sábado, 27 de novembro de 2010

O último Ano em Luanda de Tiago Rebelo


A minha sobrinha ofereceu-me este livro que tem a chancela da Editorial Presença. Interesso-me por tudo que se relaciona com África e em especial, por Angola, a minha Pátria.
Posso dizer-vos que o estou a "devorar", com um misto de saudade, angústia e ao mesmo tempo uma "raiva" incontrolada que muitas vezes se transforma em lágrimas nos olhos...
Mesmo assim, gostaria de partilhar e aconselhar-vos a leitura deste livro, onde Tiago Rebelo, tão bem, soube transmitir a angústia de todos nós, que nos anos 74/75 fomos abandonados pelo poder político vigente em Portugal...
Aqui vos deixo a sinopse do mesmo:
Em 1974, uma revolução em Lisboa apanha de surpresa centenas de milhares de portugueses que vivem em Angola. A partir desse dia inicia-se a derrocada imparável de uma sociedade inteira que, tal como um navio a afundar-se, está condenada à destruição e à ruína. Em escassos meses, trezentos mil portugueses são obrigados a largar tudo e a fugir, embarcando numa ponte aérea e marítima que marca o maior êxodo da história deste povo. Para trás ficam as suas casas, os carros e até os animais de estimação. Empresas, fábricas, comércio e fazendas são abandonados enquanto Luanda, a capital da jóia da coroa do império português, é abalada por uma guerra civil que alastra ao resto do território angolano. Três movimentos de libertação, cujos exércitos estavam derrotados a 25 de Abril de 1974, estão novamente activos e combatem entre eles pelo poder deixado vazio pelas Forças Armadas portuguesas. É neste cenário de total desorientação social e de insegurança generalizada que Nuno, um aventureiro que há anos atravessa os céus do sertão angolano no seu avião, Regina e o filho de ambos se movem, numa extraordinária luta para sobreviverem à violência diária, às perseguições políticas, às intrigas e traições que fazem de Luanda uma cidade desesperada. Esta é a história de coragem e abnegação de um casal surpreendido, tal como milhares de outros, num processo de degradação que se deve à recusa do Exército em defender os seus próprios compatriotas a favor de um movimento até há pouco inimigo, ao desinteresse dos políticos, à total incapacidade do governo de Lisboa para impor os termos de um acordo assinado no Alvor e constantemente violado em Angola e à intervenção militar das duas potências mundiais envolvidas numa guerra fria que é combatida por intermédio dos exércitos regionais.
Críticas de Imprensa:
«Um romance fácil de ler e em cujo ambiente é fácil entrar.»
Os Meus Livros

«...O Último Ano em Luanda, onde revela não só um perfeito conhecimento da época em que se desenrola a acção, como descreve com muita clareza um dos mais trágicos e mais silenciados processos da recente história portuguesa.»
«Jornalista e escritor, Tiago Rebelo nasceu em Lisboa há 43 anos. Dos dois aos 11, viveu em Angola, experiência que serviu de base ao mais recente livro, "O Último ano em Luanda", já em lugar cimeiro nas tabelas de vendas.»
Jornal Notícias

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

ADEUS ANGOLA : fuga do Lubango


Esta página tem por finalidade, transmitir às novas gerações,  momentos vividos por mim e familiares para que o que passamos, não caia no esquecimento.

Às seis horas do dia seis de Setembro – sábado – em caravana de umas 300 viaturas, escoltada por 30 militares, arrancamos do Lubango rumo à África do Sul. Percorridos 380 km, sem problemas, às 17 horas atravessamos a fronteira de Santa Clara. Aguardava-nos um grupo de militares sul-africanos com colchões, cobertores, alimentos em conserva, água, refrigerantes e, até, uns cubos combustíveis para amornar os enlatados. Pernoitamos ao relento. Não fazia frio.


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Às onze horas do dia seguinte – com feijão ao lume para o almoço – chega uma ordem de partida para Oshakati. Todas as viaturas foram reabastecidas (de graça) até à boca. A deslocação durou umas duas horas. Em Oshakati fomos “instalados” num campo próximo do hospital missionário, preparado para a situação, com algumas tendas, água encanada, latrinas e balneários. Com lenha à mão, o feijão volta ao lume. Cozido e apurado, foi servido como almoço/jantar.

No dia seguinte, de manhã, as autoridades, por altifalante, ordenam a formação em fila para registo dos refugiados e vacinação. Terminadas estas formalidades as autoridades solicitam – sob aviso de inspeção – a entrega de armas, drogas e literatura pornográfica; e diamantes a enviarem para classificação em Pretória e posterior pagamento de oitenta por cento do seu valor. Aos portadores de café, se desejassem vendê-lo, ser-lhes-ia passado um salvo-conduto para todo território sul-africano. Por fim foi-nos dada liberdade para exposição e venda (sem encargos) dos artigos que conseguimos transportar (salvados!).

Ali vendemos duas viaturas, uma moto, frigoríficos, máquinas de costura, fogões, louças, porcelanas, talheres e mais artigos. Tudo por um quinto dos justos valores.

Na tarde do dia nove somos avisados da partida no dia seguinte para o campo de Grootfontein, a 300 km.

A nosso pedido, por conveniência – em troca de umas garrafas de whisky – foi-nos permitido permanecer mais um dia no campo. Assim, o nosso grupo, agora em quatro viaturas, partiu isolado. Eram onze horas – onze de Setembro de 1975. Percorridos uns 100 km parte-se o veio da bomba de injecção da Bedford, sendo levada a reboque. Obrigados a marcha vagarosa passamos a noite, ao relento, em Tsumeb. Alcançamos o campo de Grootfontein às catorze horas do dia doze.

Ficamos todos alojados em tendas militares, com colchões e cobertores de sobra. Existiam balneários e latrinas suficientes, apesar dos estragos causados, por malvadez, pela leva – mais numerosa – que nos antecedeu.

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Campo de refugiados em Groodfontein


Funcionava um serviço de pequeno-almoço e almoço. Porque era sempre a mesma “ementa” (carne de vaca com ervilhas) e mal confeccionada, passamos à cozinha própria, até para consumir a grande quantidade de provisões levadas de Angola.

Em tenda própria funcionava um serviço de assistência médica prestada pelo Dr. David Parson, filho do já referido Dr. Parson do hospital do Bongo.

Cerca de uma semana após a nossa chegada ao campo, o nosso grupo divide-se: Camilo, Adelaide, sete filhos com idades entre um e treze anos, em transporte rodoviário ocasional, partem para Windhoek; e dali, de comboio, até Johanesburgo munidos das passagens de avião, compradas em Angola, com destino ao Brasil.

Nos finais de Setembro o Dr. David anuncia a possibilidade de emigração dos refugiados no campo para os E.U.A., com transporte aéreo gratuito, através de uma instituição americana. Só seriam aceites inscrições de pessoas com os passaportes válidos.

A notícia despertou certa euforia. Como nem todos possuíam passaporte, por solicitação dirigida ao Cônsul de Portugal em Windhoek, este fez deslocar um funcionário ao campo a fim de formalizar a emissão dos passaportes. O meu, tem o número 278/75; o da Lucília, 282/75, emitidos em 3 de Outubro de 1975, assinados pelo Cônsul Carlos E. de Sousa Aragão.

Tantas voltas para nada. Efectuou-se apenas um voo. Explicações: insuficiência de fundos!...


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Grootfontein. – Sítio árido, sol escaldante. Foi ali, numa tarde da primeira quinzena de Outubro, por carta de Maria Andrade para a Amélia, por intermédio duma prima em Lisboa, chegou a dolorosa notícia do falecimento do Pai, Avô, Bisavô, Irmão, Sogro aos que, uns dias atrás, o haviam visitado em sinal de despedida, agora tão distantes!

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Campo de refugiados em Groodfontein

Os dias foram passando. Monótonos. Tórridos de sol a sol; frios durante a noite. No exterior da vedação mais de uma centena de vários tipos de viaturas estacionadas. Umas com as cargas de origem; outras vazias. No campo de Windhoek a situação era idêntica. Os seus proprietários – alguns já em Portugal – a vende-las por valores humilhantes preferiram abandona-las.

As autoridades sul-africanas não prometiam o embarque destas para Portugal; e da parte do governo português, nem sinais. Assim, a aproximar-se a hora da nossa “repatriação”, acabamos por “vender” as quatro viaturas por cerca de 50 contos. E, por muito favor, l000 litros de combustível e 500 de óleo por 5 contos.

De pasmar: nas vésperas da devolução do campo todas as viaturas abandonadas foram recolhidas para um recinto vedado; e no decorrer de 1976, tal como haviam sido abandonadas, despachadas para Portugal e entregues aos seus donos.

No dia 22 de Outubro é anunciada a nossa partida. Nessa noite, militares e alguns residentes da cidade, honraram-nos com uma festa de despedida, no recinto de jogos desportivos, com grupo musical.

No dia 23, os nossos pertences, devidamente rotulados, são transportados para a estação do comboio; e, de seguida, as pessoas: acomodadas, por agregado, em cabines com beliches de acordo com o número de indivíduos. Coube-nos a cabina 21, onde encontramos latas de conservas, fruta natural e bebidas. Ao meio-dia em ponto, ouve-se o silvar do comboio. Em toda a sua extensão, o acenar de muita gente, entre esta um Padre a dar-nos a sua bênção. Bem – hajam! Adeus Grootfontein!

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Partida do campo de refugiados de Groodfontein para a estação de comboios.

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Os poucos que ficaram no campo – entre estes o Zeca, Amélia e filhas – foram enviados para Johanesburgo, e dali, de avião, para Portugal.

Cerca das l7 horas o comboio pára na estação de Otchivarongo, para atrelagem doutras carruagens com mais gente proveniente do campo de Windhoek. Retomada a marcha, sem paragens, às 8 horas do dia 24, ouve-se o chiar dos travões a anunciar o fim da viagem e da linha-férrea. Estávamos no porto de Walvis Bay.

Sob denso nevoeiro, 1500 (?) desafortunados, em fila, vão sendo transferidos para bordo dum navio de cruzeiro, fretado pela África do Sul. A operação, cuidadosamente controlada pelas duas partes – autoridade sul-africana e tripulação do navio –, demorou umas duas horas. Foi respeitada a atribuição de camarotes e beliches de acordo com a praticada no comboio. Calhou-nos o camarote 21. Foi servido almoço e jantar no navio, ainda ancorado.

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Dormimos bem. Seriam seis horas, dia 25, quando nos apercebemos que o “Oceanic”, de Taiwan, já havia levantado ferro. Cumpria a sua terceira e última viagem: numa missão sem nome.

