no livro que mais a impressionou?
A
da médica, porque ela desmentiu um boato: a imprensa do MPLA publicou
uma notícia a dizer que tinham sido encontrados órgãos humanos numa das
delegações da FNLA. Isso era mentira, porque tinham roubado esses órgãos
do teatro anatómico da maternidade de Luanda, onde essa médica
trabalhava. Foi ela que desmentiu o boato contra a FNLA. E isso levou a
que a tivessem raptado. Ela é uma das desaparecidas. É preciso explicar o
porquê.
O MPLA tinha ecos na Imprensa portuguesa?
Tinha.
Portugal vivia em 1975 o Verão Quente, o PREC, as esquerdas estavam
todas em alvoroço. Foi neste cenário que tudo aconteceu.
Independentemente disso, abandonaram lá portugueses.
Escreveu
um livro ao estilo de reportagem. Pretende que fossem os sobreviventes
das prisões clandestinas em Angola a contarem o que se passou?
Quis dar voz a quem ainda não a teve. Por isso ponho as pessoas a falar à vontade. Mas há muita gente que não quer.
É traumatizante não é?
Claro que sim.
Sente esse trauma?
Agora libertei-me dele. Mas, durante muitos anos, foi um grande peso que senti na alma.
Procurou a ajuda de algum psicólogo ou psiquiatra?
O que mais me ajudou foi conversar com pessoas que passaram por situações semelhantes. Foi este livro.
De certa forma, sente que está a fazer justiça ao publicar o livro?
Nunca
se poderá fazer justiça a toda esta injustiça. É demasiado grande. Mas
acho que temos que começar a abrir os ficheiros secretos da
descolonização. E ainda há muitos.
Sabe
se algum familiar destes desaparecidos, ou dos presos, alguma vez
apresentou um processo judicial contra o Estado português?
Acho que vontade não faltou.
O que é que estes Ficheiros Secretos pretendem principalmente denunciar do processo de descolonização?
Pretendem
contar histórias ainda desconhecidas. De cidadãos portugueses que foram
abandonados e de decisões políticas e militares que se revelaram
desastrosas. Está tudo documentado.
O que é que descobriu?
As
autoridades portuguesas estiveram lá, na última etapa, como se não
estivessem. Se formos ver o que se passou, eles fizeram muito pouco
pelos portugueses que lá estavam e que sempre lá estiveram. Viam-nos
quase como se não fôssemos portugueses, mas como os brancos que “se
meteram” com os movimentos. Tiveram o mérito da ponte aérea – com muita
ajuda estrangeira. Angola foi abandonada, com portugueses dentro. E as
coisas têm que ter dignidade. Admiro os países que trazem para a pátria
os seus mortos de guerra e lhe conferem essa dignidade. Em Portugal é o
contrário. Ainda temos corpos de soldados portugueses da I Guerra
Mundial na Europa e ainda há corpos de soldados portugueses nas
ex-colónias africanas. O Estado português não dignifica os seus mortos. E
portanto não se dignifica a si próprio.
PERFIL
Leonor
Figueiredo, de 52 anos, foi jornalista do Correio da Manhã e depois, 21
anos, do ‘DN’, título onde tencionava publicar o trabalho que deu
origem a este livro.
FICHA DO LIVRO ‘FICHEIROS SECRETOS DA DESCOLONIZAÇÃO EM ANGOLA’, DA AUTORIA DE LEONOR FIGUEIREDO
Edições Alêtheia, 16€ (à venda nas livrarias a partir de 7 de Agosto)
Durante
mais de 30 anos, a jornalista Leonor Figueiredo procurou pistas sobre o
desaparecimento do pai em Angola, em Julho de 1975. Nos arquivos do
Estado, descobriu mais de 250 portugueses que foram ‘esquecidos’
propositadamente. Encontrou cinco antigos presos em Luanda, na esperança
de que conhecessem o seu pai. Resultado: pouco escreveu sobre o pai mas
recolheu para este livro arrepiantes testemunhos da prisão e do
abandono na ex-colónia.
AS PÁGINAS DA MEMÓRIA ANGOLANA: PRÉ-PUBLICAÇÃO
O JORNALISTA GEORGES LECOFF TESTEMUNHA O SOFRIMENTO DAS FAMÍLIAS DOS PRESOS
'Dia
9 de Novembro de 1975. Era um domingo de fim de Primavera, e o
jornalista Georges Lecoff dava uma volta por Luanda. Foi à fortaleza de
São Miguel, ainda com sinais da presença de alguns funcionários e tropas
portugueses que «há várias semanas» tinham a impressão de que já não
faziam «nada» em Angola. Foi então que assistiu à presença de várias
mulheres que choravam, pedindo aos militares portugueses para salvarem
das prisões do MPLA «um pai, um marido ou um filho, sem nada
conseguirem, além de boas palavras». O jornalista lembrava-se de que
«algumas dezenas» de portugueses tinham sido encarcerados «sem que o
exército português tivesse interferido»'
UMA MÉDICA ENTRE OS VIVOS E OS MORTOS
'«(...)
A minha mãe tinha estado a trabalhar na maternidade até às quatro ou
cinco da manhã. Por isso, quando lhe foram bater à porta, ela veio
abri-la em pijama. Eu só acordei quando ouvi o barulho da discussão.