 ADEUS ÁFRICA!

BARCO

Oceanic Independence, o navio que nos trouxe para Portugal.


A bordo, em gabinete adequado ao seu trabalho, encontrava-se uma funcionária do Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais – IARN, de nome Lígia. A sua missão consistia no contacto com as famílias nucleares e indivíduos solitários – constantes da relação em sua posse – para efeitos, se necessário, de alojamento em Portugal.

Às 8 horas da manhã do dia 7 de Novembro o majestoso transatlântico “Oceanic” entra na barra do Tejo. Às l0 horas atraca no Cais da Rocha, Lisboa. É colocada a escada para o desembarque. Mas tal não acontece. A “mando”duma comissão, previamente constituída – apoiada por todos –, o desembarque só teria lugar mediante a troca dos escudos “coloniais” por escudos portugueses. O refeitório, servido o pequeno-almoço, foi encerrado. Mesmo num entra e sai da funcionária do IARN para atender à situação, manteve-se o impasse. Ante tal momento, foram distribuídas latas de feijão, fruta e leite.

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Às 22 horas é anunciada a troca da moeda, no aeroporto. As deslocações seriam de autocarro, em grupos de 30: cabeças dos agregados familiares e solitários. Em qualquer das situações, a troca era de 5.000$00 apenas! Atendidos os dois primeiros grupos – dos quais fiz parte – as operações foram suspensas.

No aeroporto, pelo mesmo motivo, assistia-se a uma situação confrangedora: na zona das chegadas, gente deitada no chão, enquanto os mais fortes, revoltados, mantinham-se firmes.

Retornados

No dia 8 foram distribuídas pelo IARN senhas individuais de almoço, servidos pelos restaurantes próximos do cais.

Com a tripulação do navio a dar sinais de impaciência, a meio da tarde os passageiros espalham-se pelas varandas e convés com gestos de manifesto protesto. Depois dum constante sobe e desce, é retomada a troca de moeda no aeroporto. A comissão recusa mais deslocações. Exige que a operação fosse efectuada no navio. Quase de imediato entram dois “bancários”, com suas maletas, acompanhados por funcionários do IARN. Terminadas as transações, o pessoal abandona o navio. E, de seguida, descarregadas as bagagens, atiradas brutalmente para o chão pelos malvados estivadores.

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De rol nas mãos, os funcionários do IARN fazem a chamada e em simultâneo a separação em grupos – de antemão selecionados – para diversos locais de alojamento. Calhou-nos o Grande Hotel da Figueira da Foz. Onde, acompanhados pela S.ª Lígia, chegamos já próximo da meia-noite. Distribuídos os quartos – coube-nos o 421 –, mesmo àquela hora tardia, foi-nos servida, nos aposentos, uma merenda.

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Desgraça nossa: estávamos em Portugal; num Portugal sem rei nem roque… Em Angola, éramos cidadãos portugueses; da fronteira de Santa Clara ao porto de Walvis Bay, refugiados portugueses; em Portugal, apátridas! Os Bilhetes de Identidade de Cidadão Nacional, encimados com a distinção

 “R E P Ú B L I C A P O R T U G U E S A”

passaram a imprestáveis; nem sequer aceites para transcrição e posterior emissão dum novo B.I. de Cidadão Nacional. Para o efeito, era exigida a certidão de nascimento e a dum ascendente português constante na certidão. Em certos casos difícil e noutros impossíveis de satisfazer: daí o arrastar dos processos durante muitos anos e, até, esquecidos!

Do execrável e enganoso Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais – covil de ladrões – só a palavra retorno produziu efeito: enriqueceu o vocabulário com o douto adjetivo:

RETORNADO!...

Texto de Jorge da Conceição Rodrigues



«A incompreensão do presente nasce fatalmente

da ignorância do passado".

Marc Bloch

A integração dos “retornados” no interior de Portugal: o caso do distrito da Guarda

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quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Angola, a terra prometida

Há uma nova geração a querer partir para aquela que foi a jóia do colonialismo português. Mas existem também os outros, os que nunca voltarão a África e continuarão aqui, alimentados pela nostalgia de um espaço. Ou será antes de um tempo?
Luís Palmeirim poderia dizer o mesmo que o herói de Apocalipse Now: «Pedi uma missão e deram-ma.» Mas, no seu caso, o objectivo era mais do que pacífico, apesar de, nesse ano de 1997, Angola estar ainda a ferro e fogo. Teria de medir e pesar crianças de duas aldeias perdidas no Kwanza Sul. E, ao contrário do protagonista do filme, não ficou com razões para se arrepender da aventura em que se metera. A Angola real estava muito longe de corresponder à que idealizara, mas nem por isso o fez menos feliz.
«Os olhos com que vejo Angola não são os do português médio», diz Luís Palmeirim, hoje com 31 anos. E tem todas as razões para o que afirma. Aos 25 anos despediu-se da multinacional onde era gestor de marketing para correr mundo e acabou a trabalhar dez meses em Angola, como voluntário. Sempre tivera curiosidade de ver a terra onde chegara com 3 meses e de onde toda a família partira tinha ele 3 anos. O pai foi o último presidente da Câmara da Luanda colonial.
Afinal, as crianças estavam óptimas. É verdade que algumas choravam quando ele aparecia, porque nunca tinham visto um branco, um pula. Mas a ONU não tinha razões para se preocupar com a situação nutricional dos miúdos de Porto Amboim e Sumbe, por onde andou durante dez dias. A ele, que é gestor e tem hoje a sua própria empresa, a situação só lhe confirmou que estava certa a teoria de Keynes, o pai da economia de mercado pura e dura: «Há uma mão invisível que faz com que, se ninguém intervier, as coisas funcionem bem por si próprias.» Traduzido para Angola, o princípio deve entender-se assim: «Se ninguém intervier, os angolanos sabem tratar deles muito bem. O problema é que toda gente lá quer mexer, porque aquilo é riquíssimo.»
Luís cresceu a fantasiar com uma África que conhecia pelas memórias da família. Como o dia em que o irmão Jorge, hoje biólogo, queria levar para casa uns jacarés recém-nascidos que estavam mal instalados no zoo. Ou a noite em que os pais atravessaram uma savana a arder. E ouvia histórias de rituais de tribos, de quando viviam no interior.
Foi numa Luanda idealizada que Luís aterrou, em Agosto de 1997: «Imaginava uma marginal fascinante, com as palmeiras direitinhas e calçadas à portuguesa com as pedras ainda no sítio.» A Oikos, uma organização não-governamental, escolhera-o para o seu escritório na capital angolana.
A realidade não podia ser mais contrastante. Não tanto pela pobreza, até porque já estivera na Índia e, «para isso, estava vacinado». Mas encontrou uma cidade degradada, para onde a guerra levou mais de três milhões de refugiados. Tinha de saltar por cima de um esgoto para entrar no seu prédio, onde era, aliás, o único branco. E o Governo mandara selar a caixa do elevador, para que não continuasse a ser utilizada como lixeira. Depois da independência, os técnicos partiram e muitos elevadores continuam estragados, sem funcionar.
Visitou a casa onde começou a andar e ali encontrou instalada a Texaco, uma petrolífera americana. Esteve em oito províncias, apesar da guerra. Lidou com «coisas frustrantes», como a burocracia e a corrupção. Aprendeu a palavra gasosa, o pequeno suborno que se paga em situações de aperto, por exemplo no trânsito, e viu até que podia sobreviver sem o pagar.
A imagem da cidade não correspondia à sua expectativa, mas do ponto de vista humano era «muito intensa». E imprevisível. Quando saía de casa, sabia que ia sempre acontecer-lhe «algo com que não contava» Ele gostava desse sentimento.
E construiu até a sua própria teoria sobre aquela ex-colónia: «Acho muito relativo que aquilo seja perigosíssimo. Não é verdade que os angolanos nos tenham raiva, por essa ideia de que andámos lá a explorar o preto. Se o colonialismo pecou por alguma coisa, foi por paternalismo. As pessoas são até um pouco ingénuas.»
Hoje, Luís tem uma ligação profissional com a Oikos, enquanto ambiciona vir a levar a sua empresa para Angola e Moçambique. E dividir a vida entre dois continentes, mas «viver mais lá do que aqui».
Luanda a dois tempos
Precisamente no dia 25 de Abril de 1974, Marques Palmeirim demitiu-se de presidente da Câmara de Luanda, percebendo que aquela deixara de ser a «sua» cidade. Mas nem por isso menos pacífica: «Ninguém me fez mal nenhum.» Já em Lisboa, os desajustes com o novo poder, devido aos cargos que ocupara na administração ultramarina, valeram-lhe três meses de suspensão.
Palmeirim nunca voltou a Angola. A seguir ao 25 de Abril não tinha vontade: «Eu vivi aquilo. E parte das coisas tinham sido destruídas.» O tempo, porém, deu-lhe outra dimensão da perda. Agora, gostava de «ir matar saudades, ver a marginal, a baía, e tomar um grande banho na ilha». Tem hoje 71 anos, e a forma de regressar foi entusiasmar o filho à experiência africana: «Ele encontrou o calor humano de que me lembro. Talvez eu também encontrasse. E gostava de ver o que eles fizeram, talvez coisas, quem sabe?, que nós não conseguimos realizar.»
Marques Palmeirim não esteve sequer um ano na câmara, mas conhecia o terreno em que se movimentava: «Luanda não tinha o passo certo com o que se vivia na metrópole. Havia um largo percurso a fazer na Educação, na Saúde ou na rede de esgotos.» Recorda que queria transformar em bairros sociais os musseques, as cubatas da periferia, que acabaram por ficar no centro da cidade, quando Luanda cresceu. Só deixou pronto o Musseque Rangel.
A sua visão da sociedade angolana de então, que dificilmente aceita classificar de colonial, era de convivência racial e promoção das elites locais: «Quando havia um angolano para um lugar, não o dava a um branco. Por isso demorei a encontrar dois vices para a câmara.»
O arquitecto angolano André Mingas, actualmente a ensinar em Lisboa, acredita que a geração dos colonos não voltará mais para Angola, porque não irá «reencontrar o mesmo espaço». Com os filhos deles será diferente: «Os jovens já foram à escola com negros e são os que vão em Lisboa a discotecas como a Luanda ou o Mussulo, para se reencontrarem com angolanos. Esses poderão regressar.»
André Mingas descreve assim a Luanda colonial: «Era uma cidade fundamentalmente branca, com alguns negros, funcionários ou intelectuais, que formavam uma elite que se ia afirmando. Mas a generalidade dos negros vivia nos musseques.»
Os grandes pontos de encontro dos europeus eram os cinemas ao ar livre, como o Restauração, que se tornou no parlamento, o Miramar ou o Aviz, agora Karl Marx. Ainda têm alguns espectáculos, mas o cinema passou para os vídeos domésticos, devido à insegurança na cidade. E a cervejaria Biker outro must da capital, está hoje muito degradada. Os fins-de-semana eram passados no Mussulo, perto de Luanda, então uma ilha quase virgem e hoje já com algumas construções.
André Mingas fala sobre o dia típico na Luanda da sua juventude: «As pessoas vestiam-se às 5 da tarde, para irem para a zona da Mutamba, perto da marginal. Começava, então, a passagem de modelos. Ia comer-se um camarão, mas aproveitava-se para ver as lojas, com as calças de terylene ou as Lacostes e também as raparigas que saíam do cabeleireiro, na Stendhal. Todo esse centro morreu. Hoje, fica vazio ao fim da tarde.»
Já os angolanos reuniam-se nos musseques, no Centro Social de São Paulo ou em clubes como o Maxinde. Mas não era mal visto pelos negros se alguns deles frequentassem clubes de brancos: «Havia gente ligada aos movimentos de libertação que lá ia.»
Recentemente, surgiu perto do Futungo de Belas, onde funcionava a Presidência da República, a Luanda-Sul, uma zona de condomínios fechados, onde vivem os quadros das grandes empresas e ministros ou deputados. «Foi construída para ser a grande cidade moderna, alternativa à Luanda colonial, que ficaria como o centro histórico.»
Mas este arquitecto discorda da forma como o projecto foi concretizado: «Foi um erro fazer condomínios fechados, pois, à volta, já há pessoas a viver em cubatas. Sem planeamento, corre-se o risco de criar musseques de luxo.»
A hora dos negócios
André Mingas retrata a cidade actual como uma «Luanda de transição». Mas acredita que, dentro de poucas décadas, ela se tornará numa das mais importantes capitais africanas, que a geração de angolanos que tem estado espalhada pelo exterior «marcará definitivamente».
A telenovela da TVI A Jóia de África bem pode ter sido rodada em Moçambique, mas a verdadeira jóia da coroa, a menina dos olhos do colonialismo português, era Angola. Havia petróleo, diamantes, ferro, manganês, ouro. Era o maior criador de gado de África, o segundo produtor mundial de café. Como diz um diplomata português, «Angola tinha tudo».
E tem. Só que, após mais de duas décadas de guerra civi, 60% da população vive abaixo do limiar da pobreza. Mas todas as suas riquezas continuam lá, à espera. Com o cessar-fogo ainda fresquíssimo, assinado apenas em Abril, começam, lentamente, a chegar alguns portugueses e sobretudo angolanos que viviam no exterior, percebendo que esta é a hora.
«Estão a vir alguns portugueses que nunca cá estiveram. São amigos ou filhos dos que aqui viveram e lhes pegaram o bichinho de África», diz Francisco Viana, um empresário que, logo em Maio, regressou a Luanda. Filho de um fundador do MPLA, Gentil Viana, que seria preso depois da independência, Francisco vivia em Lisboa desde 1980. Hoje tem um projecto de parques industriais para Luanda, Benguela e Cabinda.
Os portugueses vão trabalhar para o Estado ou estão a abrir os seus negócios, desde funerárias, à informática ou hotelaria. Aliás, possuem grande parte dos restaurantes. «Portugal só perde nos grandes negócios», esclarece Viana. Excepto na construção civil, onde se destaca a Soares da Costa ou a Teixeira Duarte. A África do Sul meteu-se nas minas e diamantes, a França e os EUA nos petróleos, o Brasil nas obras públicas. Existe depois uma comunidade de paquistaneses e libaneses, que se fixou nos abastecimentos.
Mesmo assim, Viana acha que os quadros angolanos do exterior, que, como ele, estão a regressar são «uma força incontornável». Viveram em Portugal, EUA, Zaire, Canadá ou Inglaterra. «Há quadros nossos em todo o lado, até na NASA. E, no Governo português, temos sempre gente», diz ele, referindo-se aos políticos de vários partidos com ascendência angolana, como João Cravinho (PS), Nascimento Rodrigues ou os falecidos Sá Machado (CDS) e Luís Sá (PCP).
Francisco Viana explica que esta é «uma hora importante para marcar terreno». Por ele, dá-se por satisfeito com o regresso. «Em Angola, havendo dinheiro, corre tudo bem. Trabalho e negócios não faltam.»
Oficiais e cooperantes
Um caso específico de regresso a África é o dos ex-militares que lá estiveram em serviço. Como Rui Teixeira, hoje professor universitário, a quem o 25 de Abril apanhou como comando em Angola. Filho de um militar, oferecera-se para a tropa em tempo de guerra. Saiu de Luanda em 1975. Regressou quatro anos mais tarde, já como cooperante, para ensinar Língua e Literatura Portuguesas.
«Após o 25 de Abril, os primeiros sentimentos dos militares, quando voltavam, eram de confusão e culpa. Com o passar do tempo vieram as saudades, uma nostalgia agridoce, de uma época em que havia a guerra, mas éramos jovens», recorda Rui Teixeira. Acha que poucos voltaram, pelo menos de início. Também entre os retornados de África refere que não tem encontrado grande entusiasmo pelo regresso: «Muitos, sobretudo as mulheres, não querem voltar ao local onde foram felizes.»