Venho à porta e vejo três negros à civil, a discutir com ela. Durou uns
dois minutos. Estavam no patamar das escadas do prédio. Diziam: ‘A
senhora vem, vem… já lhe disse que vem!’ Agarraram nela e levaram-na. Eu
tinha 13 anos, não tive capacidade de reacção. Tenho o filme na minha
cabeça. A minha mãe foi raptada, sem nenhuma dúvida. Agarraram nela,
levaram--na, de camisa de noite e robe. Nem sequer a deixaram vestir-se.
Meteram-na num jipe e foram embora. Agarraram-na e levaram-na. Foi
assim…»' (...) '«O que nos foi dito é que terá sido levada para a Praça
de Touros, em Luanda, e morta dois ou três dias depois de raptada.»'
LUÍS GUERREIRA PEREIRA, DETIDO EM FINAIS DE JULHO DE 1975
'«Sofri
muito no dia seguinte. Bateram--me bastante, torturaram-me diversas
vezes. Fisicamente, três ou quatro vezes, mas psicologicamente muitas. A
partir daí a minha detenção foi muito acidentada, porque eu não sabia o
que me iam fazer a seguir. Levaram-me para quatro ou cinco sítios
diferentes. Tiravam-me o adesivo dos olhos e o capuz, e de repente eu
estava numa casa de banho. Nunca via o exterior. Na mesma época passei
por quinze ou dezasseis, para não exagerar, cubículos diferentes:
pequenas áreas, cozinhas, casas de banho… Levaram-me para a Praça de
Touros, em Luanda, poucos dias depois, para ser abatido e enterrado. Eu
ouvira dizer na FNLA que eles matavam ali as pessoas e enterravam-nas na
arena. Lembro-me de estar lá, com as mãos amarradas atrás das costas,
com adesivo nos olhos e um saco na cabeça. No corredor de acesso à
arena, encostaram-me à parede e a caliça saltava e picava com os
disparos que eles faziam à volta do meu corpo. Aquilo foi encenado, eu
não era para ser fuzilado. Mas só vim a sabê-lo depois. Fiquei lá umas
duas horas.»'
OS PRESOS TINHAM CONDIÇÕES 'RAZOÁVEIS', SEGUNDO O REPRESENTANTE DO MNE
Em
Dezembro de 1975, informou Lisboa da presença «no Campo da Sapu de
quinze presos acusados envolvimento FNLA antes independência». Dizia o
representante português que as suas condições eram «razoáveis». «Alguns
vêm trabalhar cidade, outros trabalham próprio campo. Não têm sido
maltratados. Dizem não recear julgamento pois muitas acusações feitas
seriam fantasia. Alimentação é muito fraca (...). Principal queixa que
têm é incerteza sua situação: desde há três semanas que lhes dizem quase
diariamente que vão ser libertados, o que não se verificou até agora.»'
'CECÍLIA EFRATI: UMA NOIVA QUASE ETERNA'
'Desaparecer
é diferente. Quando se vê um corpo, dói, mas depois fazemos o luto. Com
um desaparecimento, passamos por fases incríveis, mas não esquecemos.
Três meses antes de o Jorge desaparecer tínhamos perdido o nosso bebé.
Entrei, então, numa fase má, da qual muita coisa ficou nublada na minha
memória.' (...) 'Fiquei em Angola, na esperança de encontrar um rasto do
Jorge. Em 1976, vim conhecer Portugal, e regressei. Mas, em finais de
1978, deixei Angola.' (...) 'Só muitos anos depois, quando fiquei
grávida do meu filho mais velho, do novo casamento, sonhei pela primeira
vez com o Jorge. Nesse sonho, contámos tudo um ao outro. Ele até pôs a
mão na minha barriga. Tive a sensação de que esta criança vinha puxar-me
de novo para a vida. A partir daí, comecei a pôr uma pedra sobre o
passado. Mas a dor fica sempre num canto do coração.'
HOMEM DISCRETO E EMPRESÁRIO
Em
1928, aos 18 anos, João Cândido Figueiredo (na foto ao lado) partiu
para Angola. Tornou-se empresário em Luanda. Era um homem discreto que
não falava de política. Desapareceu em Julho, o mês mais crítico de
1975. A família, que já tinha fugido para Portugal, nunca mais ouviu a
sua voz; nunca mais o viu. Seguiu-se um calvário indescritível para
desvendar o seu estranho desaparecimento. A sua mulher meteu cunhas a
ministros, chegou à fala com Melo Antunes, mas foi tudo em vão.
'VERGONHA DE SER PORTUGUÊS'
Leonor
Figueiredo foi jornalista do Correio da Manhã até ao final da década de
80. A 25 de Maio de 1987 publicou um artigo (ao lado) com as revelações
de Américo Pires Afonso, ex-detido nas prisões clandestinas de Angola.
'Eu vivia aterrorizado com os gritos nocturnos dos presos das celas
vizinhas. A prisão de Catete era composta por várias galerias e
subterrâneos onde as pessoas desapareciam e nunca mais eram vistas.
Todas as noites havia tortura de presos do processo Kamanga, relacionado
com o tráfico de diamantes. Chegavam às celas todos partidos e cheios
de sangue', relatou ele à jornalista. 'Portugal teve um comportamento de
abandono total. Será que o petróleo tem mais valor do que os
portugueses que estavam em Angola? Eu tenho vergonha de ser português',
confessou Américo.
Bruno Contreiras Mateus
CORREIO DA MANHÃ(Lisboa) – 26.07.2009