Para ele, a saudade relaciona-se com o mato: «Tem a ver com dois tipos de absoluto, o infinito do espaço e a eternidade do tempo.» Mas compreende quem recorda com gosto as cidades: «As esplanadas estavam cheias de gente a beber cerveja e a comer camarão. A vida era farta. Até os soldados viviam bem. E o sexo era fácil.»
Hoje, tem o projecto de organizar um curso na Universidade Agostinho Neto, em Luanda. Conta que desenvolveu «uma relação física» com Angola, a sua segunda pátria, diferente da que tem com a primeira. Talvez porque percorria todo o país de helicóptero, quando fecha os olhos é o verde – escuro das selvas e o quase ocre das chanas, as grandes planícies do Leste angolano, que ele vê. E tem, claro, com Angola, «os laços de sangue» que uma guerra sempre deixa.
Alguns militares fixaram-se em África mesmo antes da independência. Pezarat Correia recorda que, desde o início da guerra colonial, o Governo entusiasmava os militares a passarem lá à disponibilidade, como forma de reforçar a presença portuguesa. Fazendo hoje as contas, imagina que uns 2% dos homens que comandou terão lá ficado.
Pezarat Correia foi consultor num projecto de cooperação com Angola. E as relações que muitos dos «militares de Abril» tinham com os dirigentes dos novos países africanos permitiram-lhes trabalhar em projectos de cooperação com aquele país, ou criando as suas próprias empresas, em áreas como o import-export. Foram os casos de Rosa Coutinho ou Vasco Lourenço.
Alguns dos réus do processo FUP-25 de Abril, como Otelo Saraiva de Carvalho e Mouta Liz, refizeram a vida abrindo em Luanda a Rotliz, uma empresa de import-export.
O que é a nostalgia?
A advogada Manuela Cunha cresceu em Camabatela, um planalto agro-pecuário, e sempre achou uma fantasia a tão falada nostalgia de África. Foi preciso vir para Lisboa para acreditar que isso existe. Mas de que falamos quando falamos de nostalgia?
Manuela fez parte do governo de transição após a independência, em 1975. Depois voltou a Portugal, onde estudara, e ficou, por razões pessoais, durante quase 20 anos. Hoje, dá aulas na Universidade Agostinho Neto, tem um escritório em Luanda e tenciona dividir a sua existência entre lá e cá.
Voltou ainda em tempo de guerra, em 1994, quase acidentalmente. Foi numa missão à África do Sul e passou por Luanda. Quando deu por isso, estava lá. Os amigos tinham-lhe criado todas as condições para regressar. Mas acha que ainda pouca gente está de volta: a nostalgia choca com a dificuldade em arranjar casa ou transportes. Deixou Luanda com 600 mil pessoas, reencontrou-a com 4 milhões: «Uma noite contei no átrio do meu prédio 60 crianças que lá moravam.» Luanda rebenta.
Mas, voltando à nostalgia, ficou a saber que, em Lisboa e Luanda, são, de facto, dramaticamente diferentes «os extremos», como o clima, o barulho e a cor. Só que a saudade permitiu-lhe também esclarecer um equívoco: «As pessoas, quando falam na nostalgia do espaço, querem dizer tempo.» Os dois continentes vivem a ritmos distintos.
«Em África, a bitola do tempo é o dobro da da Europa. Não conheço ninguém que não vá a casa almoçar, descansar e depois volte para o emprego, e ainda tenha tempo para ir a casa dos outros, para a conversinha de fim de tarde.»
Manuela pensa que a nostalgia tende também a confundir-se com a diferença de estatuto que muitos portugueses tiveram em Portugal e em África. Não é que todos os brancos fossem ricos: «Muitos eram remediados e alguns até pobres.» Mesmo assim, a condição era diferente. No entanto, a grande razão da saudade tem antes a ver com a forma como partiram: «As pessoas sentiram–se compelidas a sair. Nunca encontrei um exilado sem a nostalgia do regresso, mesmo quando está a viver melhor. Isso também confunde sentimentos.»
Os dias da debandada
Houve também os portugueses que nunca saíram de Angola, como Grandão Ramos, professor da Faculdade de Direito de Luanda, que fora colocado como magistrado do Ministério Público na antiga Nova Lisboa, hoje Huambo. Depois da independência, assistiu à partida dos retornados, mas resolveu ficar com a família.
Foi o terror entre os portugueses, depois de assassínios, como o do director do Observatório Astronómico ou o de um conhecido barbeiro na cidade, «sobretudo na tentativa de ficarem com as casas». Só quando o Governo considerou estes crimes políticos, com direito a fuzilamento, eles terminaram. Depois do êxodo, sobrou na capital um único juiz-desembargador. Em todo o país ficaram 20 mil dos 600 mil portugueses que lá viviam.
Como os angolanos, Grandão Ramos viveu o período das senhas de racionamento após a independência. Mas, em Luanda, o pior foi a «guerra dos três dias», depois das eleições, em 1992. Ninguém lhe fez mal, mas viveu um tempo de susto: «Só que as dificuldades também ajudaram a agarrar-nos a esta terra.»
Em 1980, este magistrado criou a Associação 25 de Abril, que já teve mais de mil sócios e hoje se fica pelas centenas, pois muitos deles entretanto partiram. Organizam conferências, uma feira popular anual e campanhas de sangue. Actualmente, estão a ultimar a Biblioteca José Saramago.
Também Fernando Rodrigues, dono dos Armazéns do Minho, nunca partiu. Ou quase. Nasceu em Luanda em 1944 e tem, aliás, as duas nacionalidades. O 25 de Abril apanhou-o no estrangeiro, em negócios. Chegou a Lisboa no mesmo comboio em que Mário Soares regressava do exílio.
Quando regressou a Luanda, encontrou a cidade em polvorosa. Na altura da independência, em Novembro de 1975, tinha nas suas empresas «sete comissões de trabalhadores e 1 200 empregados». Resolveu ficar, mas assistiu à partida de todos os seus colegas da direcção do Automóvel Club e Touring de Angola e também à dos seus sócios numa empresa de construção, que acabou por entregar ao Governo, quando deixou de ter condições para continuar.
Porém, as suas duas fábricas, uma de tintas e outra de móveis, ainda funcionaram até aos anos 90. E, no banco, não passou sustos de maior: «As contas de quem ficou nunca foram congeladas.»
O êxodo foi também precipitado pela morte de alguns comerciantes portugueses nos musseques. E muitos assustaram-se com um discurso que Fernando Rodrigues atribui a Agostinho Neto, em que terá dito que «o que era dos brancos será dos negros». Mas existem diferentes versões sobreas palavras que terão assustado os colonos. Há mesmo quem as atribua a Savimbi, que, num comício, terá dito isso em umbundo.
«Muita gente decidiu ir passar a independência a Lisboa e, depois, já não pôde voltar», lembra Fernando Rodrigues. Em 1976, surgiu a célebre lei dos 45 dias: quem se tivesse ausentado por mais tempo, teria os bens congelados.
Fernando ficou até 1977. Veio então para Lisboa, devido aos rumores de que os angolanos só iriam passar a poder sair de dois em dois anos. E, entretanto, ele mandara a mulher e os filhos pequenos para Portugal. Voltou a Luanda em 1983, mas mudou de hábitos: «Passei a estar mais confinado a casa. Não estou para ser incomodado por um polícia.»
Alfredo de Jesus, conhecido por Manguxi, vai fazer 41 anos de Angola. Nascido em Gouveia, na Serra da Estrela, foi em adolescente juntar-se à família, que tinha uma grande fazenda no Pango Aluquem, a 170 quilómetros de Luanda, na região dos Dembos. Fala hoje três dialectos.
De toda a família foi o único que ficou após a independência: «Queria segurar o que era nosso e confiava na população.» Aliás, tinha um motivo acrescido para lá continuar. Casara com uma angolana e tinha a primeira filha para nascer: «Com uma mulher negra e filhos mulatos, não sabia como seriam as coisas em Portugal.»
No Pango continuou a ser feliz, apesar da guerra: «Não tive problema nenhum. Acho até que fui protegido, por ser um branco que ficou.» Até que a UNITA tomou a zona, em 1986, e teve de fugir para Luanda. Era, então, o único português que restava no Pango Aluquem.
Manguxi, que comercializava café e óleo de palma, abriu na capital um negócio de cimentos. As propriedades foram confiscadas, mas o Governo já lhas devolveu por um bom preço. As estradas do Pango ainda não estão totalmente desminadas, mas ele voltou lá, recentemente. E mostra as fotografias que fez: «Aquilo era só mato, mas senti-me em casa.» E está a preparar o regresso.
Hoje, não só os seus irmãos querem voltar, como muitos portugueses se aproximam dele, para saber como param as modas: «Têm saudades da vida que levavam cá. Andam-se quilómetros e quilómetros para almoçar com um amigo. Muitos querem vir ver como estão as coisas que deixaram. E outros dizem que não querem morrer sem vir a Angola comer uma funjada», um prato com farinha de milho ou mandioca amassada.
O ano da esperança
«Grande parte dos portugueses que estão a voltar não são os que lá viveram», frisa Humberto Baptista da Costa, primeiro-secretário da Casa de Angola em Lisboa. Pelo que ele conhece através desta instituição, acha mesmo que a geração que foi vindo para Portugal depois da independência nem sequer ali voltará: «Passaram muitos anos, as pessoas mudaram de hábitos e aquele mundo já não é o que conhecemos.» Não se pode regressar ao que já não existe.
Constituem, de certa forma, uma geração perdida, que não voltará lá, mas que também não se sente totalmente parte daqui, apesar de se ter integrado económica e socialmente. Como diz Baptista da Costa, «vivemos no paquete». E, no entanto, houve um momento…
Durou apenas entre 25 de Abril de 1974 e o início da guerra civil, em Maio de 1975. «Foi um ano excepcional e que está muito mal estudado. É um momento em que ainda estamos todos presentes, cada um com a sua ideia de Angola, mas todos a pensar na independência. Foi o ano de todas as esperanças, de todos os projectos», explica Maria Alexandre Dáskalos, casada com o historiador Arlindo Barbeitos e ela própria a preparar o mestrado em História.
Lembra que, ao contrário da África do Sul, não houve em Angola uma organização de direita formada por brancos: «Isso teve que ver com a política do marcelismo, que foi de maior convivialidade racial e mais distensão. Mesmo os brancos aceitaram que a independência era para os negros. A Angola colonial tinha sido de separação entre o mundo dos brancos e o dos negros, com algumas pessoas que faziam a ponte entre ambos.»
Hoje, diz Maria Alexandre, «cada um tem na cabeça a sua Angola, ou mesmo várias, consoante o tempo que lá esteve». Ela, que nasceu em Nova Lisboa, teve de fugir para Luanda logo no início da guerra. Voltou seis meses depois, para encontrar a cidade com outro nome e vazia: «Em Luanda, depois da independência, assistira às filas de caixotes com destino a Lisboa. Mas ali era diferente. O merceeiro, o padeiro, toda a gente partira.»
Maria Alexandre pertence a uma família que estava há várias gerações em Angola e com ligações ao MPLA. Depois, os caminhos descruzaram-se. No seu caso, há 18 anos que se afastou daquele partido. Fixou-se em Lisboa há dez e, desde então, já voltou ao Huambo. Está, aliás, para lá regressar agora. Mas dificilmente chama a isso ir à terra: «Voltar ao paraíso da infância é, por exemplo, visitar o porteiro da escola. Nós não podemos fazer isso. Muita gente que conhecia está hoje morta. A guerra foi tão prolongada que nos tirou as referências.»
Emília Caetano / VISÃO nº 510 / 12 Dez. 2002

Os retornados estão a abrir o baú: Raquel Ribeiro 12.08.2010

Um império encaixotado: a foto de Alfredo Cunha (1974) é simbólica. Caixotes de retornados amontoam-se junto ao Padrão dos Descobrimentos
Dossier

Foi preciso esperar mais de 30 anos para que as feridas abertas pelo retorno dos colonos em África começassem a sangrar. Muitos decidiram agora escrever sobre o estigma de "retornado". Fundamental para se perceber o que é ser português, hoje
Há 35 anos, após 14 anos de guerra colonial, mais de meio milhão de pessoas regressava das colónias portuguesas em África, pondo fim a 500 anos de império ultramarino português. "Nós fomos, nós somos uma pequena nação que desde a hora do nascimento se recusou a sê-lo sem jamais se poder convencer que se transformara em grande nação", escreveu Eduardo Lourenço, em "O Labirinto da Saudade". "Mesmo na hora solar da nossa afirmação histórica, essa grandeza era, concretamente, uma ficção. Nós éramos grandes (...), mas éramos grandes longe, fora de nós, no Oriente de sonho ou num Ocidente impensado ainda."
Portugal, um país que se tinha imaginado grande, com vastos territórios nos trópicos que eram uma extensão da sua diminuta dimensão europeia, viu-se enfiado numa ponte aérea de vários meses. No final de 1975, com a independência das suas províncias ultramarinas, o país estava novamente confinado a um rectângulo na costa europeia do Atlântico.
A balada do Ultramar tem sido cantada por vários escritores desde o final da década de 70, mas foi preciso esperar 30 anos para que as feridas abertas por um retorno abrupto começassem a sangrar. A história não mentiu ao dizer que muitos vieram com a roupa que tinham no corpo para um país aonde nunca tinham estado e onde foram rotulados de "retornados".
Agora, muitos decidiram escrever sobre isso - sobre como era a vida na colónia, sobre o que perderam, sobre o que ficou, sobre como foi "regressar" e viver com o estigma de "retornado" -, buscando a sua identidade nos meandros de uma memória pessoal que era também uma história colectiva e tentando perceber o que é ser português hoje. Nos últimos anos, têm vindo a lume livros sobre a presença portuguesa em África: diários de guerra, ficções e autobiografias, mas também livros escritos por retornados (ou não) evocando a tragédia da ponte aérea ou as consequências do retorno na vida de muitos portugueses.
O quotidiano na colónia
António Mateus partiu para o Lobito com a família aos cinco anos. Aos 25 saía de Angola. Chegou ao Brasil via ponte aérea por Lisboa, "com uma mão na frente e outra atrás, e 180 dólares no bolso". Aos 61 anos, reformado, a viver em Palma de Maiorca, é autor de "Lobito" (Guerra e Paz, 2009) e "Lubango, Paris, Mavinga" (2010). Porquê escrever? "É uma questão de aritmética: 25 mais 35 são 60. Muita gente saiu de África com cerca de 25 anos, passaram-se 35, e muitos temos 60 anos hoje."
Tinha estas histórias há anos na cabeça, mas uma vida intensa de trabalho impediu-o de se sentar a escrever - Brasil, Espanha, América Latina, Paris, andou um pouco por todo o lado. Não é um nómada, mas um cidadão do mundo, mistura de "lobitanga" (do Lobito) e "chicoronho" (de Sá da Bandeira, actual Lubango), português mas também maiorquino.
África só está lá nos livros, explica, porque foi aí a sua juventude: "A minha adolescência passei-a lá. As namoradas, o primeiro beijo; foi lá que conheci a minha mulher e que o meu filho nasceu. Isso marca de tal maneira uma pessoa porque são transformações profundas da juventude."
Muitas destas novas narrativas sobre África são circulares: nos anos 50, dá-se a partida para Angola ou Moçambique, a bordo dos paquetes.
Colonos vindo das Beiras, de Trás-os-Montes, do Alentejo, das enormes "bolsas de miséria do interior", refere Mateus. Depois, a vida na colónia passa-se, com mais ou menos sobressaltos, até ao regresso forçado em 1975. Neste caso, "Lobito" é excepção (há uma partida, mas não se dá o "retorno", porque a narrativa não chega a esse tempo histórico).
Nos primeiros capítulos, Mateus fala criticamente do Estado português que se limitava a "meter as pessoas nos navios, onde, amontoadas como animais, seriam levadas a povoar as colónias". Só a "amizade e solidariedade dos portugueses já desterrados substituíam as obrigações de um Estado omisso", escreve. Depois, a horrenda viagem de barco, em terceira classe: "O enjoo levava ao vómito constante (...). Numa mesma camarata, dez ou quinze pessoas a vomitar ao mesmo tempo." A viagem era degradante, "fazendo lembrar as viagens dos escravos nos barcos negreiros". Remata com ironia: "Os portugueses tinham demonstrado ser grandes especialistas nesse tipo de travessias."
Em "Lobito" seguimos os passos do jovem mulato Zé Beto e dos seus dois amigos, Zeca (negro) e Zé Lisboa (branco). A questão da raça está lá, premente (sem a violência de outros textos, é certo), mas Mateus cartografa igualmente outras barreiras, de classe, que marcavam a sociedade estratificada do Lobito, bairro a bairro. Na cidade, diz ao Ípsilon, "havia mais diferença entre ricos e pobres do que entre pretos e brancos. Era uma sociedade de castas". Continua: "Não quero fazer um paraíso disto: os pretos na classe média eram uma minoria, de facto, mas a violência do racismo está mais na geração anterior à minha, nos mais velhos, um racismo gutural, de uma violência verbal no trato e na humilhação".
Para quem esteve no Lobito, as referências locais são familiares: dança-se ao som de merengue, bebem-se Cucas geladas, o ponto de encontro era no Pic-Nic, ia-se à taberna do Peralta, banhos de mar era na ponta da Restinga, e via-se cinema ao ar livre nas noites quentes. Este era o quotidiano dos colonos em África, sobretudo em Angola, como o livro de Ana Sofia Fonseca, "Angola, Terra Prometida" (Esfera dos Livros, 2009) tão bem mostra. A jornalista, de 32 anos, recolheu depoimentos de mais de 80 pessoas, antigos colonos e não só, para compor um livro que é, em muitos aspectos, um documento exaustivo da vida na colónia.
Durante anos, conta ao Ípsilon, foi ouvindo histórias sobre os "melhores anos" em África. Perguntava-se "como é que se podia falar dos 'melhores anos' quando esta foi uma época em que a maioria da população vivia muito mal, e a partir de 1961, de guerra também? Os 'melhores anos' são referidos por pessoas que viviam numa 'redoma dourada'. Tinha interesse em compreender a complexidade desse fenómeno."
Estas pessoas "trazem Angola presa à alma" e, juntas, "revelam o retrato de um período que ainda é uma noite escura", escreve Fonseca. É o retrato de um tempo que não existe mais. "Como era a vida das pessoas? Diziam que era maravilhosa, mas como era? Havia mais liberdade ou não? A PIDE era mais ou menos interventiva do que cá? A rádio como funcionava? O que é que as pessoas faziam à noite? Como era a vida das mulheres?", pergunta. De Luanda às outras cidades, nas fazendas, nas plantações de café e de algodão, no mato, nas caçadas, no entretenimento (futebol, corridas de carros, música, cinema, praia, noite), "Angola, Terra Prometida" mostra até que ponto o dia-a-dia em Angola antecipa um duro contraste com o "retorno" a um Portugal rural, atrasado, pequeno.
Quando escreveu o livro, fez tudo para "não cair em nostalgias, nem tão-pouco em culpas por expiar". Não há aqui qualquer branqueamento: Fonseca admite que este é um retrato das elites numa sociedade profundamente injusta, cheia de desigualdades. Acredita que é à sua geração que cabe contar estas histórias, "sem saudosismo, sem tabus".
Para a investigadora Sheila Khan, o livro de Ana Sofia Fonseca faz uma "sociologia das ausências", tal como Khan o fez no seu livro "Imigrantes Africanos Moçambicanos" (Colibri, 2009). Ou seja: "Transforma em existente palpável aquilo que é produzido como ausente e mostra que esses silêncios não estão nada calados", diz. Ao coligir estas histórias num enquadramento social, histórico e cultural, "este é um livro-útero porque cria um espaço de conforto e de sossego suficiente para que as pessoas tenham possibilidade de assimilar, absorver e pensar nestas narrativas de vida".
O marketing da nostalgia
É provável que o leitor já se tenha deparado com muitos destes livros: capas em tom sépia, postais ilustrados com imagens nostálgicas de uma África que não existe mais. Para a professora Isabel Ferreira Gould, da Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, estes livros são o resultado de um trabalho de marketing com uma missão concreta: "Criar uma noção de familiaridade, fazer um apelo emocional ao leitor e à sua saudade. As editoras têm claramente um público em vista: pessoas que viveram em África."
Só que as capas enganam, porque nem todos os livros apresentam a ideia de um império perdido mas idílico, de tempos idos mas felizes. Estes livros estabelecem um contraste importante entre o que é o "colonialismo" e a "colonialidade", diz Sheila Khan. "O colonialismo é a ideologia, a regra; a colonialidade é esse colonialismo reduzido no seu dia-a-dia, na prática, no seu agenciamento, nas relações entre as pessoas. Tem a ver com a forma como um mesmo fenómeno é sentido, vivido e imposto." Estes livros, argumenta, traduzem o quotidiano colonial e "os sentimentos que estavam colados a ele, as vivências, a forma como cada um percebia e sentia essa forma de estar num lugar que, não sendo seu, era seu; como cada um se apropriava dele e como é que a sua identidade se transformava a partir deste".
Nesta literatura está a colónia em toda sua complexidade, mas também a nostalgia: "A nossa relação com a casa, o espaço e o tempo, ansiando por um lugar de pertença. Nostalgia pelo perdido, pelo que África poderia ter sido, e pelo que não tínhamos e queríamos ter tido", explica Isabel Ferreira Gould.
Antes, a literatura portuguesa contemporânea portuguesa já tinha ido a África, visitando o período da guerra colonial nos livros de Lídia Jorge, António Lobo Antunes, João de Melo; só no final dos anos 90, surgem as primeiras obras sobre a experiência do Império e do colonialismo. Há aqui um salto e não se pode ignorá-lo. Estes livros são importantes: "Não podemos escamotear esta narrativa de nostalgia." A qualidade literária não está em causa: "É uma narrativa muito próxima do testemunho, e muitos são novos autores a estrear-se."
No livro que Ferreira Gould vai publicar, "Império na Primeira Pessoa: Memória, Família e Colonialismo na Narrativa Portuguesa Contemporânea", estas obras vão figurar porque falam "da relação de pertença e não-pertença sob a perspectiva do colono. Porque há vários colonos. Ele é muito importante enquanto figura literária: é colonialista, é colonizador, mas também é imigrante e as pessoas têm muito pudor em falar nisto." O colono é um imigrante fruto e veículo de uma ideologia: "O pai de família, o pai português, o racista."
Este livros, sublinha a investigadora, não devem ser lidos com o preconceito com que o Portugal europeu, continental, sempre tratou os retornados. "Lidamos melhor com a memória do soldado que fez a guerra colonial do que com a do colono. Como pensá-la, como rememorá-la? É legítima a sua memória? Estes romances trazem notícias ao pensar de forma legítima a memória da colónia e do retorno, hoje."
Por isso, o que se apaga ou se omite é tão importante como o que está escrito. "Sim, muitos apagam, mas também reconstroem. No discurso da memória, as falhas são tão importantes como o que está lá. São testemunhos que rompem com a narrativa histórica porque o narrador pode dizer 'fui eu, vivi, perdi, estava lá', mas, por outro lado, essas narrativas são prisioneiras da identidade, o que limita o que podemos dizer sobre o outro".
Sheila Khan chama-lhe literatura de "retornados" (e sublinha as aspas).
A violência da linguagem
Os livros de Isabela Figueiredo, "Cadernos de Memórias Coloniais" (Angelus Novus, 2009) e de Ricardo de Saavedra, "Os Dias do Fim" (edição de 1995 revista e aumentada, Casa das Letras, 2008) rompem com uma certa imagem da colónia, e demonstram a violência do quotidiano e do período de independência com a força crua da linguagem.
Exemplos: "Uma branca não admitia que gostasse de foder, mesmo que gostasse. E não admitir era uma garantia de seriedade para o marido, para a imaculada sociedade toda." (Figueiredo, 47 anos) "O jornalista que sou percorreu os trilhos da guerra. Foi treinado para se defender e para matar, se necessário. Empurraram-no contra um inimigo impiedoso.
Cumpriu o que lhe mandaram, na atitude ingénua e cómoda de prestar um serviço à Pátria. O homem que sou é o resultado laboratorial de um equívoco (...). Eis porque, neste poiso africano que antecede a aerogare da Portela de Sacavém, me contorço. Deprimido e soturno, pareço uma galinha pedrês, a sacudir as asas, no terreiro da aldeia de colmo a que ateiam fogo." (Saavedra, 58 anos)
Figueiredo e Saavedra saíram de Moçambique com a independência e estes livros são os seus diários - autobiográfico, no caso de Isabela; ficcional (?), no caso de Saavedra - da colónia, da violência, do retorno e do exílio. "Tive de cortar com o passado, e cortei mesmo. Não sou saudosista, não quero reconstituir nada, não quero vingança, mas gostaria que os meus netos soubessem que sofremos", diz Saavedra ao Ípsilon.
O livro de Figueiredo foi uma "pedrada no charco", diz Sheila Khan. "Isabela é a filha desobediente" que vem romper com o "status quo" da literatura sobre a colónia, e essa ruptura é feita de uma forma muito violenta: "A maneira como ela entra no texto, ninguém quer ouvir aquilo. Tínhamos uma ideia muito pacífica e paradisíaca do colonialismo português em África." A autora tem recebido mensagens de leitores que se identificam com a sua visão da colónia - racista, violenta, profundamente injusta. "Sinto-me bem porque sinto que não sou só eu, não fui só eu que tive de ouvir aquilo, muitas mais pessoas ouviram as mesmas coisas. Durante muito tempo senti-me muito sozinha relativamente ao que eu sentia sobre a minha realidade africana, sobre as minhas memórias".
Estes são exemplos do que Isabel Ferreira Gould chama de "narrativas de decantação", ou seja, "textos escritos na primeira pessoa" sobre memórias "que estão estruturadas entre uma visão crítica do colonialismo e a necessidade de exaltar, para o bem e para o mal, as figuras fundamentais da identidade dos sujeitos da narrativa". São, em muitos casos, "obras de filhos a rever as suas memórias e as das suas famílias, estabelecendo tensões e conflitos dentro da sua própria geração e com a geração dos seus progenitores". Mas, ao tentar filtrar o passado, ao decantá-lo, "como o próprio nome indica, também estão a homenagear, louvar, a elogiar: há uma tensão entre quem critica e ao mesmo tempo louva o progenitor".
Os silêncios guardados no baú ainda por abrir são o resultado de "pactos de amor nas famílias, que não podem ser quebrados", diz Isabela Figueiredo, que esperou pela morte do seu pai para poder dizer tudo. "Só dentro de alguns anos é que estas histórias poderão vir à tona. Os filhos que viveram esta realidade e que podem contá-la estão presos a esse pacto, comprometidos na teia de afectos."
Retornado ou refugiado?
"Vim sem nada, só com a roupa que tinha vestida"; "Nós estivemos dois dias no aeroporto de Luanda"; "Nós vivíamos em Nova Lisboa. Quando saímos já havia tiros"; "Nós éramos do Uíje... deixámos lá tudo"; "Eu nem sei do resto da minha família"; "E agora o que vai ser de nós nesta terra?"
É através deste mosaico de vozes que Carlos Vale Ferraz descreve em "Fala-me de África" (Casa das Letras, 2007) a tragédia do retorno. O romance tornou-se série de televisão, "Regresso a Sizalinda", agora em estreia na RTP. Não é sobre o retorno em si, diz o autor, "mas uma história de busca de identidade. E também da relação dos portugueses com África". A questão dos retornados, nota, sempre o tocou: "Não apenas aqueles milhares de pessoas que vieram em 1975, mas a vivência do retorno. A ideia de Portugal de 1975 para cá é a que está reflectida no livro, a de que encerrámos um ciclo".
O ciclo fechou-se, mas ainda estamos todos com a cabeça em África. Diz Vale Ferraz: "Num determinado momento, a expansão foi como aquelas crianças que andaram a juntar as carruagens num comboiozinho. Numa determinada fase, fomos perdendo carruagens, primeiro a Ásia, depois o Brasil, depois a Índia, e finalmente perdemos a carruagem de África. De repente, vimo-nos todos dentro da mesma carruagem, e há uma certa sensação de sufoco. É isso que faz as pessoas escrever: não temos para onde fugir." Perante a impossibilidade de fuga, "agora, vamos ter de pensar em nós, aqui, como nos relacionamos com os outros".
É por isso que Isabel Ferreira Gould afirma que estes livros são "sobre Portugal, sobre nós e a nossa relação com África, sobre o eu português e como este vê o outro". África está lá enquanto espaço e cenário, "paisagem, campo de batalha, de encanto e desencanto".
Carlos Vale Ferraz, 64 anos, não é um retornado. Foi militar e cumpriu comissões em Angola, Moçambique e Guiné. De seis romances, três são sobre África. Escreve sobre o continente porque, explica, "na segunda metade do século XX, é o assunto determinante da história de Portugal": "Se não escrevemos sobre África, não percebemos nada do que se passou em Portugal, não percebemos nada do que foi o Estado Novo, nem o que foram as transformações a seguir. Escrever sobre África é escrever sobre o nosso tempo. O Lobo Antunes não conseguiria escrever sobre as pessoas suburbanas que vão para os centros comerciais ao domingo se, na sua maioria, não fossem pessoas que vieram de África, quer sejam aquelas que foram combater e depois vieram da província para aqui, quer sejam aquelas que regressaram em 1975."
Os "retornados" (mais aspas) foram bodes expiatórios do colapso do império, e esta literatura que está a aparecer em Portugal (de, para ou sobre retornados) está a abrir as feridas. "Estas pessoas não são retornados, muitos não retornam a lugar nenhum. São refugiados de guerra", diz António Mateus. "Retornado" é a palavra "inventada para contornar uma realidade". Dizerem-se "refugiados", explica Khan, é a "forma como as pessoas tentam descolar-se da imagem de retornado, de mágoa e de exílio. Dizer que se é um refugiado é dizer que se foi expulso da sua terra, que não se pertence a Portugal e que Portugal não se lhes pertence." Ricardo de Saavedra foi um refugiado político, "tout court", exilado na África do Sul. A sua personagem Luís Ribeiro Sales escreve, em "Dias do Fim": "Estou no campo de refugiados de Nelspruit. Não se trata de reportagem, não vim como observador. Sou um deles. Sentado numa pedra, escrevo. Tudo o que me resta cabe debaixo do braço."
Os "de cá", explica Isabela Figueiredo, "diziam que os retornados andavam a explorar os negros. Eram ataques muito fortes, batia na ferida das pessoas, porque era uma metáfora, mas era verdade; era um eu colectivo que se enquadrava nessa imagem". "Retornado" soava "assim como quando se diz 'ó preto' como ofensa: 'ó retornado!' soava mal, porque queria dizer fascista, explorador." Ela olha para a palavra de outra maneira: "Como se ela quisesse dizer: pessoa que veio de África a seguir à independência."
Cartografia emocional
Todos estes escritores são "órfãos desse grande progenitor que foi o colonialismo português. Ao não ser capaz de dar a nenhuma destas pessoas o sentido de cordão umbilical, o colonialismo vai tocar na debilidade estrutural do que é ser-se português", diz Khan.
A literatura do retorno é uma forma especial de luto. Um luto que ainda não foi verdadeiramente feito, porque não se "pode pensar em luto sem se sepultar um corpo, e nós não temos lá nada sepultado porque viemos embora", e que é descrito em "A Balada do Ultramar", de Manuel Acácio (Oficina do Livro, 2009). Jornalista na TSF, Acácio, 46 anos, não é retornado e nunca foi a África. Foi casado com uma portuguesa que se dizia angolana, retornada. Admite que "A Balada do Ultramar" é o seu luto pela morte da mulher (há cinco anos), mas também o luto que milhares de portugueses não fizeram.
As palavras de Khan vão ao encontro do seu romance: "É um silêncio insepulto que nos diz que aparentemente está tudo bem e está tudo resolvido (porque afinal Portugal recebeu de forma pacífica e 'gloriosa' estas pessoas). Mas se elas têm necessidade de escrever, é porque alguma coisa não está bem."
Foi por sentir que alguma coisa não estava bem que Acácio escreveu. Partiu com "muitos preconceitos para este livro". Tinha medo do que as pessoas iam pensar: "Que sou saudosista e colonialista, que estou a tentar reescrever a história". É o seu primeiro romance, sobre um homem que está a contar a história do regresso. "Quis pôr-me no papel de quem se sentiu injustiçado, mal recebido. Alguém que sente que é de África e está de certa forma a fazer um ajuste de contas com o seu passado."
Nove anos à frente do Fórum TSF fizeram-no perceber que a memória pacificada da mulher com Angola não coincidia com a memória de muitos outros retornados. (Ou)viu que "as feridas não estavam nada saradas, estavam todas em carne viva. Havia uma grande revolta silenciada naquelas pessoas. Os fóruns eram uma oportunidade de falarem." "['A Balada do Ultramar'] é o filho desse espanto com que fiquei quando percebi que havia uma enorme revolta de pessoas que tiveram de deixar tudo e depois chegaram cá e foram apontadas, criticadas, estigmatizadas", continua.
Não ter contas a ajustar com o "seu" passado colonial poderia à partida ser um impedimento, mas acabou por ser uma vantagem: "Não estou preso às recordações da minha família, não estou amarrado a laços".
Talvez por isso, esse homem velho conta a história das suas vivências em África sem o pudor do afecto. O livro passa esse saudosismo do passado colonial (propositado, diz), mas também toca de forma clara na questão da sexualidade, "na ida às cubatas, no racismo, na violência verbal, no trabalho escravo".
No fundo, os retornados são isto: "Às vezes penso que devíamos ser como as cobras. Elas aprenderam a largar a pele envelhecida e deixam-na para trás sem qualquer remorso", escreve Acácio. Mas o remorso, a vergonha, a mágoa ainda estão lá. Esta é "a dor de uma geração", diz. "Há uma cartografia emotiva que está por fazer."

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

RITA GARCIA: novos escritos especulativos sobre a vida de portugueses no Ultramar, publicados na Revista "SÁBADO",nº 339,de 28/10 a 3 de Novembro de 2010



Uma capa de revista bastante sugestiva mas nada condicente com a "realidade" que pretende fazer passar. Assim se faz jornalismo em Portugal...Análise extremamente redutora daquilo que foi a vida em África, daqueles que "retornaram"de África... Por ignorância ou má fé, a vida de todos é aqui  reduzida aos modos de ser e estar de uns poucos...






"OS ANOS DOURADOS DOS PORTUGUESES EM ÁFRICA"... "MEMÓRIAS DE COMO ERA O DIA A DIA DOS PORTUGUESES"...  "A VIDA EM ÁFRICA  ERA ASSIM"...

 
Segue a tomada de posição de Roberto Correia,  pessoa esclarecida na matéria,   conhecedor de cidades e sertões, que na época colonial foi colaborador dos jornais “A HUÍLA” (e mesmo redactor), dos “NOTÍCIAS da HUILA”, “O NAMIBE”, “A VOZ DO PLANALTO”, “A PROVÍNCIA DE ANGOLA” e do “JORNAL DE ANGOLA”, da ASSOCIAÇÃO AFRICANA (em Luanda, de que foi ainda membro da direcção e colaborador da Liga Nacional Africana), usando sempre o  pseudónimo “Sourreia”;  publicou diversas obras literárias sobre a História de Angola:


A propósito de um artigo e da capa, assim intitulado, na Revista "Sábado", n.339, de 28/10 a 3 de Novembro de 2010, diremos o seguinte:


1) - Assim como a maioria dos meus familiares e dos milhares de conhecidos, colegas e amigos, nascemos em ANGOLA,onde antes de 11/11/1975 (antes da revolução), éramos "TODOS PORTUGUESES" (além de verdadeiros "ANGOLANOS", fruto de algumas gerações de três Continentes (EUROPA - AMÉRICA DO SUL(BRASIL) -- ÁFRICA).

2) - Muitos outros milhares de residentes então em ANGOLA (não me vou referir aos outros territórios ex-ultramarinos, onde nunca vivi), eram PORTUGUESES CONTINENTAIS, que, em pouco tempo,se tornavam como verdadeiros Angolanos !

3) - Não eram, então, também "PORTUGUESES" apenas os "BRANCOS" nascidos em ANGOLA !

4) - Não sei, não faço ideia,onde nasceu ou viveu a jornalista RITA GARCIA, autora do artigo (reportagem/Destaque)acima referido. Até gostava de saber...

5) - Como "ANGOLANO / PORTUGUÊS", descendente de algumas gerações nascidas e vividas em ANGOLA, assim como muitos dos meus diversos familiares, dos amigos e dos conhecidos, NÃO DEVO, NEM POSSO, deixar de manifestar a minha parcial discordância com o conteúdo e espírito do mencionado artigo (reportagem, que nem sabemos como foi efectuada! ).

6)  ANGOLA,embora com uma faixa marítima bastante extensa, apenas tinha (e tem ainda) poucas cidades e poucas vilas ou povoações importantes junto desta. Assim,alguns milhões dos seus habitantes naturais,algumas centenas de milhares dos "PORTUGUESES" até então ali residentes, viviam no seu imenso interior (várias vezes superior ao território português na Europa), 
instalados até a muitos quilómetros da costa marítima. Residiam e viviam no "SERTÃO", no "MATO". Muitos deles permaneceram anos a fio sem ...irem à cidade"...! Estavam mesmo muito longe das praias ! Praias, só conheciam as dos rios e tinham jacarés !... Nem andavam ..."em caçadas de elefantes e leões"...! Tudo isso era então muito bem controlado e vigiado por fiscais próprios e pelas leis em vigor. A sua conservação era respeitada. Não eram então dizimados por armas de guerras ("coloniais ou civis"), ou de ricos turistas de ocasião, como aconteceu depois de 1974/75 !

7) - Poucos locais "adequados" existiam e nem todos os PORTUGUESES andavam em paródias ou noitadas de fins-de-semana em..."clubes exclusivos e festas na praia"...! Era uma população trabalhadora (não havia desempregados permanentes, nem subsidiados profissionais). Também essas leis eram respeitadas.

8 ) - Quanto ...às "boas casas, com espaço, jardim e criados para os servir"...nem só alguns dos ditos PORTUGUESES (ULTRAMARINOS) eram seus exclusivos possuidores ou utilizadores legais. Isso era comum, necessário, conveniente até para os próprios trabalhadores. Esses PORTUGUESES não tinham, na sua grande maioria, automóveis de luxo, nem motoristas privativos...como alguns dos grandes senhores e os "Continentais" (cá por estas bandas)!

9) - Tudo isso também já se verificava no CONTINENTE e com proventos bastante semelhantes ! Muitos anos antes, as construções (as residências) dos PORTUGUESES em ANGOLA tinham,obrigatoriamente, uns anexos com quarto(s) e sanitários para o(s) criado(s), mesmo dentro das cidades ! As tais..."boas casas com espaço, jardim (até com piscina privativa) também se encontram hoje em muitas zonas deste "pobre" país, pertencentes aos Continentais,(I) Emigrantes ou não, bastante valiosas e, em muitas delas,se realizam as tais ..."FESTAS"... e nem precisam de outras praias em fins-de-semana (em especial nos prolongados por modernas "pontes horárias",ou até mesmo sem serem de "surpresa",dos amigos (de ocasião ou à espreita de certas oportunidades ou favores,nem que sejam "inimigos disfarçados de outras mais adequadas cores"...e numa mais do que conivente ..."ERA DOURADA" !

10) - Por lá, ANGOLA desses tempos "dourados", muito boa gente, já com certa idade, nunca tinha visto uma "PRAIA", tal a imensidão do território. E muito menos tinha sido beneficiado com..."um pires de marisco (de camarão ou outro) à borla, nem mesmo duma cerveja fresca em zonas em que ainda nem havia electricidade, nem "geleiras" domésticas ! Normalmente nem eram pires de "camarões" à borla mas sim, de tremoços ou ginguba. Pelo contrário, viviam quase isolados, carentes, passando privações, sem qualquer "assistência social". Eram terras de trabalho duro e de boas produções e não de "farras", regabofes, festivais, etc. Eram trabalhadores sérios, honestos, patrióticos, que acabaram sendo traídos e nunca recompensados !

11) - ANGOLA, na sua maior parte, a grande ANGOLA, era a "ÁFRICA MISTERIOSA", a verdadeira ÁFRICA, não só de "Elefantes e Leões", que nos velhos tempos desciam aos povoados, ás cidades (até à LAGOA DE KINAXIXE, então nos arredores de LUANDA). sendo conveniente caçá-los.

12 ) - Os outros "caçadores", amigos ou familiares dos "VINHAS", dos "MELOS" e doutros ilustres "continentais", eram abastados turistas, fazendo esquecer os esfarrapados "pumbeiros" do sertão ou os caçadores furtivos de marfim, associados aos grandes chefes locais !

13) - O imenso título "MOÇAMBIQUE" aplicado por cima duma enorme foto de alguns veraneantes na ILHA DE LUANDA  (pág. 48 da citada Revista), está mesmo... "a matar" ! 

Diremos então que... ANTES NÃO ERA ASSIM"...!

14) - CONCLUINDO : - RITA GARCIA... "A VIDA EM ÁFRICA... (NÃO) ERA ASSIM"... como descreve! Vamos falar verdade! Seja humilde, peça desculpas aos muitos milhares de PORTUGUESES ULTRAMARINOS que ofendeu !...


P.S. - (artigo será transcrito na minha "secção gmail, estando ao dispor no meu blogue http://angola-brasil.blogspot.com   COIMBRA, 31/10/10 - Roberto Correia -- (sourreia@gmail.com)


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Também sobre o artigo e a capa da Revista "Sábado", n. 339, de 28/10 a 3 de Novembro de 2010, segue outra tomada de posição:
 

"Chega-me a revista portuguesa Sábado (nº 339, 28.10.2010) com uma reportagem de Rita Garcia mais ou menos intitulada “A vida em África era assim” (estas ligações são muito perecíveis, mas por enquanto funcionará).  A capa da revista (de expressão nacional) é-lhe dedicada e a coluna do director (“Bastidores” de Miguel Pinheiro) também, tornando-a matéria central desta edição semanal. O tom ordinário da revista nota-se logo na forma como é apresentada a reportagem: tem quatro títulos, um na capa ["Os anos dourados dos portugueses em África"], um outro no índice ["A vida em África antes da independência"], outro na coluna do director Miguel Pinheiro ["Memórias de África"] e outro ainda na reportagem propriamente dita [a paginação dificulta a sua consideração mas eu arrisco "A vida em África ... era assim"]. Agora venham-me dizer que são “opções” … então e como se chama aquilo? Mas se isso é o tom da revista mais pungente ainda é a radical mediocridade preguiçosa do texto: a enésima abordagem ao rame-rame da cerveja Cuca, as festas liberais, o camarão que vinha oferecido com a imperial, as caçadas, o criado doméstico. Tudo isto é o tudo no qual “Todos os portugueses que conversaram com a repórter da Sábado coincidiram nas recordações daqueles tempos.“, afirma o orgulhoso director. Uma mera reportagem de revista não é um ensaio histórico mas não se restringe obrigatoriamente a tamanha mediocridade (e a um “mundozinho” informante).
Paupérrimo trabalho."

By JPT:  http://ma-schamba.com/937277.html

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Outra tomada de posição relacionada com o artigo e a capa da Revista "Sábado", n.339, de 28/10 a 3 de Novembro de 2010:

 

"Tenho lido com alguma frequência que Angola era uma terra cheia de oportunidades, o que realmente é verdade, não deixa contudo de ser puro engano dizer-se que bastava alguém ser bom trabalhador para enriquecer.

Li recentemente um livro cujo autor diz ter vivido alguns anos em Angola e espanta-me que também ele ajude a passar esta ideia enganadora. Embora seja um romance e por isso à partida classificado de pura ficção, não deixa contudo de cair neste erro. Lê-se ali que um casal chegado a Luanda, em pouco tempo já tinha negócios espalhados por toda a cidade e logo a seguir pelas principais cidades de Angola, isto sem falar da compra de uma "casa" na Vila Alice.

Não espantava se esse casal fosse endinheirado e procurasse Angola para investir, o que não é o caso. Por vezes parece que existem duas Angolas diferentes, aquela que eu e a maioria conhecemos e uma outra, onde se chegava e se encontrava prontamente uma "àrvore das patacas" e se enriquecia duma hora para a outra. Eu nasci em Angola e embora houvesse diferenças de classes como na maioria dos países, a verdade é que era necessário muito trabalho para se viver com algum desafogo e a maioria pode atestar que também não dava para se fazerem muitas "avarias".

Assim, das duas uma, ou eu e muitos outros fomos pouco inteligentes e nunca soubemos ver os "grandes negócios", ou simplesmente nunca encontramos a tal " árvore das patacas".

É bom que se diga a verdade, era uma linda terra, um povo hospitaleiro e humilde, mas quem começasse do nada como o meu pai e muitos outros que ali chegaram na década de 50, mesmo com muito trabalho, nunca chegaram a ter essa tal vida faustosa que se encontram ilustradas nalguns romances.
Lá como cá, se houvesse respeito pelo "próximo", creio que as oportunidades eram iguais!"


Facra Rone in Cubatangola                                                                                
                                                                 
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Depois de ter publicado aqui algumas tomadas de posição sobre esse artigo e capa da Revista "Sábado", n. 339, de 28/10 a 3 de Novembro de 2010, subordinado ao título "OS ANOS DOURADOS DOS PORTUGUESES EM ÁFRICA", "MEMÓRIAS DE COMO ERA O DIA A DIA DOS PORTUGUESES"  ,"A VIDA EM ÁFRICA...ERA ASSIM"...
resolvi voltar aqui para acrescentar algo mais:

Costuma-se dizer "Quem não se sente não é filho de boa gente!".  E o problema é que à boa gente quando sente, logo vem outra gente replicar em tom de crítica: "Os retornados ainda não se libertaram de ressentimentos!..." Mas o que querem então? Que nos acobardemos no silêncio, quais párias expurgando os pecados da Pátria?

Não entre por aí  Rita Garcia. Não se trata de ressentimentos. Trata-se, sim, da vontade de ver assunto tão sério como este, tratado com seriedade. E não é sério abordá-lo assim, começando por ilustrá-lo com uma capa  representativa de uma ínfima parcela da população branca que vivia em Angola, como se a sua vida ali fosse uma "Dolce Vita", um "Farniente". 

Rita Garcia foi mais longe que Jesus Cristo quando fez o milagre dos pães. Conseguiu através de um conjunto de palavras transformar uma realidade que não abrangia mais que uma facção mínima da população branca de Angola, em uma outra realidade digna de tal ilustração. Ou seja, através de um trabalhinho feito a correr, num meio pequenino de informantes, reduziu a "vida em África" a  uma meia-dúzia de estereótipos já cansados de usados, que mais fazem lembrar os atribulados tempos do PREC!

Mas há mais. Os truques são sempre os mesmos. No outro dia entrei numa livraria e vi um livro que me chamou a atenção. Porquê?  Pela capa! Era mais um livro especulativo sobre a vida dos portugueses em África. Junto a um descapotável, um casal beneficiava de uma sombra amena enquanto um rapazinho africano, ao lado, muito direitinho e com ar respeitador, de plantão, segurava um guarda sol.

Conforme John F. Kennedy: "O grande inimigo da verdade, muitas vezes não é a mentira - deliberada, compulsiva e desonesta, mas o mito persistente, persuasivo e irrealista. Acreditar em mitos dá o conforto da opinião sem o desconforto do pensamento." E todos sabemos, o quanto uma não verdade centenas de vezes  repetida, acaba por tomar o lugar de uma verdade.

Informar exige um código de honra, exige ética, exige acima de tudo estar por dentro das situações. Tomar a parte pelo  todo, ou o todo pela parte, se não é  ignorância, é intenção!

Na reportagem «Os anos dourados da vida do portugueses em terras de África», não passa despercebido o tom jocoso utilizado, o palavreado provocador e leviano dirigido a pessoas sérias, honestas, cuja vida era na sua maioria de trabalho duro e de sacrifícios, e não de "farras", regabofes, festivais, etc. Gente que nunca enriqueceu (pudessem vir a público as suas contas bancárias, seriam reveladoras),  gente que trabalhou duro,  que sofreu privações, que ajudou a erguer cidades,  que acabaram sendo traídas e nunca recompensadas!  Gentes que honraram Portugal, e que um dia tiveran que que partir de mãos vazias e coração desfeito, e pior ainda, transformadas em "bodes expiatórios" de todos os males, talvez para disfarçar seculares incompetências.

Porquê esta sede de escrever sobre aquilo que praticamente se desconhece, ou se conhece muito pouco? Porquê esta vontade de fazer passar por realidade aquilo que não passa de pura ficção. Não se sabe, inventa-se! O que leva as pessoas  a um tipo de abordagem como esta? Objectivos puramente materiais? Ganhar uns cobres à nossa custa?  Especulando, vende-se mais! É isso?

Os nossos tempos pecam pelo radicalismo dos discursos, pela análise especulativa das situações, pela ambição de brilhar a todo o custo, pela avidez do ganho, pela falta de empatia , essa grande qualidade tão necessária, que nos permite vestir a pele do outro, compreender suas ideias,  compartilhar os seus sentimentos e reacções. Como se desiludiriam os que assim escrevem, se estivessem devidamente documentados sobre a realidade da vida das pessoas em Angola,  dessa Angola imensa e profunda, e não reduzissem a sua perspectiva à vida de um determinado estrato social, bastante restrito, reduzido à capital, ou pouco mais ou menos. Fala-se de Angola como se todos fossem burgueses e pequeno-burgueses. O desconhecimento é tal que sequer se dão conta de quão redutora é a  sua perspectiva.   E como seria fácil fazer cair por terra todas as idealizações... Convido Rita Garcia a pegar seriamente neste assunto. Quero acreditar que se vier a fazê-lo, irá um dia compreender o verdadeiro sentido desta mensagem!

Gostaria de acrescentar que sou alguém nascida em Angola,  filha de pais nascidos em Angola no inicio do século XX, neta e bisneta de avós e bisavós, simples emigrantes que um dia, em finais do século XIX,  resolveram partir, incentivados por campanhas de sensibilização,  rumo ao sul de Angola, em busca de uma vida melhor que a mãe Pátria lhes negava.  Alguém que pot isso mesmo nunca se identificou com o rótulo de "retornado", mas que também nunca teve em relação a tal rótulo algum ressentimento. Era-lhe indiferente!     E era-lhe indiferente porque uma verdade é incontestável, quem algum dia viveu naquelas paragens, pobre ou rico, passa forçosamente a ver a vida com outros olhos. Os seus horizontes jamais serão comportáveis em espaços exíguos, a sua mente estará mais aberta a grandes dimensões...

Para quem estiver interessado a esclarecer-se sobre a colonização/descolonização, recomenda-se esta série de textos de 1 a 9 a iniciar aqui: http://psitasideo.blogspot.pt/2009/06/os-ossos-da-colonizacao-1.html

E ainda esta série de artigos:
 http://psitasideo.blogspot.pt/2009/02/os-esqueletos-nos-armarios.html



Ana Sofia Fonseca – Entrevista a propósito de “Angola, Terra Prometida” 20/05/2009 ·




A jornalista Ana Sofia Fonseca, autora de “Angola, Terra Prometida”, uma edição da Esfera dos Livros, deu uma entrevista ao blog Porta-Livros (por e-mail) onde falou da sua obra, um retrato vívido dos anos dourados dos portugueses em Angola. Trata-se de um livro, como explica, dirigido tanto a quem lá esteve nesses anos dourados como a quem nunca lá foi mas tem interesse em conhecer (e compreender) o fenómeno. Um retrato isento, pois, como explica Ana Sofia Fonseca, “a minha geração é a primeira a não ter compromissos com essa época, a poder olhá-la mais facilmente sem complexos nem tabus”. Contudo, não esquece que aqui é abordada apenas “uma parte da realidade – a vida dos portugueses”.

“Angola, Terra Prometida”, tal como o seu anterior livro-reportagem, “Barca Velha”, está escrito quase como se fosse um romance, não se limitando à pura exposição de factos. Ao optar por contar histórias pessoais pretendeu mostrar uma “história” mais emotiva e menos factual?

Não. As histórias fazem-se de gente. É através das histórias das pessoas que abordo os factos da época em questão. É uma forma de narrar habitual no jornalismo, sobretudo no que se refere a grandes reportagens. Acredito que uma história bem contada é aquela que nos leva ao tempo e ao espaço a que se refere. Para isso, é preciso dar as cores, os cheiros, os sons. As pessoas. Com as suas vivências, modos de pensar e de sentir.


A quem se dirige este livro? A quem esteve em Angola e quer recordar ou a quem não esteve e pretende saber melhor o que se passou?

Por razões diferentes, este livro dirige-se aos dois públicos que refere. Para quem esteve em África, é uma viagem à Angola que tão bem conheceu. Às águas quentes do Mussulo, ao capim, ao cinema. Aos sons da rádio, ao prazer de uma Cuca gelada. Para quem não viveu, é uma forma de descobrir o dia-a-dia de então. Desse tempo de ditadura e de colonialismo, em que Lisboa era metrópole e Angola apenas província ultramarina. Pelo menos, assim espero.


Angola está na moda ou volta a ser falada porque agora há a possibilidade real de lá regressar e as pessoas têm maior abertura de espírito para voltar a falar do passado?

Angola está na moda por diversas razões. Finda a guerra e com o desenvolvimento económico, voltou a atrair muitos portugueses – uns que já lá haviam vivido e outros que nunca a tinham sequer pisado. Outro dos motivos prende-se com o facto de muitas das pessoas que lá viveram acharem que está na altura de contar as suas memórias. Depois, há ainda os que acreditam que ainda existem muitas e boas histórias sobre esse passado próximo por contar. Eu incluo-me neste último grupo. A minha geração é a primeira a não ter compromissos com essa época, a poder olhá-la mais facilmente sem complexos nem tabus.

O fascínio por Angola não será potenciado pelo facto de as pessoas terem de lá saído no auge, de terem saído de lá quando a vida, em geral, lhes corria bem? Ou seja, há possibilidade de o cenário não ter sido assim tão cor-de-rosa e que seja antes indevidamente “pintado” dessa cor?

Como no naufrágio do Titanic, poucos acreditavam que o barco estava condenado a ir ao fundo. As pessoas vieram de lá num momento de grande desenvolvimento económico, de euforia – tudo acabou de um momento para o outro. “Cor-de-rosa” é expressão que se pode atribuir à vida de muitos, mas não à esmagadora maioria de negros e mestiços. Qualquer sociedade colonial baseia-se no domínio de uma cultura sobre outra – a portuguesa não foi excepção. Além disso, a memória tende a ser piedosa, a dourar a realidade. Por isso mesmo, além das muitas entrevistas, realizei pesquisa em arquivos públicos e em bastantes jornais e revistas de época.

Esta faceta dourada de Angola era apenas isso mesmo, uma faceta. Não estará a ser esquecido o outro lado, o lado daqueles que viviam lá em grandes dificuldades, muitas vezes explorados pelos colonos portugueses?

Este livro fala sobretudo de uma parte da realidade – a vida dos portugueses. No entanto, nunca esquece que a grande parte da população estava fora desta redoma dourada. Aliás, algumas histórias mostram-no. Como já disse, estamos a falar de vivências num período colonialista. A vida que os portugueses tinham deve-se, em parte, à subjugação do resto da população. Penso que o livro não descura esse aspecto.

Não haveria muita gente a viver numa espécie de “bolha”, isolada da realidade do país?

Claro que sim! E mesmo cá, então metrópole, também. Vivia-se em ditadura, havia repressão. Política não era assunto. É preciso olhar para aquela época sem a descontextualizar. Até certa altura, o mundo fazia-se de potências colonizadoras e de colónias. Portugal tardou a aceitar a independência, deixou-se consumir numa guerra perdida à partida. O mundo mudou e Portugal recusou ver que o colonialismo era inaceitável.

A onda de emigração de portugueses que hoje em dia se está a verificar rumo a Angola pode ser comparada com o que sucedia nos anos 50 e seguintes? Acha que é possível recuperar aquele espírito da época, mesmo tendo em conta que os tempos e a realidade mudaram?

Tudo tem o seu tempo e o seu contexto. Agora, Angola é um país com o seu próprio caminho. Parece-me difícil tecer comparações, tratam-se de mundos e de tempos completamente diferentes.

Foi difícil encontrar pessoas dispostas a partilhar as suas histórias de vida, as suas fotografias, os seus documentos, as suas recordações?

Encontrar pessoas com memórias de Angola é fácil, mais complicada é pô-las a falar sem barreiras. Se tivermos em conta que de lá vieram cerca de meio milhão de pessoas, logo se percebe que histórias não faltam.

Não teve a tentação de passar esta “história” para um romance?

Gosto de escrever histórias com personagens de carne e osso. Este livro está cheio de gente, de personagens de um mundo que acabou. Acho que é um dos casos em que a imaginação nada acrescentaria à realidade.

Que projectos tem agora em mãos? Há a possibilidade de regressar a este tema?

Sou jornalista, o meu trabalho é contar boas histórias – sejam elas de onde e de quando forem. Sinto que posso trabalhar mais 10 anos neste tema, mas há tantos outros assuntos… O bom do futuro é que é sempre uma página em branco.

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